1.11.25

Cartaz falso sobre “putos castanhos” motiva queixa-crime de Ana Gomes contra conselheiro nacional do Chega

 


«Pedro Pinto Faria, membro do Conselho Nacional do Chega, carregou uma imagem na rede social X com um cartaz do partido feito com inteligência artificial e em que se vê André Ventura ao lado do ‘slogan’: “Tira os teus putos castanhos da minha creche.” A publicação já tem quase 400 mil visualizações. Para a antiga eurodeputada Ana Gomes, trata-se de um “ardil” para “difundir a propaganda racista” nas redes sociais.»


«Pão por Deus»

 


Em 1 de Novembro de 1756, exactamente um ano depois do terramoto que destruiu grande parte de Lisboa, a população, paupérrima, aproveitou a data para lançar por toda a cidade um grande peditório. Batia-se às portas e pedia-se: «Pão, por Deus».

Lisboa antes de 01.11.1755

 


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O desprezo da pátria por via do desprezo da língua

 


«Há patriotismo e há nacionalismo travestido de patriotismo. Eu considero-me patriota, sei bem, quando estou cá dentro, onde estão os meus pés, em que solo piso e como esse solo me faz, e quando estou fora como falta sempre qualquer coisa. Cosmopolitismo é uma boa coisa e faz-nos muita falta, mas ser patriota e cosmopolita nada tem de contraditório porque a gente espreme, espreme e, sem diminuir o mundo, há sempre algo que nos molda antes do mundo: a pátria. Às vezes, quando falava desta diferença, citava algo que li há muito tempo sobre o teatro Nô japonês, sobre as personagens que estão vivas e os fantasmas: as primeiras mantinham os pés no chão, os segundos levantavam-nos como se levitassem. Procurei para este artigo uma referência e não encontrei nenhuma, vai como está na minha memória.

Há uma coisa que mais que tudo representa a pátria: a nossa língua, o português, seja o nosso, seja o do Brasil ou dos PALOP, ou mesmo dos crioulos como o papiamento. Podem falar diferente, mas a língua que está lá por trás é o português.

O que certamente não representa a pátria é o desprezo pelo português nas redes sociais e, mais importante ainda, a a indiferença política perante o maior atentado recente contra a língua portuguesa que foi o Acordo Ortográfico. Aqui está uma pergunta obrigatória aos políticos em legislativas e presidenciais que ninguém faz, e que deve ser colocada a partidos que se dizem nacionalistas e conservadores e falam o português bastardo do Acordo Ortográfico de 1990, como o Chega.

Na deterioração do português nas redes sociais há dois aspectos: um, são os erros de ortografia e gramaticais; outro, a escassez do vocabulário dominado pelos insultos. Esta deterioração começa nos jovens que, entre outras coisas, como não lêem a não ser este tipo de chorrilho de asneiras contínuo na cloaca das redes sociais, não têm vocabulário para sustentar qualquer frase um pouco mais elaborada ou um raciocínio. Como escreveu a Bárbara Reis, há pouco tempo no PÚBLICO, a substituição pelos emojis de qualquer expressividade ainda mais empobrece a comunicação.

Vejam-se estes exemplos de uma caixa de comentários na página de Facebook do Chega:

È por camara escondida para depois os visitar-mos na calada da noite. E apagar essas velas

Eles com as coécas todas mulhadas

O homem está corretíssimo,mas como é um homem onesto a grande parte desta gente mamona,ou BURRA NÃO GOSTA.

Nem mais .. é a mesma coisa aqui na englaterra.. se fore preson por mais de um ano . Compre a pena e a deportado

Estão com medo de alguma coisa! Força André Ventura,se fores presidente da República,no CHEGA a substitutos a altura para liderar o partido! CHEGA [sic]

Todos os dias, nesta página de Facebook, e por todo o lado nas caixas de comentários, escreve-se assim, e pode-se imaginar como fala quem assim se expressa. Ora, quem escreve assim não é patriota, porque despreza aquele que é um dos principais factores de identidade nacional: a língua.

Esta não é uma questão de elites contra o “povo”, mas sim um confronto entre quem respeita a sua língua e quem a despreza, entre quem despreza o saber e quem sabe o que lhe falta saber. Isto hoje é uma questão política, porque a democracia precisa da consciência do valor do saber, do falar, do conhecer. Esta consciência é hoje um dos alvos preferenciais do populismo que valoriza a ignorância.

Quem, por razões sociais, não tem o mínimo de educação formal, vem de meios de vida difícil, não teve oportunidade de estudar, teve de atravessar muita dificuldade, muita miséria, tem vergonha de não falar ou escrever bem, porque tem a aguda consciência que isso é um factor de pobreza e exclusão. Quem, por outro lado, fala e escreve mal português e tem um vocabulário exíguo pode escrever com erros de ortografia palavra sim ou palavra não, e ser muito eficaz em usar emojis de merda em linhas e linhas ou em insultar, mas não pode bater no peito nacional pelo seu país.

