«Quando um comentador se sente equidistante de duas forças acha que elas são extremadas e equivalentes. Ora, não há equivalência possível entre o discurso do Bloco de Esquerda e do Chega sobre a imigração ou direitos das mulheres, para pegar em dois temas do debate de ontem entre Mariana Mortágua e André Ventura. São opostos, o que não quer dizer que sejam extremados.
Não vou fazer a análise das vitórias e derrotas de cada um dos intervenientes – concordo com a vitória dada pela generalidade dos comentadores a Mortágua –, nem dos temas. Interessa-me mais a estratégia que Mortágua usou no debate contra Ventura e tem usado na campanha. Independentemente das potencialidades e riscos para a esquerda (não tenho certezas), tem sido a estratégia mais eficaz no enfrentamento com a extrema-direita, como Jean-Luc Mélenchon, figura pela qual tenho pouca simpatia, tem mostrado em França. Tem sido o único a tentar disputar, com algum sucesso, o descontentamento estrutural perante as consequências de um capitalismo globalizado, financeirizado e profunda crise de representação política. Adotando a estratégia do populismo de esquerda, teorizado e defendido por Chantal Mouffe e Ernesto Laclau e outros autores. O mesmo aconteceu com Bernie Sanders, nos Estados Unidos.
Demagogia, populismo e extremismo tornaram-se sinónimos, no debate público. Mas um demagogo não tem de ser populista, um populista não tem de ser demagogo e nem um nem outro têm de ser extremistas. Querem discurso mais demagógico do que a comparação entre as finanças do Estado e das famílias? Não foi sobejamente usado pelo mainstream político, durante a última crise financeira? E dizer que se baixam impostos e a economia cresce milagrosamente? Não é apresentar uma solução fácil para um problema complexo? E não é a base da proposta económica da AD, nestas eleições? Não é o neoliberalismo radical extremista? E que tem ele de populista?
Populismo é das palavras mais esvaziadas de sentido no debate público. Parece servir apenas para desdenhar a popularidade alheia. Como se o problema de uma proposta política fosse ter fácil adesão popular. Apesar de a poder incluir, populismo não é demagogia. Porque ela sempre existiu em todos os campos políticos. Pode ser o discurso que explora o medo das pessoas. Mas, de alguma forma, todas as propostas políticas dependem de esperanças e medos: o medo da insegurança, do desemprego, da guerra, da pobreza, da fome, da doença. Pode ser o discurso que tenta fazer parecer fácil o que é difícil. Mas a simplificação da proposta faz parte da necessidade de conquistar adesão emocional. E o discurso profético é, sempre foi, um elemento central em todo o discurso político.
Na forma como pensa e organiza o confronto político e social, o populista opõe o campo maioritário de oprimidos, o “povo", a uma minoria privilegiada. E propõe-se representar o espaço popular. Mas o populismo de esquerda e de direita são muitíssimo diferentes. Não são eticamente comparáveis e politicamente equivalentes. O primeiro não tem a exclusão e a desigualdade como objetivos e os mais frágeis como alvo. Pelo contrário.
O populismo de direita dirige-se para "cima", através do anti-intelectualismo, que escolhe as elites culturais como alvo; e para "baixo", sejam as minorias étnicas e religiosas e os muito pobres, responsabilizados pela insegurança dos "cidadãos normais e de bem", sejam as minorias sexuais, que, responsáveis pela corrupção moral da sociedade. John Judis, em “A Explosão do Populismo”, chamou-lhe de “populismo triádico”.
O populismo de esquerda tem como alvo apenas os "de cima" – a elite económica, associada ao privilégio, à exploração ou à corrupção. Traduz-se na expressão "99% contra o 1%", que marcou o discurso do movimento Occupy Wall Street e de Sanders. Judis chamou-lhe de “populismo diádico”. Não deixa de ter riscos relevantes: o confronto entre "nós" e "eles" acaba sempre por desumanizar o adversário e simplificar os campos políticos. Mas é difícil qualquer confronto político que não se afirme por oposição aos outros.
O relevante do debate de ontem não foi a violência do confronto. Esteve longe de ser o debate mais quente em que o líder do Chega participou. Nem foram as mentiras ou a demagogia. O mais evidente foi o confronto entre estes dois populismos. Mariana Mortágua não atacou André Ventura por ele se afastar do consenso que ela própria partilha com os restantes partidos políticos, contra o securiatismo ou a xenofobia. Também o fez, mas não foi o centro do seu ataque que, apesar de animar sempre os comentadores, nunca fez mossa na extrema-direita. Se fizesse, ela não continuaria a insistir no securitarismo e na xenofobia como tática de crescimento político.
Para além de defender as vítimas preferenciais do populismo de direita – os imigrantes –, Mariana Mortágua empenhou-se em mostrar que o populismo de Ventura protege o poder económico, que nunca inclui na “elite”. Porque depende dele, protege-o e serve-o. Depende do seu financiamento. E protege-o e serve-o na defesa dos off-shores, dos “vistos gold” ou das borlas fiscais, usando os exemplos escolhidos pela líder do Bloco de Esquerda. A prova que esta estratégia é eficaz é que o Chega, que nunca cede no ataque aos de baixo, tenta esconder a proteção que dá aos de cima, simulando a defesa inconsequente de medidas contra a banca, por exemplo. Quem não se recorda, no entanto, das três votações diferentes do Chega sobre a transferência de dinheiro público para o Novo Banco, procurando ficar bem na fotografia sem realmente a pôr em causa? Tenta esconder quem serve, sabendo que a denúncia da sua cumplicidade é eficaz.
Ontem, não assistimos a um confronto entre extremos. Assistimos à disputa da representação de um descontentamento profundo com aquilo a que, simplificando, chamamos “sistema”. E esse descontentamento tem de ser representado e disputado. Não sei se me revejo a consequência deste populismo de esquerda. Sei que ele é indispensável para travar o crescimento da extrema-direita. E não é por fazer essa disputa (não obrigatoriamente pelos mesmos eleitores) que os dois lados se tocam. Só ela pode impedir que o Chega consiga fazer na maioria do povo o que já consegue fazer na polícia. Mariana Mortágua mostrou, no debate de ontem, a eficácia da estratégia. E os seus riscos.»
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