16.7.22

Cúpulas, grandes cúpulas (4)

 


Mausoléu de Gur-e Amir. Samarcanda, Uzbequistão (2011).
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Dores do Ceilão

 


[Estive no Sri Lanka como turista há alguns anos e gostei muito de «entrever» esse país, então mais ou menos calmo pelo menos em grande parte do território, o que não é hoje o caso. Um dos motivos para deixar aqui este texto.]

«Como um tsunami, a onda de choque da guerra na Ucrânia continua a flagelar a maioria dos países mas, muito mais dramaticamente, os pobres ou os mais frágeis. O mais recente a mergulhar no caos, com a população em revolta a tentar varrer a elite dominante, é o Sri Lanka.

A Ucrânia não é a raiz do mal, é o golpe de misericórdia num país há 20 anos governado irresponsavelmente. A alta dos preços esgotou as reservas financeiras. Não é uma crise, é uma falência, que atinge brutalmente a grande maioria dos 22 milhões de habitantes: escassez de alimentos, de medicamentos, do gás doméstico e dos combustíveis, para não alongar a lista. Antes disso já a covid-19 e os massacres jihadistas da Páscoa de 2019 (258 mortos) tinha arruinado o turismo. "O Sri Lanka estaria em crise mesmo sem a guerra na Ucrânia, mas esta veio agravar tudo", diz o International Crisis Group.

O Governo apela a que os funcionários metam cinco anos de férias e emigrem para mandarem dinheiro para casa. A revolta levou à fuga do Presidente da República, Gotabaya Rajapaksa, depois de uma massa de gente assaltar o palácio presidencial. Quando a falência se anunciou, o Governo recusou negociar com o FMI e reduziu as importações, provocando a escassez dos produtos e paralisando parte da economia. O Governo é um clã familiar, um caso de "nepotismo absoluto". Mahinda Rajapaksa foi eleito em 2005 para esmagar a revolta dos Tigres Tamil. Ganhou, ficou na presidência até 2015, arruinando o país com "elefantes brancos" financiados pelos chineses. Fez um gigantesco aeroporto, que recebe um avião dor dia, ou um complexo portuário que nunca foi rentabilizado e uma empresa pública chinesa acaba de "alugar por 99 anos" contra o perdão de um empréstimo de mil milhões de dólares. As potências vizinhas vão comprar o Sri Lanka a preços de saldo. A Mahinda, sucedeu em 2019 o seu irmão Gotabaya, o general da família, prometendo erradicar o terrorismo jihadista. Mahinda passou a primeiro-ministro (foi corrido em Maio) e os principais ministérios estavam nas mãos da família.

História trágica

Disto falam os jornais. É aconselhável olhar para a trágica história recente do Ceilão, hoje Sri Lanka, independente desde 1948. É um país em guerra consigo mesmo. Nele se cruzam a religião e a língua. Mas a religião não é o factor primordial de conflito. É a língua que define a nação. O cingalês, língua do ramo indo-europeu, é a língua materna de 75 % da população, cuja grande maioria é budista e cerca de 5% cristãos. O tâmil é uma língua dravídica falada no Sul da Índia, de religião hinduísta, católica ou muçulmana. É a língua, eterno tema de conflito, que melhor define a identidade das comunidades.

Limito-me a lembrar dois conflitos que ensanguentaram a ilha durante décadas. A rebelião marxista de jovens revolucionários cingaleses contra a elite no poder: em 1971 e retomada em 1987-1990. Balanço calculado em 30 mil mortos. Depois a sanguinária guerrilha dos Tigres Tamil, pela independência do Norte da ilha, entre 1983 e 2009: talvez cem mil mortos.

Derrotada a rebelião tâmil, o nacionalismo radical cingalês vira-se agora contra os muçulmanos, cujos direitos e liberdades e costumes quer anular, exigindo para o budismo o monopólio do espaço público. O Sri Lanka é uma democracia que, à falta de federalismo, significa uma ditadura da maioria cingalesa.

A não-violência é a essência do budismo. Mas uma doutrina elaborada por monges do século VI justifica a violência quando a defesa do budismo está ameaçada (na altura pelo hinduísmo). Alguns mosteiros do Sri Lanka encaram o país como uma espécie de derradeiro bastião budista. Os radicais cingaleses têm um fantasma semelhante ao da "Grande Substituição" da extrema-direita francesa: recusa da igualdade dos hindus, suspeitos que os quererem substituir, como outrora aconteceu na Índia, ou agora o temor da demografia dos muçulmanos. Os Rajapaksa conseguiram um milagre: "Todas as religiões se juntaram ao movimento de cólera, budistas e muçulmanos, hindus e católicos", observou uma jornalista. Por quanto tempo?»

Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público, 14.07.2022
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Lisboa e o país

 

@carlosbotelho 

«As políticas obcecadas com o crescimento ilimitado, o lucro, as engenharias financeiras e o determinismo tecnológico, no pressuposto de que tudo o resto vem por arrasto, não cumprem a missão central da política que se situa na construção de respostas aos reais problemas das pessoas, sempre com uma forte carga social. Concomitantemente, geram enredos que bloqueiam a utilização racional, a organização e a coesão dos espaços/territórios em que vivemos, e impedem a construção de estruturas sólidas para o desenvolvimento da sociedade.