Uma das suas ironias é a reivindicação aos imigrantes de, para terem a legalização, saberem falar português, coisa que os seus julgadores não sabem de todo. É por isso que muitos imigrantes, a começar pelos que vieram das nossas colónias, falam muitas vezes melhor, num português impecável, e querem que os seus filhos aprendam aquela que é, para muitos deles, também a sua língua natal. Teriam vergonha de escrever a língua absurda das citações acima.

Mas esta deterioração da língua vem de cima para baixo, vem de quem tem poder no topo para terminar nesta cloaca de ressentimento e raiva. O Acordo Ortográfico de 1990 — a que, felizmente, quem gosta da sua língua e do seu país resiste —, para além de um desastre diplomático, uma nulidade em termos de “unificação” do português — posso, por exemplo, num processador de texto, escolher a opção “português de Angola” —, traduziu-se num abastardamento da língua. Esse abastardamento foi retirar-lhe a memória, eliminando os traços da sua origem no latim. Como disse também Pessoa: “A ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.” Tiraram-lhe o pai e a mãe, obra desses firmes partidários da tradição e da família.

Sim, “isto” não é o Bangladesh, mas também não é o Portugal dos que desprezam a nossa língua, a língua em que nasceram, e que usam pior do que “os” do Bangladesh a sua. Podem ser muita coisa, mas patriotas não são.»


Fernando Rosas

 



31.10.25

Pavões

 


Vaso “Pena de Pavão”, 1904.
Carl Schmidt (para a cerâmica Rookwood).


Daqui.

Querem tirar-nos tudo?"

 


«Os critérios para a atribuição da proteção temporária, de que beneficiam estes estudantes estrangeiros que fugiram da guerra da Ucrânia, foram alterados há quase três anos, mas só há uns meses os alunos começaram a receber cartas da AIMA a informá-los de que estão em situação irregular. Muitos encontram-se a meio do curso ou mesmo perto do fim.»


Carlos Drummond de Andrade

 


Nasceu há 123 anos.

"Vai para a tua terra". O racismo no Parlamento agora é aceite

 


«Caro leitor, cara leitora:

A História acelerou de tal forma em Portugal que coisas que há nem meia dúzia de anos seriam impensáveis hoje são moeda corrente.

Portugal foi sempre um país racista, mas era um racismo envergonhado, negado e escondido. As leis não eram racistas, ainda que a prática o fosse. Agora, esse país racista que os partidos democráticos tiveram tanto trabalho em negar e até a combater está posto a nu.

O grito de "vai para a tua terra" que o deputado do Chega Filipe Melo dirigiu à deputada do PS Eva Cruzeiro limitou-se a confirmar quão verdadeira era a intervenção da socialista, que acusava o Chega de ser um partido racista. A frase de Melo justifica a intervenção de Cruzeiro.

A lição do grito "vai para a tua terra" consolida o Chega como partido racista, como já se via no discurso sobre a comunidade cigana; nos comentários de alguns membros sobre a morte de Odair Moniz, assassinado por um polícia; no cartaz e nos discursos de Ventura que nos manda a todos (sabemos que não é a todos, é dirigido aos imigrantes asiáticos) "para o Bangladesh".

Se, há 20 anos, alguém se dirigisse ao deputado Narana Coissoró, antigo líder parlamentar do CDS nascido em Goa, com uma frase igual – "Vai para a tua terra" – caía o Carmo e a Trindade. O Presidente da Assembleia da República, fosse ele Barbosa de Melo, Vítor Crespo ou Almeida Santos, ter-se-ia imediatamente insurgido. Agora, não aconteceu nada.

Podem-se fazer ataques racistas na Assembleia da República que José Pedro Aguiar Branco não vai perder uma hora de sono. O pior é que já ninguém liga. Pedro Delgado Alves protestou, mas a caravana passa. Isto é a institucionalização do racismo no segundo órgão de soberania, perante o alheamento sórdido da comunidade política.

O que Filipe Melo fez na Assembleia da República fazem-no muitos portugueses brancos contra negros nas ruas das cidades. Mas fazem-no contra a lei, porque as leis em Portugal não permitem a discriminação em função da raça. Agora, no Parlamento, a lei também pode ser ultrapassada à vontadinha.

O racismo que sempre existiu em Portugal deixou de ser envergonhado. No fundo, já não é só o Chega, com os seus discursos, a torná-lo aceitável.

Nos últimos dias, o ministro António Leitão Amaro fez bastante para conseguir que o ódio ao imigrante, que neste momento já é "mainstream", se torne um acto banal.

A França não queria que a Itália integrasse a então Comunidade Económica Europeia para evitar que os italianos viessem "roubar" os empregos dos franceses e fazer diminuir os salários. Em Portugal, é visível que o ódio ao imigrante não cresce pelo facto de os imigrantes virem "roubar empregos". Cresce mais pelo sentimento anti-cosmopolita (para não lhe chamar outra coisa) que Pedro Passos Coelho verbalizou numa das últimas sessões públicas onde esteve: "Se tudo se mantiver como está com o reagrupamento familiar e por aí fora, qualquer dia as pessoas (…) sentem-se estrangeiras na sua própria terra".

