«Hesitei em intitular esta crónica “Orwell está vivo!”, porque, esta semana, recorri ao 1984 para dar uma aula sobre linguagem e, no decorrer desta, não pude deixar de constatar o quanto esta distopia era hoje, de certa forma, uma realidade. Poderíamos substituir o “Guerra é Paz. Liberdade é Escravidão. Ignorância é Força” por “Genocídio é Autodefesa. Infanticídio é Dano colateral. Direitos Humanos são Extremismo”.
Temos assistido a esta inversão de palavras, de conceitos, de práticas de várias formas. Um dos exemplos mais emblemáticos é o da palavra woke, que surge inicialmente em movimentos antirracistas que defendem a necessidade de acordar, de estar consciente dos processos de discriminação e dominação e que, entretanto, foi subvertida numa palavra com uma conotação negativa pela extrema-direita e uma parte da esquerda. O “wokismo”, tal como a fantasiosa “ideologia de género”, transformou-se assim numa ideologia caracterizada como perigosa ao ponto de certas vozes não hesitarem em qualificá-la de fascista, vozes para quem o facto de já não poderem utilizar insultos como “preto” ou “maricas” sem serem criticadas passou a ser visto como o expoente máximo da opressão. Isto, no mesmo momento em que pessoas são violentadas ou mortas só por serem negras ou LGBTI+.
No contexto da guerra genocida de Israel contra o povo palestiniano, esta inversão é recorrente a vários níveis, um dos mais perturbantes é a crítica indignada do slogan “From the River to the Sea” como sendo um cântico nas manifestações que defende o desaparecimento de Israel, no mesmo momento em que Israel está de facto a destruir a Palestina, a massacrar crianças. Não são cânticos, é fome, sede, mutilações, queimaduras, pessoas enterradas vivas, assassinatos, bombas, destruição de casas, museus, bibliotecas, universidades, escolas, tendas, etc.
Outra inversão surpreendente é a de chamar radicais ou extremistas a quem se manifesta contra um genocídio, contra um massacre abominável , e não só as últimas imagens insuportáveis do ataque ao campo de refugiados em Rafah, são as de milhares de crianças com corpos queimados, decapitados, imagens tão monstruosas que não seriam sequer possíveis nos mais violentos filmes gore. Quem reage a estas imagens e grita para que este horror cesse não é uma pessoa radical ou extremista, é uma pessoa humana, que está no lado certo da História. É a radicalidade de quem permanece em silêncio face a esta monstruosidade que nos deveria preocupar.
Num artigo sobre a passividade dos observadores norte-americanos, com poder de decisão, do genocídio do Ruanda, “Bystanders to Genocide” (2001), da jornalista, escritora e diplomata Samantha Power, a questão da culpa é sublinhada por várias pessoas entrevistadas. Algumas lamentam não ter feito mais, questionam se se deviam ter demitido de forma pública ou até, como testemunha Prudence Bushnell, na altura colaboradora do gabinete dos Assuntos Africanos do governo de Bill Clinton, corrido nua pela Casa Branca para chamar a atenção. Apesar de achar que o seu gesto poderia nem ter sido notado, lamenta não o ter feito.
Uma outra alta funcionária, Susan Rice, declara também sentir culpa e que deveria ter agido de forma mais drástica: “Jurei a mim mesma que, se alguma vez enfrentasse uma crise semelhante novamente, tomaria uma ação dramática, mesmo que isso significasse fracassar de forma espetacular.” Na altura, provavelmente, se estas diplomatas tivessem recorrido a ações espetaculares seriam chamadas loucas, radicais ou extremistas. Pensamos que a neutralidade, o silêncio é a atitude moderada face aos problemas do mundo, e, no entanto, o silêncio tem consequências dramáticas. O silêncio, explica Ervin Staub, especialista em psicologia do genocídio, no artigo “The Psychology of Bystanders, Perpetrators and Heroic Helpers” (1993), “incentiva os perpetradores, que frequentemente interpretam o silêncio como um apoio às suas políticas”. Em matéria de genocídio, de massacre de crianças, não há silêncios inocentes.»