A ansiedade social generalizada que hoje se vive resulta de desagrados dos cidadãos. No presente podem relevar-se quatro origens: as precariedades que invadem as nossas vidas e em particular o trabalho; a desvalorização da Administração Pública e do emprego público; o distanciamento dos centros de decisão e, por consequência, a desconfiança das pessoas face às elites públicas e privadas que decidem; a não resolução de tensões - verdadeiras, falsas ou enviesadas - entre os chamados interesses da capital e os do "resto do país".

Na passada quinta-feira, na pré-apresentação do Relatório do Observatório sobre Crises e Alternativas, titulado "A segunda crise de Lisboa" - a publicar no último trimestre do ano -, economistas, geógrafos e sociólogos refletiram sobre as crises que Lisboa (essencialmente enquanto metrópole) e a Área Metropolitana têm vivido. Na ação política e na discussão pública falta rigor na especificação das distintas realidades com que nos deparamos quando falamos do concelho de Lisboa, de Lisboa enquanto metrópole, ou da área metropolitana. Essa lacuna não possibilita a identificação do que é preciso articular nesses três espaços e, ao mesmo tempo, bloqueia a sua relação profunda com as políticas de caráter nacional. Vejamos alguns exemplos.

A decisão sobre o novo aeroporto de Lisboa exige reflexão sobre problemas que dizem respeito à cidade, à metrópole, à área metropolitana, à sua relação com outras áreas e com os interesses dos portugueses do todo nacional. A solução a encontrar na região de Lisboa condicionará ou potenciará as opções para todo o país, nomeadamente as relativas ao caminho de ferro, aos sistemas de transportes e mobilidades, à descentralização e regionalização. Com a aplicação do PRR, quer-se alterar o perfil da economia, ganhando a aposta da utilização das qualificações dos portugueses, das transições energética e digital, do aumento do valor acrescentado. Mas, esse caminho é muito difícil, pois a metrópole Lisboa continua fortemente assediada pelas forças externas que atuaram sobre ela, num processo que consolida a especialização do país em atividades de baixo valor acrescentado.

A região de Lisboa vem empobrecendo. Ela não resistiu à desindustrialização e perde centros de decisão privados que não ficam no território nacional. Grande parte dos cidadãos que nela habita vê as suas condições de vida degradarem-se. Até pode ter havido diminuição das desigualdades, mas num quadro global de empobrecimento. A Área Metropolitana de Lisboa, com mais de 3 milhões de habitantes, está em declínio. É pouco plausível que haja no país outra região com capacidades estruturais e dinamismo que compensem esta perda.

Só haverá soluções para o desenvolvimento do país com políticas transversais devidamente planificadas, aplicadas em várias escalas e articuladas para o todo nacional.»

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15.7.22

Cúpulas, grandes cúpulas (3)

 


Catedral ortodoxa de Astana, Cazaquistão (2016).
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Assenta-me hoje que nem uma luva

 

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Fogos florestais enlouquecem os canais de TV em Portugal

 


Zé-António Pimenta de França, um jornalista meu amigo, publicou ontem este texto importante no Facebook:

«Eu deixo pura e simplesmente de ver notícias na TV quando chegam os fogos florestais. Faz-me mal ver a excitação irresponsavelmente criminosa que reina nas redacções de TV pelo país fora. São horas e horas seguidas de directos ininterruptos sem qualquer racionalidade, dignidade ou mais-valia informativa sobre os incêndios.

Ressalvando o caso da RTP, que neste aspecto se tem portado uns furos acima dos canais privados (embora ainda com alguma cedência excessiva ao espectáculo), as direcções de informação dos canais nacionais não estão interessadas em informar de forma digna e racional sobre nada de nada. Estão interessadas é em dar espectáculo e em atrair audiências através de sensacionalismo histérico, veiculado através de directos constantes, mesmo quando não há razão nenhuma para directos. Não fazem informação, fazem entretenimento e captação de audiências utilizando como base material noticioso. A triste coisa que se chama, em linguagem técnica 'infotainment'.

Para isso, despacham equipas de reportagem pelo país fora, atrás dos incêndios, as quais, em regra, para agradar às suas chefias, não hesitam em atrapalhar bombeiros e equipas de socorro em prol do espectáculo voyeurista.

Ainda ontem à noite me ligou, escandalizado, o meu irmão Miguel (que é professor, nada tem a ver com jornalismo) contando-me algo que acabava de presenciar: uma repórter de TV entrevistava um comandante de bombeiros numa frente de fogo, perseguindo-o com perguntas e perguntas sem parar até que o senhor, depois de se ter escusado várias vezes delicadamente a continuar a conversa porque tinha trabalho urgente, sem resultado, acabou pura e simplesmente por virar costas com um grito "Deixe-me em paz! Não vê que estou a trabalhar?"...