O zeitgeist europeu está com este tipo de discursos. Não há muito tempo o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, um advogado de direitos humanos, fez um discurso semelhante – que foi mais polémico no Reino Unido do que aqui foram as palavras de Passos Coelho. Aliás, Starmer acabou por dizer à BBC que estava "profundamente arrependido" de ter dito que as ilhas britânicas corriam o risco de se transformar "numa terra de estranhos".

Em Portugal ninguém pede desculpa, porque não existe – dentro e fora dos partidos – uma sociedade civil tão forte como no Reino Unido, que também tem os seus problemas: o partido de Nigel Farage, o Reform UK, irmão do Chega, lidera as sondagens.

Sendo assim, Leitão Amaro sente-se à vontade para acusar os governos socialistas de terem promovido uma "reengenharia demográfica e política do país" com a manifestação de interesses. A expressão é nova, o Chega usa outras para bramar contra "a mistura".

Uma parte do PSD acha que é hasteando as bandeiras do Chega que o vai esvaziar. Leitão Amaro, depois da aprovação da Lei da Nacionalidade, declarou que, doravante, "Portugal é mais Portugal", uma expressão com o único objectivo de empunhar o discurso nacionalista, colando a lei da nacionalidade às regras para a imigração, tal como fez Montenegro, que voltou a atacar as "portas escancaradas" que alegadamente o PS abriu.

A normalização do discurso anti-imigrante, genericamente baseado em percepções, nunca discute o que acontecerá a Portugal se os imigrantes deixassem de contribuir para a economia portuguesa e para a demografia nacional. É como se fossem dois mundos à parte: como se o crescimento do país não estivesse ligado à mão-de-obra imigrante, para a qual agora se passou a dificultar a integração.

Quanto à sustentabilidade da Segurança Social, num país em que os habitantes não querem ter filhos (aliás, tal como André Ventura e muitos votantes do Chega não querem) quem vai financiar a reforma do líder do Chega e dos outros milhares de portugueses quando chegar a altura? Ou a ideia é mesmo acabar com as pensões? Se for, assumam. Pelo menos, os eleitores ficam esclarecidos.

Salazar, que Ventura quer ver regressar em triplicado, defendia o "Portugal multirracial". Não é que seja grande consolo tendo em conta todo o panorama, mas o discurso oficial nos últimos tempos da ditadura pelo menos não era racista.

"Ó Portugal, se fosses só três sílabas/de plástico, que era mais barato!" Ninguém nos descreveu como o O'Neill.

Até para a semana.»


Catarina Martins e o SNS

 


30.10.25

Salazar aconselha Ventura

 


Histrionismo saudosista

 


«Um em cada cinco jovens espanhóis afirmou, num inquérito do Centro de Estudos Sociológicos do país, que considerava a ditadura de Franco boa ou muito boa. Os dados alarmantes levaram os jornalistas a tentar compreender o resultado da sondagem. Questionados em entrevistas de rua, os jovens não conseguiram explicar em que pontos esse regime autoritário era melhor, fazendo apenas alusões pouco concretas ao tema da habitação, e a um "vivia-se melhor", indecoroso. Em novembro, vão cumprir-se os 50 anos da morte do ditador e as frases mastigadas e dadas a comer nas redes sociais, sem qualquer escrutínio, podem ajudar a compreender quanto os factos da história são deturpados para influenciar quem nunca viveu com medo de ser livre e sob repressão absoluta. Nessa Espanha que os mais novos, felizmente, não sentiram na pele, os rendimentos das famílias eram metade dos que os franceses auferiam e quem discordasse do regime era fuzilado, duas breves razões para o antigo ser pior. Quando se diz que era preciso Salazar reviver para acabar com a corrupção, não se lembra que do lado de cá, como no espanhol, os sistemas políticos despóticos são dominados por compadrios, onde não há lugar a escrutínio, onde não há meritocracia, onde as famílias "amigas" se sentam à mesma mesa. O saudosismo que se apregoa é uma ideia deturpada, que esconde o clientelismo anterior à democracia. Nesse tempo havia figuras dominantes a receber vantagens indevidas abusando dos cargos. A estratégia histriónica é uma ameaça à história, um perigo para a democracia. No outro dia, roubaram-me um sorriso: "já não se fazem homens e mulheres como atualmente".»


Isto é pior do que gozar com quem trabalha

 


Danny Ocean é parvo

 


«Quem diz Danny Ocean diz Thomas Crown, e também diz aquele velhinho, interpretado por Sean Connery, que vai à Malásia roubar não sei quê juntamente com Catherine Zeta-Jones. No passado dia 19 de Outubro, às 9h30, três ou quatro ladrões envergando coletes amarelos estacionaram um camião de mudanças junto ao Museu do Louvre, subiram na plataforma elevatória até à varanda do primeiro andar, partiram o vidro da janela, dirigiram-se à galeria de Apolo, serraram algumas vitrines com uma rebarbadora, e roubaram jóias no valor de 90 milhões de euros. Depois, saíram por onde entraram e desapareceram nas suas motas, a caminho da auto-estrada.

