Apesar de estar muito longe de Portugal, cheguei a este texto do Público de hoje, 2/8/2012, e parece-me importante disponibilizá-lo aqui.
O
Expresso está a oferecer
gratuitamente aos seus leitores uma História
de Portugal dividida em nove fascículos, apresentando-a como “um dos livros
mais vendidos de sempre” entre os que se dedicaram à nossa história. O Expresso acha (eu não) que este é “hoje
reconhecido como um dos melhores livros sobre a História de Portugal”, e terá
querido disponibilizá-lo a dezenas de milhares de leitores para quem é
apetecível uma síntese em 900 páginas da “história de um grande país”.
O
livro é coordenado por Rui Ramos (RR), um historiador especializado na
Monarquia Constitucional e na I República portuguesas mas que se encarregou
nesta obra de cobrir também o período entre 1926 e a atualidade. As épocas
medieval e moderna estiveram a cargo de dois historiadores (Bernardo
Vasconcelos e Sousa e Nuno Monteiro) cujo trabalho não comentarei. Dedicarei
esta e a próxima crónicas especificamente ao trabalho de RR, que concebeu e
coordenou a obra e disse há dois anos que ela pretendia ser meramente “uma
porta de entrada na História”, e “aguçar o apetite do leitor”, descrito como
“exigente” (Prólogo, p. II), e “fazer com que as pessoas queiram ir ler mais”
(PÚBLICO, 31.5.2010). Esperemos que sim.
RR
não é um historiador qualquer; a sua visibilidade pública é ajudada, como em
pouquíssimos casos, pelo seu acesso às tertúlias televisivas e à imprensa, onde
se tem destacado como uma das penas mais sólidas da direita intelectual
portuguesa, que reivindica “o prazer da provocação intelectual e reconhece um
aguçado espírito de contradição, sobretudo quando o alvo é a esquerda” (Ler,
janeiro 2010). Para percebermos o que RR entende por “provocação”, e em
resposta a quem acha — como eu — que o seu trabalho é puro revisionismo
historiográfico política e ideologicamente motivado, ele entende que “toda a
História é revisionista” e nela “é necessário afirmar originalidade” (PÚBLICO,
31.5.2010).
Centremo-nos
hoje na narrativa que RR faz do papel de Salazar na história. Para ele, o
Estado Novo era “um regime assente (…) no monopólio da atividade legal por uma
organização cívica de apoio ao Governo”, e esta é a forma como ele classificará
sempre o partido único da ditadura, com “a chefia pessoal do Estado” entregue a
“um professor catedrático introvertido”, um homem “de outra espécie”, com “nada
de uma personagem ditatorial” como a dos líderes da Europa fascista do tempo
(pp. 627 e 638-39). Neste campo, a primeira das suas preocupações é a mais
comum entre os historiadores da área de RR: desenhar um Salazar sensato e algo
neurasténico, que não gostaria de uniformes (apesar da origem militar do regime
e do seu caráter inevitavelmente policial e repressivo) e que nada teria a ver
com Hitler, Mussolini ou Franco. O “pobre homem de Santa Comba”, como o ditador
se definiu a si próprio, teria “para Portugal objetivos simples” pois
propunha-se “fazer viver Portugal habitualmente” e “queria instituir uma
“ditadura da inteligência” para “fazer baixar a febre política” no país e
“reencontrar o equilíbrio” (p. 639).
A
segunda originalidade de RR decorre
daqui e descola totalmente da realidade: oferecer-nos um Salazar liberal, por
oposição aos republicanos de 1910 (um dos ódios de estimação de RR), que,
praticamente totalitários, teriam estado empenhados em fazerem da sua
“revolução” uma “transformação cultural violenta” feita por um “Estado
sectário” (pp. 585-86)! Salazar, pelo contrário, queria “assentar o Estado, não
na “abstração” de indivíduos desligados da sociedade e arrastados por ideias de
transformação radical, mas no que chamou o “sentimento profundo da realidade
objetiva da nação portuguesa””. Para RR, “a “missão” do líder” era a de
“reconciliar os portugueses com essa “realidade”, e ao mesmo tempo ajudá-los a
adotar modos de vida sustentáveis”. Em resumo, “o seu modelo implícito era o
que no século XIX se atribuíra aos “ingleses”, prático, “pouco sentimental”:
“Eu faço uma política e uma administração bastante à inglesa”” (pp. 639-40) —
isto é, um Salazar primeiro-ministro da rainha Vitória... Se acompanharmos as
suas crónicas no Expresso, a lição da
História para a análise da crise atual parece evidente. Hoje, “a austeridade é,
no fundo, a vida depois de desfeitas as últimas ilusões do passado” –
exatamente como Salazar, que “tinha ambições, mas não ilusões” (RR, in Sábado, 14.1.2010), se havia empenhado
em “reconciliar os portugueses com a realidade” e em “ajudá-los a adotar modos
de vida sustentáveis”! E o que é que, na opinião, de RR foi insustentável no
nosso passado recente? “Uma classe média de funcionários (…), uma economia de
trabalhadores e empresários protegidos, e a estatização de grande parte dos
serviços (educação, saúde) e da segurança social” (Expresso, 28.7.2012).
RR
leva à prática o que ele próprio estabeleceu como o fim “desta História de Portugal [o de] despertar a
atenção para a importância da História como meio de dar profundidade à reflexão
e ao debate público sobre o país.” Para ele, “a História (…) é uma maneira de
pensar” (Prólogo, p. IV). Tem toda a razão. E a sua está bem à vista.
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