Agora mesmo, acabo de encontrar um post do Rui Elias Maltez (o post não está partilhável, por isso optei por copiá-lo para aqui, junto com a ilustração que o acompanhava), narrando uma situação incrível, na qual o repórter Amílcar Matos (TVI/CNN) afirmava, numa intervenção em directo, o seguinte:

"48º, é o n° que se quer atingir, hoje, aqui em Coruche. Se esse número [de graus] for atingido temos record batido e Coruche faz a festa"... enquanto no insersor, uma legenda 'informa' a audiência que "Coruche pode bater hoje recorde europeu"!...

Ou seja, 48 graus de temperatura, um inferno, será uma festa para os coruchenses, diz, todo contente, o Sr. Amílcar! Pasmo total!!!

Esta frase é uma clara demonstração da tortuosa perversidade reinante na 'cultura' das redacções de televisão em Portugal (uma perversidade que já há muito contaminou todo o sistema de comunicação social nacional, sublinho).

Não há aqui nada mais que o aproveitamento mais desalmado e egoísta da desgraça dos incêndios. Zero objectividade, zero empatia, zero preocupação com o drama das populações. Há apenas oportunismo perverso e cruel da desgraça alheia. Faz-me lembrar o caso dos ladrões que aparecem nos grandes acidentes de avião ou comboio, para espoliar os feridos e mortos dos seus pertences. Paralelamente, estes "repórteres" pilham nas emoções das vítimas dos incêndios, mostrando como se afligem e choram ao ver as chamas a devorar as suas casas, colheitas ou animais, as suas vidas a esvair-se em fumo. Fazem deste drama um espectáculo. E insistem e voltam a insistir, sem qualquer espécie de pudor, perguntando uma e outra vez "Onde estava? O que sentiu? E agora que vai fazer?"...

E cuidam sempre de sublinhar a falta de bombeiros, de meios aéreos, para culpar alguém (como se fosse possível algum país ter bombeiros ou meios suficientes para responder a uma catástrofe destas!). Preocupação legítima? Não, apenas a segunda fase do aproveitamento da desgraça, introduzindo o espectáculo de oportunismo político que se segue, invariavelmente. Uma vez as chamas extintas, prossegue o 'infotainment' dos fogos, desta vez na arena política, com acusações e inquéritos, etc...

Lembra-me a amiga Joana Lopes (obrigado!) de algo que era para incluir aqui neste texto e me passou: acresce que a exibição contínua de imagens de incêndios é contraproducente porque encoraja os pirómanos a passar à acção... Isto está estudado e comprovado. Este espectáculo dantesco em exibição permanente nos noticiários só poderá levar mais gente a atear fogos, na esperança de terem o seu momento de glória e de verem os aviões e os bombeiros em acção.

A exibição destas imagens devia ter um tempo máximo permitido (curto, o suficiente para dar a notícia e mais nada) por dia. Desta forma os noticiários ver-se-iam obrigados a dar só o essencial.

Compete aos órgãos profissionais dos jornalistas impor regras e disciplina nesta selva...

Mas os senhores directores de informação das televisões não querem saber disto para nada. Querem é encher os bolsos dos donos dos canais com conquista fácil de audiências voyeuristas que os incêndios garantem...

Esta gente não tem nada a ver com o jornalismo, profissão que pratiquei toda a vida, durante quase quatro décadas. Só nos envergonham a todos! São desprezíveis!!!...

PS: Cada vez mais me convenço mais que o directo é o maior inimigo do jornalismo, na medida em que, ao eliminar ou reduzir drasticamente o papel do mediador (a função central do jornalismo) elimina também a reflexão racional sobre a realidade, que constitui a sua missão essencial. O directo é o princípio da morte do jornalismo porque privilegia a emoção, a qual usurpa o lugar da reflexão e o trabalho de confirmação e contextualização da realidade, essenciais à sua compreensão...»

Fica este inacreditável vídeo:


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Este país não é para verão

 


«Ainda nos lembramos de Pedrógão? Sim. Ainda nos lembramos. Morreram 66 pessoas. 253 ficaram feridas. Mais de 250 casas foram atingidas pela tragédia. É difícil esquecer. Mas, anteontem, a memória ficou ainda mais viva, quando o repórter da TSF Rui Tukayana foi apanhado de surpresa pelas chamas enquanto circulava na A1.

"Espero que ninguém pare", disse quando circulava na via com chamas nas bermas e fumo negro a bloquear a visibilidade. E se alguém parava? Felizmente, ninguém interrompeu a marcha.

O comandante da Proteção Civil André Fernandes explica. Diz que "há sempre um tempo de resposta desde que é dada a indicação à GNR para fazer o corte, e quer a GNR quer a Brisa, que é a concessionária da autoestrada, fizeram o corte no tempo que é normal para estas situações". A dúvida ficará entre todos aqueles que viram as imagens. Parece evidente que a A1 já deveria ter sido cortada ao trânsito.