Note-se que não elaboraram um plano complicado, não foram requisitar as plantas do museu para ver se era possível introduzirem-se no sistema de ventilação sem serem vistos, não se disfarçaram sequer com um bigode postiço. Ora, não foi a isto que o cinema me habituou. Eu estava há anos convencido de que não era possível assaltar um museu sem antes treinar durante semanas num armazém onde era fielmente reproduzido o interior do museu e o seu intrincado sistema de raios laser, do qual era preciso escapar com cabriolas que só estão ao alcance de atletas olímpicos.

Nos filmes em que se realiza um assalto destes, a equipa de ladrões inclui sempre um especialista em explosivos, um génio da informática, um carteirista experimentado e um acrobata de nacionalidade chinesa. Em todos esses filmes, o assalto requer um investimento que chega a ascender a metade do valor do saque. Os gatunos que assaltaram o Louvre compraram uma rebarbadora e quatro coletes. Com 40 euros apetrecharam-se para roubar 90 milhões. Mais: estes ladrões não dedicaram sequer dois minutos a pensar numa estratégia para se esconderem da equipa responsável pela segurança do museu. Os guardas abordaram-nos e eles limitaram-se a fazer-lhes ver que a rebarbadora, quando em contacto com o corpo humano, aleija. Os guardas foram sensíveis a esse argumento e afastaram-se.

Na comunicação social foram publicados vídeos, feitos pelos próprios seguranças, dos criminosos a cortarem tranquilamente o vidro das vitrines. O assalto foi uma lição importante para os museus, mas sobretudo para Hollywood. Este tipo de filme deve passar a durar apenas cinco minutos. O orçamento não precisa de exceder os 40 euros. E o realizador deve concentrar-se em filmar, não os imponentes casinos de Las Vegas, nem a paisagem de Kuala Lumpur, mas o duro e prosaico perfil de uma rebarbadora.»


António José Seguro

 


29.10.25

Cigarras

 


'Cigales et Olivier', vaso de prata esmaltado, coberto com cigarras e ramos de oliveira. Cerca de 1910.
Eugène Feuillatre.

Daqui.

29.10.1929 – Era terça-feira e foi negra

 


29.10.1936 – Chegada dos primeiros deportados ao Tarrafal

 


Há 89 anos, chegaram à Colónia Penal do Tarrafal, criada por Salazar alguns meses antes, os primeiros 153 deportados. Mais exactamente, desembarcaram no local onde eles próprios foram obrigados a construir o campo de concentração que os encarceraria. Durante a existência deste «Campo da Morte Lenta», por lá ficaram 36 vidas e os corpos de 32 só foram transladados para Lisboa em 1978.


Encerrado em 1954, devido a pressões internas e internacionais, o Campo foi reaberto em 17.06.1961, por Portaria assinada por Adriano Moreira, então ministro do Ultramar, e permaneceu ativo até ao 25 de Abril, com o nome de «Colónia Penal de Chão Bom», para albergar os lutadores pela independência de Angola, Guiné e Cabo Verde. 

1978 - transladação e cortejo para o cemitério do Alto de S. João, em Lisboa:


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Salazar vence concursos televisivos, Ventura eleições

 


«Já lá vão quase 20 anos desde que Salazar foi escolhido num programa televisivo como o maior português de sempre. Na altura, os 41% que recolheu foram explicados pelo enviesamento da amostra, pois a escolha dependia de uma votação telefónica que refletia a mobilização da claque salazarista. De tal forma que noutro estudo realizado na época, assente numa amostra representativa, a votação no ditador de Santa Comba Dão caiu para cerca de 10% e os grandes portugueses afinal eram outros: D. Afonso Henriques, Luís Vaz de Camões e o Infante D. Henrique.

Retenham estes 10% e, antes de regressarmos a Salazar e a Portugal, façamos uma curta digressão pela Rússia. No seu livro O Futuro é História – Como o Totalitarismo se Apoderou da Rússia, a páginas tantas, Masha Gessen reflete sobre o papel da versão local do formato da BBC, Great Britons, na criação de um contexto ainda mais hostil aos poucos resquícios de liberalismo por aquelas paragens. A votação “popular" televisiva foi uma oportunidade para testar, de novo, o apelo de Estaline (apresentado como general patriota, mesmo sendo georgiano), e, sobretudo, para promover valores autoritários e líderes fortes. O vencedor acabou por ser o menos controverso Alexander Nevsky, herói militar do século XIII, canonizado por enfrentar os invasores ocidentais. Tudo manipulado de modo profissional e com recursos públicos, ao serviço de Putin.

