«Há patriotismo e há nacionalismo travestido de patriotismo. Eu considero-me patriota, sei bem, quando estou cá dentro, onde estão os meus pés, em que solo piso e como esse solo me faz, e quando estou fora como falta sempre qualquer coisa. Cosmopolitismo é uma boa coisa e faz-nos muita falta, mas ser patriota e cosmopolita nada tem de contraditório porque a gente espreme, espreme e, sem diminuir o mundo, há sempre algo que nos molda antes do mundo: a pátria. Às vezes, quando falava desta diferença, citava algo que li há muito tempo sobre o teatro Nô japonês, sobre as personagens que estão vivas e os fantasmas: as primeiras mantinham os pés no chão, os segundos levantavam-nos como se levitassem. Procurei para este artigo uma referência e não encontrei nenhuma, vai como está na minha memória.
Há uma coisa que mais que tudo representa a pátria: a nossa língua, o português, seja o nosso, seja o do Brasil ou dos PALOP, ou mesmo dos crioulos como o papiamento. Podem falar diferente, mas a língua que está lá por trás é o português.
O que certamente não representa a pátria é o desprezo pelo português nas redes sociais e, mais importante ainda, a a indiferença política perante o maior atentado recente contra a língua portuguesa que foi o Acordo Ortográfico. Aqui está uma pergunta obrigatória aos políticos em legislativas e presidenciais que ninguém faz, e que deve ser colocada a partidos que se dizem nacionalistas e conservadores e falam o português bastardo do Acordo Ortográfico de 1990, como o Chega.
Na deterioração do português nas redes sociais há dois aspectos: um, são os erros de ortografia e gramaticais; outro, a escassez do vocabulário dominado pelos insultos. Esta deterioração começa nos jovens que, entre outras coisas, como não lêem a não ser este tipo de chorrilho de asneiras contínuo na cloaca das redes sociais, não têm vocabulário para sustentar qualquer frase um pouco mais elaborada ou um raciocínio. Como escreveu a Bárbara Reis, há pouco tempo no PÚBLICO, a substituição pelos emojis de qualquer expressividade ainda mais empobrece a comunicação.
Vejam-se estes exemplos de uma caixa de comentários na página de Facebook do Chega:
È por camara escondida para depois os visitar-mos na calada da noite. E apagar essas velas
Eles com as coécas todas mulhadas
O homem está corretíssimo,mas como é um homem onesto a grande parte desta gente mamona,ou BURRA NÃO GOSTA.
Nem mais .. é a mesma coisa aqui na englaterra.. se fore preson por mais de um ano . Compre a pena e a deportado
Estão com medo de alguma coisa! Força André Ventura,se fores presidente da República,no CHEGA a substitutos a altura para liderar o partido! CHEGA [sic]
Todos os dias, nesta página de Facebook, e por todo o lado nas caixas de comentários, escreve-se assim, e pode-se imaginar como fala quem assim se expressa. Ora, quem escreve assim não é patriota, porque despreza aquele que é um dos principais factores de identidade nacional: a língua.
Esta não é uma questão de elites contra o “povo”, mas sim um confronto entre quem respeita a sua língua e quem a despreza, entre quem despreza o saber e quem sabe o que lhe falta saber. Isto hoje é uma questão política, porque a democracia precisa da consciência do valor do saber, do falar, do conhecer. Esta consciência é hoje um dos alvos preferenciais do populismo que valoriza a ignorância.
Quem, por razões sociais, não tem o mínimo de educação formal, vem de meios de vida difícil, não teve oportunidade de estudar, teve de atravessar muita dificuldade, muita miséria, tem vergonha de não falar ou escrever bem, porque tem a aguda consciência que isso é um factor de pobreza e exclusão. Quem, por outro lado, fala e escreve mal português e tem um vocabulário exíguo pode escrever com erros de ortografia palavra sim ou palavra não, e ser muito eficaz em usar emojis de merda em linhas e linhas ou em insultar, mas não pode bater no peito nacional pelo seu país.
Uma das suas ironias é a reivindicação aos imigrantes de, para terem a legalização, saberem falar português, coisa que os seus julgadores não sabem de todo. É por isso que muitos imigrantes, a começar pelos que vieram das nossas colónias, falam muitas vezes melhor, num português impecável, e querem que os seus filhos aprendam aquela que é, para muitos deles, também a sua língua natal. Teriam vergonha de escrever a língua absurda das citações acima.
Mas esta deterioração da língua vem de cima para baixo, vem de quem tem poder no topo para terminar nesta cloaca de ressentimento e raiva. O Acordo Ortográfico de 1990 — a que, felizmente, quem gosta da sua língua e do seu país resiste —, para além de um desastre diplomático, uma nulidade em termos de “unificação” do português — posso, por exemplo, num processador de texto, escolher a opção “português de Angola” —, traduziu-se num abastardamento da língua. Esse abastardamento foi retirar-lhe a memória, eliminando os traços da sua origem no latim. Como disse também Pessoa: “A ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.” Tiraram-lhe o pai e a mãe, obra desses firmes partidários da tradição e da família.
Sim, “isto” não é o Bangladesh, mas também não é o Portugal dos que desprezam a nossa língua, a língua em que nasceram, e que usam pior do que “os” do Bangladesh a sua. Podem ser muita coisa, mas patriotas não são.»