São estes cenários de horror que estamos a ver e a viver diariamente, ano após ano. Que resultam de uma má gestão da floresta, de falta de meios, da falta de recursos humanos, da falta de limpeza de terrenos e até da burocracia para identificar propriedades. Um país que em menos de 42 horas corta três autoestradas (A1, A25, A28) e uma série de itinerários complementares não é um país seguro.

E as alterações climáticas não explicam tudo. Se são as próprias autoridades a afirmar que a maioria dos incêndios é de origem criminosa ou resulta de negligência, compete-lhes minimizar os problemas e não fazer cair a toda a hora a responsabilidade em cada um de nós.

Tem razão o primeiro-ministro quando diz que "as respostas não são mais meios, mas mais cuidado". Mas sobretudo mais cuidado com a segurança que o Estado tem de garantir a todos os seus cidadãos.»


Fica aqui o vídeo da tsf, referido no texto:


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14.7.22

Cúpulas, grandes cúpulas (2)



 

Taj Mahal. Agra, Índia (2005).
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14.07.1918 – Ingmar Bergman

 


Ingmar Bergman chegaria hoje aos 104. Foi durante alguns anos o meu cineasta de eleição e criou-me um fascínio tal pelos seus filmes, pelo ambiente em que se passavam e pelo seu país, que me fez gastar os primeiros tostões que consegui poupar: fui a um balcão da TAP, comprei um bilhete e pus-me a caminho de Estocolmo sem nada planeado.

Para não o esquecermos, três pequenos vídeos entre muitos outros possíveis:






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Terão sempre o 14 de Julho

 


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Relato da resignação

 


«Os incêndios são o mais velho conto de verão. Fazem parte dos dias quentes, das férias. Banalizam-se. Até ao momento em que nos entram pela casa dentro, e nos revelam toda a sua tragédia, castigando um país assimétrico, litoralizado, enfeudado na resignação.

Todos os anos se fala em prevenção. Todos os anos se anunciam medidas. Todos os anos, todos, falhamos. Pedrógão marcou e moldou de tal modo as consciências que se acreditou. Tinha de ser. Somaram-se polémicas: com o SIRESP, com as limpezas das matas e as multas, com a falta de meios, com a falta de culpados e de políticas.

Passados cinco anos, estamos igual. Com populações ameaçadas, casas ardidas, a iminência de tragédias maiores. Estas condições adversas extremas são anormais, mas ainda assim esperadas face às transformações climáticas.

O que falta? Tudo, desde sempre. Não há organização ou ordenamento florestal que resistam face a dias sucessivos com temperaturas avassaladoras, vento, número elevado de fogos em simultâneo, mãos criminosas, falta de cuidado de todos.

Mas é exatamente por isso que é preciso cada vez mais investimento em segurança das populações, evitando que programas como o Aldeia Segura fiquem a meio do caminho, sem meios, sem técnicos, encravados na inoperância.

Os números e os factos, apenas deste exemplo. Três anos e meio após a criação do programa "Aldeia Segura, Pessoas Seguras", escreveu há bem pouco tempo o JN, 2233 aglomerados rurais estavam envolvidos em medidas de proteção contra o fogo, mas só 858 possuíam planos de evacuação e muitas áreas prioritárias estavam fora.

Não há ordem para arregaçar as mangas que vença a inércia. E no final do verão sobram as cinzas, sempre as cinzas. E a dor.»

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Dêem-me uma ovelha

 


... que eu também sou gente!
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13.7.22

Cúpulas, grandes cúpulas (1)

 


Mesquita Ubudiah. Perak, Malásia (2012).
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Isto está complicado

 


… e não é só nos termómetros.
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13.07.1958 - A carta de um bispo do Porto a Salazar

 


Há 64 anos, cerca de um mês depois das eleições presidenciais de 1958, às quais Humberto Delgado tinha concorrido, António Ferreira Gomes, bispo do Porto, escreveu uma longa e corajosa carta a Salazar, que lhe valeu dez anos de exílio em Espanha, França e Alemanha, entre 1959 e 1969.

Para muitos, sobretudo católicos, a conjugação destes dois acontecimentos – eleições com Delgado e carta do bispo do Porto – foi o verdadeiro pontapé de saída para a resistência e luta contra a ditadura durante as décadas que se seguiram.

Vale a pena ler ou reler o texto para se perceber a importância que teve na época.
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Partilha ou selvajaria?

 


«Quando começou, parecia promissor. Conceitos como "consumo colaborativo" ou "economia de partilha" eram revolucionários nos anos da crise financeira de 2007/2008 (em Portugal, a fatura mais pesada chegou em 2011, com a crise da dívida pública e a troika).