Recupero este episódio para sublinhar que a pulsão autoritária não começou no último par de anos. Estamos perante uma vaga de fundo global, com protagonistas nacionais, e, sobretudo, com instrumentos eficazes de propagação. Uma pulsão que varia pouco de país para país. O que me devolve à vitória de Salazar no concurso da RTP, certamente assente numa votação sobrevalorizada, mas que revelava algo mais profundo: os 41% estavam sobrestimados, porventura os 10% correspondiam à realidade, e o que contava era a insinuação de que, afinal, um ditador era apreciado, mesmo que em silêncio.

Entretanto, um pouco por todo o Ocidente, agudizaram-se clivagens sociais latentes que tiveram a sua primeira grande expressão eleitoral no referendo do “Brexit”; a covid-19 acelerou um mal-estar larvar e as redes sociais tornaram-se armas de destruição do espaço público. Entre nós, há 20 anos, muitos olharam para a popularidade de Salazar como um mero resquício nostálgico. Depois disso, os “coletes amarelos” foram encarados como uma manifestação sem tração social, e a emergência do Chega vista como um epifenómeno, que desapareceria assim que o seu líder carismático regressasse à casa de partida, o PSD.

Uma sucessão de erros de avaliação que comprova que a popularidade de ditadores em formatos televisivos para o grande público não foi um sintoma de nostalgia política, mas sim um indício da emergência de um fenómeno novo, com agentes ativos, recursos e tempo para criar um terreno fértil.

É por isso que, com previsibilidade, ao jogar a cartada “um Salazar em cada esquina” para lançar a sua campanha presidencial Ventura sabia o que estava a fazer: não apelava ao passado, convocava o futuro. O truque garante-lhe exposição mediática, polariza e mobiliza um campo em ascensão — o dos que olham para as democracias como regimes capturados por elites, com instituições de intermediação nas quais não se pode confiar, e que aguardam por um homem forte que ponha fim à alegada “bandalheira”. Nuns casos é Putin, noutros Trump. A nós, calhou-nos o Andrezito — para usar o acertado epíteto de Isaltino Morais.»


Viagem ao passado

 


28.10.25

“A Esquerda para existir tem de falar com os abandonados”

 



Tempos bizarros

 

«Se perante o contraste das declarações de Nuno Melo e de "Chicão" (ex-líder do CDS) no caso da Flotilha Humanitária para Gaza já tinha ficado saudosa do passado, a cada semana política portuguesa reforço mais a ideia de que realmente éramos felizes e não sabíamos. O caso das burcas só veio comprovar que este "centro" direita está demasiado colado à agenda do Chega para sequer ensaiar laivos da sua identidade política original e a lei do trabalho que querem aprovar é assustadoramente próxima do radicalismo da Iniciativa Liberal. Onde vai o liberalismo político e a social democracia do PSD? E a defesa da Doutrina Social da Igreja? Por onde se esvaiu o espírito democrata cristão do velho CDS?

O diapasão está tão puxado à Direita que tudo o que é levemente social democrata é apontado como sendo radicalismo de extrema-esquerda, ao mesmo tempo em que se normalizou completamente que o PSD ande a toque de caixa, cumprindo diligentemente a agenda de André Ventura. Pior do que isso, é perceber que a oposição interna no PSD é mais Chegana que o Chega, com Passos Coelho (que há muito anda de senha na mão à espera de uma brecha para regressar numa manhã de nevoeiro) reproduzindo discursos que parecem sair de teorias da conspiração do Tik Tok de Rita Matias. Sendo fácil perceber que, havendo internamente quem não concorde com as escolhas de Montenegro, em caso de mudança de liderança no futuro, não será para recuar ideologicamente aos velhos valores do partido, mas antes para caminhar para a fusão com os populistas.=

Continuar a ler AQUI.

Ana Drago

 


Para os que acham estranho o que disse Passos Coelho, ouçam o que diz Leitão Amaro!

 


«Na anunciada intenção da AD de não privilegiar ninguém na formação de maiorias para legislar, o PS pensa que está num ménage à trois e acaba sempre por descobrir que é apenas o pau de cabeleira. Chega a ser patética a forma como o Partido Socialista se presta a uma negociação a três que, em assuntos da agenda de Ventura, acaba sempre da mesma maneira: até à véspera, parece que o PSD se vai entender com os socialistas, mas há depois umas “negociações de última hora” que atiram sempre o partido de Montenegro para os braços do Chega.

Normalmente, a decisão de negociar à direita e à esquerda passa por um desabafo público, de Hugo Soares ou de Luís Montenegro — quando não dos dois —, sobre os “ciúmes” que André Ventura e José Luís Carneiro é suposto terem por não estarem em exclusivo na relação com a formosa aliança de direita no Governo. No final, as boas intenções ministeriais para chegar a uma lei o mais consensual possível transformam-se num ataque duríssimo aos socialistas, acusados de terem escancarado as portas aos “invasores”.

O que se passou recentemente com a lei da burca, a lei dos estrangeiros e, agora, a lei da nacionalidade confirma que a AD assumiu, em definitivo, a agenda da direita radical. Não lhes interessa convencer o PS a ceder para se encontrarem a meio de um caminho que permita regular com eficácia o fluxo da imigração e a integração dessas pessoas na sociedade portuguesa. Nesta matéria, a última coisa que interessa aos partidos do Governo é terem o Chega de fora, livre para acusar a AD de estar do lado dos socialistas e dos “invasores”. Se, pelo caminho, puderem ter o PS a defender algo diferente do que defendia, tanto melhor, porque, em vez de elogiar a evolução da posição política, isso permite acusá-lo de ser responsável pela atual situação — seja lá o que isso for, para lá de uma perceção generalizada.

É com base nessa perceção que se alimenta a teoria da grande substituição, não se estranhando, por isso, que Pedro Passos Coelho — que, quando era primeiro-ministro, dizia que devíamos ter presente “a justiça moral inerente a uma política de imigração mais aberta”, lembrando até o problema demográfico das sociedades ocidentais — nos alerte agora para a questão de que “qualquer dia também acontecerá cá aquilo que acontece noutras sociedades, em que as pessoas, os nacionais que fazem parte daquela sociedade, se sentem estrangeiras na sua própria terra”. Com ironia, pode dizer-se que esse dia já chegou: basta ir ao Chiado, em Lisboa, ou à Ribeira, no Porto, por exemplo. Resultado da principal atividade económica do país, feita por estrangeiros (imigrantes) para estrangeiros (turistas).

Amaro alinha com Renaud Camus: a “grande substituição” não é uma teoria da conspiração, é um movimento em curso a que é preciso dar nome; o nosso ministro chama-lhe a grande “reengenharia”.

Não se peça para levar estas declarações a pretexto de um debate político, onde quase todos os exageros são admitidos. O ministro da Presidência falava no briefing do Conselho de Ministros, a pergunta do jornalista era esperada, a resposta estava pensada, e o Governo quer mesmo que os portugueses pensem que o PS os prejudicou, ao “escancarar as portas”, porque tinha a intenção de se beneficiar com o mal deles.

A expressão “reengenharia demográfica” sugere que o Governo do PS tentou alterar a composição populacional de Portugal através de políticas de imigração, e a expressão “reengenharia política” pretende sustentar a ideia de que essas mudanças demográficas teriam impacto político, alterando o eleitorado. Ou seja, ao regularizar imigrantes (que mais tarde podiam obter a nacionalidade portuguesa e votar), o PS estaria a moldar o mapa eleitoral a seu favor — manipulação eleitoral por via demográfica.

Tudo isto diz muito sobre o plano onde o Governo quer colocar o debate à volta da imigração e da nacionalidade, ocupando por completo o espaço do Chega. Mas diz muito mais sobre a fragilidade política em que se encontra o PS. E, talvez, sobre a miséria moral a que admite sujeitar-se. Até quando vai o PS sujeitar-se a sair enxovalhado destas negociações tripartidas?»


Moedas e o cabo, ainda

 


27.10.25

Grilos?

 


Gaiola japonesa para alojar um grilo de estimação. Em porcelana esmaltada com orifícios a imitar bambu. (Associados ao Outono, e admirados pela sua “canção”, os grilos foram populares pelo menos desde os anos 900 até cerca de 1900.)
Masanobu of Hodota.

Daqui.

Catarina Martins

 


Travar o definhamento moral

 


«Esta semana um amigo enviou-me uma fotografia de um outdoor, colocado numa zona residencial e comercial de Lisboa por uma junta de freguesia, onde se pode observar uma pessoa e um cão sentados em duas cadeiras lado a lado. Nele está escrito: "Ele conta contigo - nunca o abandones". A imagem e a mensagem espoletam múltiplas abordagens.

Relembrei-me, de imediato, que uma das grandes questões que marcam a era em que estamos é a degradação da relação metabólica homem/sociedade/natureza. Temos mais conhecimento sobre o mal que os estilos de vida "mais avançados" estão a provocar, mas respeitamos muito pouco os recursos do planeta, a natureza, os animais, as árvores e outros elementos indispensáveis para a nossa existência.

Surgiu-me logo outra interrogação. Se os outdoors são eficazes para despertar consciências, por que razão não temos as ruas cheias deles abordando - com fotografias que incomodem - grandes problemas como os custos da habitação que não param de se agravar, o preocupante abandono do Ensino Superior, a persistência da pobreza, os salários baixíssimos? Concluí que não temos (por agora) porque era preciso outra predisposição cidadã.»

Continuar a ler ESTE TEXTO de Carvalho da Silva.

É gozar com quem trabalha

 




Um salazarista sem coragem

 


«Depois destas autárquicas, André Ventura teme que se instale a ideia de que está em queda e, no início da pré-campanha presidencial, usou o truque do costume: dizer coisas chocantes para ser assunto. Fez uns cartazes assumidamente racistas, que, em vez de nos chocarem, deviam levar à intervenção do Ministério Público para repor a legalidade. Não é fácil, tendo em conta a crescente influência do partido naquela instituição. E disse que o país precisava de três Salazares.