Parecia possível aceder a bens e serviços de uma forma mais racional, poupando dinheiro e até aproveitando para ganhar algum. Adivinhava-se um tempo em que cada um de nós poderia alugar diretamente um carro ou uma casa em qualquer ponto do planeta, a um preço razoável. Ou, na outra face da moeda, alugar o nosso carro e a nossa casa e assim compor o orçamento familiar, sempre demasiado estreito. Sem barreiras, porque uma plataforma digital não era bem um intermediário. Também queriam ganhar dinheiro, bem entendido, mas estavam ali sobretudo para pôr em contacto direto cidadãos do Mundo que acreditassem no consumo colaborativo. Melhor ainda, estavam ali também para dar dinheiro a ganhar a quem quisesse aproveitar a economia de partilha. A globalização com um cheiro a liberdade individual. Assim andámos cerca de uma década. Até se perceber que afinal já não estávamos a poupar. Que não íamos usar o carro de outro cidadão, antes uma viatura de uma frota de uma qualquer empresa. Conduzido por alguém que tem condições laborais piores que o antigo motorista de táxi. Até se perceber que não havia partilha de casas. O que tínhamos era gente a entrar e a sair do apartamento onde já não havia vizinhos, expulsos pela subida absurda no valor das rendas. As plataformas eram, afinal, multinacionais que seguiam a máxima de sempre: esmagar a concorrência e conseguir o máximo de lucro. Pior, como agora vemos nos "Uber Leaks": sem escrúpulos a corromper políticos (chamam-lhe lóbi) e garantir que não há regulação. Nem resistência de trabalhadores organizados em sindicatos. Privatizar os lucros, socializar os riscos. É a síntese desta economia de partilha digital. Capitalismo selvagem no seu melhor.»

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12.7.22

Lucidez

 

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Sri Lanka

 


Imagens impressionantes!

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12.07.1904 – Pablo Neruda

 


Pablo Neruda nasceu em 12 de Julho de 1904, em Parral, no Chile, e morreu em Santiago, em Setembro de 1973, poucos dias depois do golpe que vitimou Salvador Allende. Não se tinha candidatado às eleições presidenciais de 1970 por ter considerado que Allende tinha mais possibilidade de as vencer, como veio a verificar-se.

Recordemo-lo um pouco, com a sua voz inconfundível.




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A propósito do texto anterior

 


Eu transpiro de raiva a divulgar isto sentada num sofá. Os portugueses estão amortecidos, votaram numa maioria absoluta e estão à espera, sem esperança, que alguma solução caia do céu. Encarasse o PS (e Marcelo…) uma enorme multidão na rua quando se quis aumentar a TSU e outro galo cantaria, como cantou com o «Que se lixe a troika». Não é com as manifs ritualizadas da CGTP que isto vai lá, nem a invadirmos palácios como no Sri Lanka. Não sabemos, estamos engavetados.
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É fazer as contas

 


«António, chamemos-lhe assim, recebe o salário mínimo nacional: 705 euros. Desconta, como todos nós, para a Segurança Social. No caso dele, 77,55 euros por mês. O valor líquido mensal é de 625 euros. António é licenciado, em marketing. Trabalha como vigilante numa daquelas empresas a que, erradamente, chamamos de "segurança". Faz o turno da noite, da meia-noite às oito da manhã. Quando "tem sorte", fica com o horário da tarde, das 16.00 à meia-noite. Como entra à meia-noite, tem de ter carro próprio.

Os transportes públicos, ainda que estivessem integrados, e conjugados, não lhe cobrem o horário. O carro, tem 15 anos, comprado em segunda mão. Paga, por mês, 150 euros de empréstimo. De cada vez que vai, agora, encher o depósito, são cerca de 100 euros. Cinquenta litros vezes dois euros. Quase um sexto do salário é para atestar. Como tem de abastecer duas vezes por mês, são 200 euros. Por mês. Mais os 150 euros da prestação. (…) Paga renda. Fora da cidade, onde conseguiu uma casa por 200 euros. Aliás, um "pequeno T1", como diz a canção. António, só em despesas fixas, só para ter onde dormir e forma de chegar ao trabalho despende 550 euros. Recebe 625.

António tem de conseguir comer, ter luz e água em casa, gás no fogão, telefone e televisão com o que lhe sobra - 75 euros mensais. Dois euros e pouco por dia.

Como recebe mais de 540 euros por mês, António vive (?) acima do limiar da pobreza. Não conta, portanto, para as estatísticas com que governos e oposições, patrões e sindicatos, se debatem no Parlamento e na Concertação Social. Tem casa, trabalho, carro. O Estado, magnânimo, dispensa-o de pagar IRS. É, portanto, um cidadão bem na vida, já que é proprietário de um bem móvel. Com o que lhe sobra depois de pagas as despesas fixas com a casa e o carro - recordo, 75 euros - ou tem água e luz, ou come. António gostava de ser pai. Gostava de ter um carro elétrico, porque a energia é mais barata que o combustível e ele preocupa-se com o ambiente. Gostava de poder viajar, ir a um restaurante, nem, que fosse uma vez por mês. Comprar um livro, ver um concerto ou ir a um festival de música. Ou ir ao teatro, ao cinema, ao museu. A vida de António resume-se a ir de casa para o trabalho, do trabalho para casa. E a fazer contas. Contas de subtrair. É certo que tem um contrato de trabalho e recebe 14 salários e não doze. Esse dinheiro "a mais", generosamente acordado na Concertação Social, serve para pagar as contas já citadas - revisão, pneus, óleo, portagens e outras avarias inesperadas. Para sermos corretos, os 75 euros que lhe sobram, a juntar a cerca de 1300 de dois meses extra, chegam aos dois mil cento e cinquenta euros... por ano. Não chega a 200 euros por mês.