André Ventura acha que eram precisos três Aljubes onde enfiar os seus opositores. Três Tarrafais, para os torturar e matar. Acha que a opinião dos outros devia ser suprimida do espaço público, para ficar a falar sozinho. Que os que discordam de si deviam ser perseguidos, silenciados. Que os que o enfrentam nas urnas deviam ser eliminados, como foi Humberto Delgado.

Ventura gostaria de garantir monopólio industrial aos empresários que lhe são próximos. Talvez aqueles que lhe pagam as campanhas milionárias. Esmagar a concorrência, controlar a economia até à fiscalização do último isqueiro para proteger a indústria fosforeira. Gostaria de oferecer aos patrões amigos os bons préstimos de uma polícia política, para perseguir trabalhadores insurretos. Por ele, proibiam-se as greves.

Ventura tem saudades de uma Lisboa cercada de barracas. De uma cheia a matar centenas de miseráveis. Tem saudades da pobreza extrema, do analfabetismo, do país a fugir a salto. Dispensaria o Serviço Nacional da Saúde, um sistema de segurança social universal, o ensino obrigatório. E gostaria de poder esconder tudo o que falhava através da censura. Adoraria mandar várias gerações para uma guerra. Vê-los regressar estropiados, traumatizados ou num caixão, não esquecendo as vítimas do lado oposto.

Ventura gostava que, chegado ao poder, se pudessem esconder os podres dos seus. Que um escândalo como o Ballet Rose, em que a fina flor do regime se entregava à pedofilia, pudesse ser abafado na justiça (como foi, por intervenção do seu querido Salazar) e na imprensa. Que o nepotismo e a cunha (vale a pena ler o livro de Marco Alves, “Salazar Confidencial”) fossem a regra. Gostava, gostava três vezes, que a impunidade dos seus fosse absoluta.

André Ventura é um homem sem convicções. Não é certo que muitos ditadores as tenham, para além da mera vontade de se perpetuarem no poder. Mas está na altura de levarmos a sério o que diz. Não se levou Donald Trump a sério, julgou-se que era apenas um provocador, e lá vai ele estendendo o seu poder, esmagando a imprensa livre, silenciando as universidades, controlando a justiça, utilizando todas as instituições do Estado para destruir a democracia e o Estado de Direito. Riram-se enquanto dizia ao que vinha. Sim, Ventura é um oportunista. Mas orgulha-se de Salazar. Que tal levarmo-lo a sério? Sem indignação. Apenas sabendo o que temos pela frente e agindo em conformidade.

Quanto à justificação que deu depois, dizendo, porque nos toma por parvos, que o povo usa aquela expressão – a avó dele usava-a e era uma democrata –, é apenas a o costume: atira a pedra e esconde a mão. Diz, mas tem medo de assumir o que diz. Quer o efeito, mas teme as consequências. Só uma coisa separa André Ventura de um salazarista assumido: a cobardia.»


26.10.25

26.10.24 26.10.1969 – As primeiras eleições do marcelismo



 

Há 56 anos realizaram-se as primeiras eleições legislativas do marcelismo e muitos acreditaram que a tal «primavera» anunciada iria permitir que o processo eleitoral se passasse mais normalmente do que no passado, ou seja, com um mínimo de liberdade e de decência. Não foi o caso, como é sabido.

Apesar da velha querela de ir ou não às urnas, a oposição foi a votos – com resultados bastante modestos porque todo o processo foi marcado, uma vez mais, pela manipulação e pela arbitrariedade do governo. Concorreu-se em duas frentes – CDE e CEUD –, depois de um longo processo de alianças e dissidências. As divergências giravam, não só mas fundamentalmente, à volta do processo para escolha de nomes para candidatos. A CEUD propunha uma escolha em «perfeita paridade», feita a nível das duas Comissões, a CDE, mais «basista», defendia «uma concepção de representatividade construída a partir “de baixo”, devendo por isso os candidatos a deputados ser apenas a resultante da aplicação sistemática do princípio electivo em todos os escalões, a partir da base» (Comunicado da CDE, publicado em alguns jornais de 11 de Setembro de 1969.)

A cisão acabou por acontecer, apesar de muitas tentativas para a evitar, mais ou menos convictas conforme os intervenientes, e consubstanciadas em múltiplas e longuíssimas sessões. No que se refere a Lisboa, lembro-me de uma delas (terá sido a última?), relativamente restrita, que se realizou em casa de Salgado Zenha. José Tengarrinha e Mário Sottomayor Cardia (que, tacitamente, representavam o PCP) foram os mais empenhados em manter a unidade, desdobrando-se em sucessivas propostas de conciliação. Sem sucesso.

P.S. – Alguns podem estar interessados em conhecer, ou relembrar, o «Resumo do programa político da Comissão Democrática Eleitoral do Distrito de Lisboa».

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Miguel Milhão

 


Assim vão os nossos milionários.

José Cardoso Pires

 


27 anos sem ele. Este país ficou mais triste – e eu também.

Mahalia Jackson nasceu num 26 de Outubro

 


Mahalia Jackson nasceu em 26 de Outubro de 1911, gravou o primeiro disco com 26 anos, acumulou sucessos no mundo inteiro ao longo de décadas.

Cantou quando John Kennedy foi eleito presidente em 1961 e na inesquecível «Marcha sobre Washington», em 1963, depois do célebre discurso de Martin Luther King «I have a dream!». Mais tarde, em 1968, cantou também no seu enterro.





Entre todas as canções por que passou, esta será talvez a mais «batida» de todas, mas com selo de garantia para sempre:


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O degelo dos indiferentes

 


«O termo “conflito congelado” é um dos mais reveladores do nosso tempo. Descreve impasses que a diplomacia aprendeu a gerir sem resolver. Do Cáucaso à Transnístria, do Saara Ocidental à Caxemira, o mundo especializou-se em conter tensões, adiar soluções e chamar a isso estabilidade. Foi uma conquista civilizacional, mas também uma anestesia moral. Porque o mesmo gesto que impede o colapso pode cristalizar o futuro.

E é aqui que se impõe a pergunta: estaremos a assistir ao nascimento de um novo conflito congelado na Europa? A guerra na Ucrânia começa a parecer menos uma batalha e mais uma rotina. O entusiasmo inicial deu lugar a cálculos orçamentais, e as manchetes diárias a comunicados previsíveis. Enquanto isso, em Washington, fala-se mais de tarifas do que de trincheiras.

E é precisamente nas margens desse mapa que algo se começa a descongelar. Do Nepal a Marrocos, de Madagáscar ao Peru, a geração Z recusa a ideia de que o impasse é natural. As regiões onde o mundo congelou crises e adiou promessas são hoje as que fervem de desassossego. As geografias da imobilidade e a da revolta começam a coincidir.

Esta geração não conheceu o pós-guerra nem o otimismo das transições democráticas. Cresceu entre crises, guerras “administradas” e promessas de desenvolvimento que nunca chegaram. Assistiu à diplomacia a conter a violência e, ao mesmo tempo, a normalizar o impasse. E decidiu reagir. Cansada de esperar por consensos, tenta agora acelerar a história.

De Rabat a Katmandu, de Antananarivo a Lima, há um padrão que se repete. No Nepal, as manifestações de junho forçaram a demissão do primeiro-ministro Pushpa Kamal Dahal e abriram caminho a um governo de emergência. Em Marrocos, o movimento Gen Z 212 começou num servidor de Discord e transformou-se numa rede de centenas de milhares de jovens que pedem reformas básicas em saúde e educação. Em Madagáscar, a vaga de protestos levou à fuga do presidente Andry Rajoelina e à criação de um governo interino militar. No Peru, a repressão policial matou um manifestante e feriu dezenas. Interpretar tudo isto como mera desordem pública é perder o essencial. Estas manifestações são o reflexo do desfasamento entre instituições que aprenderam a gerir o mundo e cidadãos que exigem que ele volte a mover-se. Não são revoluções no sentido clássico, mas explosões de impaciência cívica em países onde a promessa democrática se tornou rotina e a desigualdade norma.

Há riscos claros: a captura populista, a manipulação digital, a tentação autoritária. Mas há também o que falta quase em todo o resto: energia, sentido de urgência e esperança. A ironia é que o degelo chegou de onde menos se esperava. Não das mesas de negociação, mas das praças.

Enquanto a diplomacia trabalha, com a sua necessária lentidão, para manter o diálogo vivo, os jovens reagem à urgência do quotidiano. Falam de transportes, de escolas, de hospitais. É política em estado bruto, sem slogans, sem marketing ou uma estratégia elaborada de comunicação, nascida da sensação de que o Estado já não responde. A diplomacia continua a ser essencial. Evita o colapso, preserva a palavra, impede que o mundo se parta em mil pedaços. Mas talvez o que esta geração esteja a pedir não seja o fim da diplomacia, e sim que ela volte a inspirar. A paz que hoje procuramos já não é apenas ausência de guerra. É presença de dignidade. O degelo é sempre caótico. Liberta o que estava reprimido, dissolve fronteiras, cria instabilidade. Mas é também profundamente humano. A apatia é uma forma de morte; o degelo, por mais turbulento que seja, é um sinal de vida.

O desafio é conciliar a prudência das instituições com a urgência das ruas. A diplomacia evita a catástrofe, mas a cidadania evita o conformismo. Uma sem a outra são estéreis. Talvez seja essa a mensagem implícita destes protestos: o mundo não precisa de mais gelo. Precisa de corrente. E se há uma ironia final em tudo isto, é esta: passámos anos a medir a temperatura do planeta e esquecemo-nos da temperatura da política. Pois bem, o clima mudou.»