É fazer as contas.

António já passou dos trinta. Quase todas s noites, sai de casa depois das 23.00, chega ao trabalho pouco antes da meia-noite. Pelas nove da manhã está de regresso a casa e vai dormir. Acorda a meio da tarde. Come uma refeição, simples e em casa. E espera pelas onze da noite para ir, outra vez, de olho aberto, vigiar um escritório vazio. "Tem sorte". Não apanha chuva, nem sol, é um bom "posto", aquele no escritório. Podia estar numa fábrica e ter de fazer rondas no exterior, com o calor do verão e o frio e chuva do inverno. Podia estar numa obra, a evitar que alguém roubasse máquinas e materiais de construção. Podia estar numa estação de metro a lidar com passageiros fora de horas, sem-abrigo, bêbados e meliantes. Nada disso. Está "quentinho", o escritório tem ar condicionado, nunca acontece nada de noite. Ele e o telemóvel, com o wi-fi do escritório ligado, passam a noite juntos. Como tem tempo, António é bem informado. Lê muito, sabe o que se passa em Portugal e no mundo. Consegue discutir política, tecnologia, filosofia, música e cinema. Mas não tem com quem. Os amigos têm "horários normais" e António, que gostava de ter um filho, uma família, uma casa com mais que um quarto, um carro elétrico, jantar fora ou sair à noite, pelo menos de vez em quando, fica em casa.

A fazer contas.

N. do A.
António é uma personagem de ficção. Mas, atenção, qualquer semelhança com a realidade de Portugal em 2022, não é mera coincidência.»

11.7.22

Sabe-se lá...

 

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Salada russa

 

Ide e lede uma cónica de António Araújo, excelente como todas as que publica no DN:

«Causou sensação há dias a notícia de que os anfitriões da Cimeira da NATO em Madrid tinham decidido servir aos convidados e jornalistas uma fresquinha ensaladilla rusa, que, a alguns, terá parecido certeira metáfora da guerra que vimos vivendo e, a outros, tão-só uma piada de gosto duvidoso, parecida com a do despacho aeroportuário de um atoleimado governante lusitano.

O caso da salada russa correu mundo e correu tinta, fez manchetes na imprensa internacional, tanto mais que, há um par de meses, vários cozinheiros espanhóis, em solidariedade com a Ucrânia, tinham mudado o nome para "salada ucraniana" ou "salada Kiev", aditando-lhe, em certos casos (v.g., o do chef José Andrés), um conveniente par de tomates. Logo recordaram os entendidos nestas coisas da gastronomia & política que, em tempos de Franco, para não serem acusados de criptocomunismo e russofilia, vários restaurantes de Espanha haviam rebaptizado a salada russa de ensaladilla nacional, mais ao gosto do caudilho e camarilha.»

Continua AQUI.
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Eterna gratidão?

 


Louriçal do Campo, Castelo Branco.
(Fotografia tirada de ontem.)
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José Eduardo dos Santos e novos colonos

 


«Quando morre uma figura pública, os comentadores decentes vivem sempre o dilema de como serem justos sem serem insensíveis. Até por saberem que os que partem deixam familiares e amigos que sofrem com as críticas a quem já não se pode defender. Mas este texto não é apenas sobre José Eduardo dos Santos. É sobre o que lhe é prévio e lhe sobrevive.

José Eduardo dos Santos foi escolhido como sucessor de Agostinho Neto porque parecia ser a escolha menos definitiva e o mais fraco e fácil de incluenciar. Não reforçou o poder pela força do revolucionário ou pela visão do líder, mas através da compra da elite do MPLA, movimento de inspiração socialista que hoje não é mais do que uma plataforma de negócios, distribuindo a riqueza pela outrora desavinda elite do partido. Conseguiu, depois 27 anos de guerra e meio milhão de mortos, a paz. É verdade. Com a paz, construiu uma nação onde, apesar das imensas riquezas, mais de metade dos angolanos sobrevive com menos de 1,90 dólares por dia e onde permanecem das piores esperanças médias de vida e mortalidades infantis do mundo. A oportunidade falhada de construir uma democracia resume-se no facto dele próprio nunca ter sido eleito nominalmente presidente – a segunda volta das eleições nunca se realizou e, para não correr riscos desnecessários, José Eduardo dos Santos mudou a Constituição para que a eleição deixasse de ser direta. Depois da exibição pública da morte de Savimbi, também comprou a UNITA e reforçou assim o poder do MPLA. Foi e continuará a ser dentro dele que as lutas pelo poder se fazem.

Depois da queda do muro de Berlim, afastou os poucos a quem a ideologia ainda dizia alguma coisa e instituiu uma cleptocracia de estilo capitalista como sistema económico. Não houve qualquer reflexão política na mudança ideológica do MPLA (que deixou de ser dos “trabalhadores”), houve puro oportunismo de uma elite que tratava de si própria. O CEO-ditador, principal acionista de Angola, adaptou-se ao mercado. Acumulando o estatuto de dirigentes partidários, militares e empresários, muitos dos que chegaram ao poder como libertadores iriam construir a nova classe dominante de Angola. À cabeça do roubo pornográfico, os herdeiros mimados do presidente. Com o aparelho repressivo do Estado, que nunca deixou de recorrer ao assassinato, tortura e prisão, ao serviço desta nova casta de milionários.

Julgar que em 50 anos de independência se vencem 500 de colonialismo, delapidação, opressão e subdesenvolvimento é o conforto dos ex-colonos. Que, no nosso caso, vivem das memórias forjadas pelo seu próprio privilégio. Outra das características da desigualdade, que no colonialismo tem a marca acrescida da discriminação racial, é que a parte privilegiada julga saber muito sobre o país onde vive, mas ignora os sentimentos, as condições de vida e as aspirações da maioria que colonizava. E por isso os processos de descolonização são, logo à partida, tão traumáticos para o colonizador. Ele não compreende o que não pode compreender. Porque, se pudesse, a sua revolta – e houve brancos que se revoltaram – teria vindo com a consciência da realidade.

O colonialismo de séculos não morre em décadas. Não morre nas relações internacionais. Aquilo a que chamamos neocolonialismo não é mais do que o prolongamento de dominação dos que aproveitam a vantagem da exploração do passado para a continuar. O colonialismo não acaba com a independência de um país. Podem mudar os colonos, mas não muda a convicção de que recursos e a soberania não pertencem aos povos que vivem nos territórios coloniais. É impossível compreender os movimentos nacionalistas da América Latina sem compreender que, dois séculos depois de Bolívar, estes povos ainda lutam contra o colonialismo do Norte.

Em África, o colonialismo deixou marcas especialmente difíceis de ultrapassar, seja pelo legado da escravatura, seja por fronteiras desenhadas para o capricho dos interesses coloniais, seja pela criação de instituições sem qualquer relação com as realidades sociais e culturais dos povos, que arrogantemente consideramos universais.

Mas o colonialismo também perdura como cultura económica e social interna às nações. Nuns casos, copiaram o modelo capitalista ocidental, noutros o modelo soviético ocidental, em quase todos uma nova elite de libertadores substituiu a elite colonial e, sem realmente garantir a autodeterminação do seu povo, perpetuou as relações coloniais de poder. Com uma economia extrativista que não garante desenvolvimento e soberania. E com a construção de uma elite "colonial" que, concentrando toda a riqueza, se isola do povo. Tiveram nos mestres coloniais o seu modelo. E, como tantas vezes acontece – veja-se Israel –, o oprimido mimetiza o opressor quando muda de lugar. Porque aquelas são as relações de poder em que foi formado.

Que não haja equívocos: celebro a descolonização e os que dizem que foi “mal feita” parecem acreditar que, apesar de ter acontecido tão fora de tempo, ainda era nosso direito determinar como se faria. É sempre preferível que os povos cometam os seus próprios erros, combatam as suas próprias elites. Recuso qualquer paternalismo. Mas o colonialismo, anterior e posterior à independência (é impossível ignorar como EUA, URSS, regime sul africano do apartheid e Cuba usaram a guerra civil como uma guerra por procuração) é a base da tragédia angolana.

Numa entrevista à SIC, José Eduardo dos Santos, socorrendo-se das suas longínquas memórias marxistas, disse que Angola vivia a fase da acumulação primitiva de capital. Uma forma sofisticada de dizer que as suas futuramente respeitáveis elites capitalistas tratavam do saque do seu povo para o serem. E que ele e a sua família não podiam deixar de participar na construção, já não do “homem movo”, que Zeca Afonso julgava ter vindo da mata angolana, mas da classe de "novos colonos". A nossa suposta relação de “amizade” com Angola passou, no essencial, por termos, como antiga potência colonial, a função de recetores do roubo.

Mas nem tudo são más notícias. Os pequenos focos de rebelião de jovens urbanos sem filiação partidária ou a transição pacífica, apesar de crispada (como se vê na polémica em torno do funeral), para um sucessor que não teve de recorrer aos velhos golpes militares são a notícia que não tem notícia: depois de séculos de colonialismo, a descolonização é um processo, não é um momento. Na vida dos angolanos e nas nossas cabeças ocidentais.»

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10.7.22

O Padroeiro dos Fundos

 


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Alô, PSD

 


Há ideais para tudo na vida. Por exemplo, agradar e arrancar votos a quem até agora preferiu xenofobia, racismo, pena de morte, etc., etc. Com um novo estilo de «social democracia», sei lá…
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Portugal é um destino privilegiado de investimento internacional?

 


«Há mais um estudo internacional a indicar que Portugal é hoje um destino privilegiado de investimento internacional.

No ranking da consultora britânica Savills, Portugal surge em 2º lugar a nível mundial como destino de 'nearshoring' (i.e., relocalização da produção para regiões próximas do país investidor ou do mercado de destino) e no 7º lugar (2º entre países europeus) como destino de 'offshoring' (i.e., deslocalização global da produção).

Isto confirma a noção de que a desregulação laboral, social e ambiental (que permite baixos custos de produção) é hoje menos relevante do que já foi nas decisões de localização da capacidade produtiva pela empresas multinacionais.

Podem ser boas notícias para o país e para quem acredita que é possível uma inserção bem-sucedida de Portugal na economia global sem ser através de uma corrida para o fundo no respeito pelas pessoas e pelo ambiente. Mas (há sempre um mas) não é certo que isto só traga coisas boas.

Nem todo o investimento traz valor acrescentado. E a atractividade de Portugal como destino de investimento estrangeiro dá azo a dinâmicas especulativas, em particular no mercado imobiliário, que se reflectem em custos crescentes (para a habitação das famílias e para as actividades económicas em geral) e em riscos de instabilidade.

A diferença entre bons e maus governos é que os primeiros aproveitam estas oportunidades e minimizam os riscos com os olhos postos no futuro, enquanto os segundos se deslumbram com os resultados imediatos, incentivando investimentos predatórios e deixando os problemas para quem vier a seguir.

Logo se verá qual é o nosso caso. Infelizmente, qualquer que seja o desfecho, os eleitores só saberão quando for tarde demais.

(O estudo está disponível aqui.)»

Ricardo Paes Mamede no Facebook
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Há um jardim crioulo em Lisboa

 


«Não está fácil. Localmente, a gritaria é geral. É o dinheiro que mingua na hora de pagar na caixa do supermercado. É a habitação a preços impossíveis. É a onda de calor sufocante que já não é vivido com inocência. É a confusão no aeroporto para quem quer ir e vir. Mas para quem deseja circular no interior da cidade também não está melhor, com excesso de procura para a oferta existente e ainda assim a insistência em todos os discursos é no intensificar e não no refrear. E globalmente não está melhor, com guerra, degradação ambiental e desigualdades gritantes. Há um aroma a conflito logo pela manhã, misturado com a excitação pós-pandemia em tentar viver sofregamente o que não foi possível lá atrás.

Pelo meio, algumas ilhas de esperança. Quem tem ido, nos dois últimos fins-de-semana, aos jardins da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, sente-o. Não é tanto o facto de ali estar a acontecer um evento chamado Jardim de Verão (este domingo será o último de nove dias), extensão da exposição Europa, Oxalá, com sessões de cinema e música, sendo esta obra de criadores das novas gerações afro-portuguesas. Até aqui nada de novo. Há décadas que existem protagonistas das comunidades racializadas a ocupar palcos por esse país fora, inclusive ali, na Gulbenkian, onde acontecimentos como o Estado do Mundo ou o Próximo Futuro foram tanto reflexo como prenúncio de dinâmicas interculturais vindouras. A surpresa, a acontecer, não tem de forma nenhuma que ver com os corpos negros em palco. A novidade é, num lugar com grande peso simbólico como a Gulbenkian, olhar-se à volta e haver tantos ou mais corpos negros do que brancos entre o público, desfrutando do espaço, em pé, dançando, ou deitado na relva, comungando de um espírito e espontaneidade como nunca ali se vira.

A Europa por vir que a exposição no interior pretende mostrar e celebrar está ali, no exterior, com uma grande diversidade entre a assistência, com o exclusivismo a ser substituído pelo acesso inclusivo, com pessoas de múltiplas origens, trajectos e aspirações, a que se aliam outras formas de estar e ocupar o local. Sim, há uma Lisboa crioula, para citar Dino d’ Santiago, o responsável pela programação musical, ao lado de DJ Marfox, e ela está ali representada. Tal como existe uma outra ideia de Europa possível, onde os “outros” que passamos o tempo a designar já são, afinal, apenas um “nós” plural, complexo mas desafiante, transportando novas interrogações, capazes de introduzirem novos modos de ser e sentir. Sem suavizações (até porque essa não é a realidade experimentada pela maioria e continuamos uma sociedade segmentada, antagónica e assimétrica), eis algo estimulante que vale a pena anotar.

Até porque não é facto isolado nesta Primavera-Verão de Lisboa. Noutros lugares emblemáticos, como o teatro D. Maria II, na residência oficial do primeiro-ministro António Costa, durante as comemorações do último 25 de Abril, ou através da exposição Interferências - culturas urbanas emergentes, patente no MAAT, que originou há semanas a reinterpretação de uma intervenção mural colectiva que ocorreu no pós-25 de Abril de 1974, tem-se verificado o mesmo. Claro que, em simultâneo, a essa maior visibilidade e protagonismo dos corpos negros, também se vão criando novas resistências. Mas há nitidamente novas vozes e uma dinâmica a ser criada que parece irreversível. Prova de que é possível fazer a diferença quando lugares institucionais de grande representatividade para o colectivo estão dispostos a partilhar o poder, o espaço, os sentidos e os imaginários, envolvendo de forma muito concreta quem por norma não acede a eles.

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