14.9.24

Fala!

 


Trump musicado




 

Ser senhor da sua morte

 


«Não me interessa muito a discussão jurídica e técnica sobre a eutanásia, porque ela é um biombo para duas concepções sobre a vida e a morte, sobre a liberdade de cada um dispor do seu corpo e os limites do sofrimento e da dor que também cada um está disposto a ter, assim como o modo como defronta a decadência do seu corpo e cabeça. Repare-se que, nesta enumeração, o sujeito da decisão e da acção é sempre individual, e as únicas garantias na lei que contam são aquelas que asseguram o predomínio da vontade individual, com liberdade e consciência. Se há, por isso, uma decisão estritamente pessoal e íntima é aquela de pôr termo à vida através da eutanásia. Em última razão, esta é a liberdade mais fundamental, ser senhor do seu corpo face à vida e à morte, ser senhor da sua morte.

Qual o grau de interferência que o Estado pode e deve ter face a essa liberdade última? Nos programas dos principais partidos portugueses está uma resposta a esta questão, que remete para o modo, como, por exemplo, os deputados devem comportar-se face a legislação sobre a eutanásia, como aliás sobre o aborto. Aqui os partidos dividem-se, PCP, BE, PS olham para as pessoas essencialmente como cidadãos, como membros da polis, que são governados pelas regras da polis, decididas democraticamente, que implicam que qualquer decisão sobre esta matéria é de natureza cívica e não depende da consciência individual. O terreno da consciência, incluindo as convicções religiosas, deve ser submetido à decisão democrática de como se organiza a sociedade, e à definição dos direitos e obrigações dos seus cidadãos. Mesmo que se admita um terreno de liberdade de consciência ele é sempre a excepção e não a regra.

Compreende-se que assim seja quando se trata de costumes e práticas de carácter religioso que menorizam as mulheres, como é o caso da excisão feminina em certas comunidades islâmicas africanas, que existem aliás em Portugal. Aliás, o confronto cultural que atravessa as democracias europeias sobre como actuar face a práticas cujas vítimas são essencialmente as mulheres, seja através de sociabilidades proibidas, trajes, comportamentos de poder assentes na família, é revelador da dificuldade desta questão. Os direitos fundamentais, que são uma construção política, nem por isso devem ser relativizados, porque há aqui um adquirido civilizacional, com um fundamento humanista que devemos ter e defender.

Mas há uma outra concepção patente nos partidos que incluem uma visão personalista nos seus programas, o PSD e o CDS. Essa visão personalista, genética no caso do PSD, através da influência que tinha a doutrina cristã, em particular a doutrina social da Igreja, nos homens que fundaram o partido, a começar por Francisco Sá Carneiro, em que é que ela se traduz na prática? O personalismo de Emmanuel Mounier é fortemente inspirado numa interpretação filosófica da doutrina cristã e, como o nome indica, parte do princípio de que a “pessoa” não se reduz ao cidadão, mas inclui uma dimensão metapolítica, na qual se concentra determinado tipo de liberdades de consciência, como sejam as ideias sobre o mundo, concepções sobre a vida e a morte e convicções religiosas.

Sá Carneiro, que incluiu no programa do PPD a laicidade do partido – e é por isso que uma tentativa de importação do “Deus, Pátria e Família”, que se tentou fazer no tempo de Cavaco Silva, violava o programa do partido –, tirava uma outra consequência da ideia de que havia uma dimensão para além da política que não podia ser reduzida à cidadania. E essa consequência é que, em determinadas decisões, não se podia impor uma orientação do partido, se elas estiverem assentes na liberdade de consciência individual, como se verificava com o aborto e com a eutanásia. Ou seja, a solução em votações sobre essas matérias implicava necessariamente liberdade de voto e quando, por exemplo, num comportamento autoritário, e violador do programa do PSD, por parte de uma direcção de bancada parlamentar, se impunha disciplina de voto, não devia ser respeitada. No caso do PSD isso aconteceu várias vezes em votações sobre o aborto e ainda bem. Quem foi indisciplinado estava mais próximo da concepção personalista fundadora do partido, exercendo uma liberdade de consciência. O mesmo aconteceria se houvesse disciplina de voto a favor do aborto e deputados cristãos a violassem.

O caso da eutanásia é um deles. Remete para uma liberdade íntima, talvez a mais forte de todas as liberdades, a de ser senhor da sua morte. Caso tal acto implique a ajuda de terceiros, ou seja, não se trate de suicídio, a liberdade desses terceiros, que têm também direito numa matéria deste tipo a julgar pela sua consciência, deve ser garantida. Mas, ao mesmo tempo, não deve haver qualquer implicação legal, cumpridas que estão regras que devem apenas garantir a integridade da vontade de quem decide pôr termo à sua vida numa morte assistida.

Já é tempo de se deixar de andar às voltas com tecnicidades jurídicas cujo único papel é impedir que a eutanásia tenha uma base legal, correspondendo à vontade maioritária na Assembleia. É uma péssima maneira de criar obstáculos, com base em convicções religiosas que deviam ficar para quem as tem, para impedir que homens e mulheres sofram desnecessariamente ao se lhes tirar o poder de controlar a sua morte sem mais sofrimento e sem dor. É uma liberdade que também desejo para mim e lutarei por ela o que for preciso.»


Nuno Crato e a falta de professores

 



13.9.24

Um belo objecto

 


Vaso cilíndrico de vidro amarelo com aplicações azuis, decorado com clematites. Cerca de 1920.
Émile Gallé.

Daqui.

A galinha dos ovos de ouro

 

«Nenhum serviço nacional de saúde é sustentável se não apostar na redução da carga da doença, com um foco especial na promoção da saúde. Portugal continua a ser, nos países europeus, um dos que menos investe nesta dimensão, que, para além da vertente económico-financeira, tem impacto na melhoria da qualidade de vida dos cidadãos.

Impressiona perceber que num programa de transformação do SNS não exista nenhuma estratégia focada na prevenção da doença. Facilmente se verifica, nestes meses de governação, que a aposta clara é no mercado da doença. Ser saudável não induz a procura de serviços de saúde nem gera despesa.»


Jean-Luc Godard

 


Dois anos sem ele.

«Qu'est ce que je peux faire? J'sais pas quoi faire! Qu'est ce que je peux faire? J'sais pas quoi faire! Qu'est ce que je peux faire ? J'sais pas quoi faire!»



Um país kafkiano-johnniewalkeriano

 


«Uma questão que raramente se coloca, no âmbito dos estudos literários, é a seguinte: o que poderia ter escrito Kafka se estivesse bêbado? Sóbrio, escreveu a história de um homem que é submetido a um processo incompreensível por um sistema de justiça absurdo. Mas bêbado talvez pudesse ter inventado Portugal. Por vezes, certos comentadores suspiram que determinada realidade portuguesa é kafkiana, esquecendo que o país parece viver sob a influência de outro autor importante, além de Franz Kafka. Esse autor é Johnnie Walker.

A fuga de cinco reclusos do estabelecimento prisional de Vale de Judeus é mais um óbvio e fulgurante exemplo de kafkianismo-johnniewalkerismo. Os fugitivos não escaparam pela calada da noite, mas em pleno dia; não recorreram a um sofisticado plano, mas a uma prosaica escada; a fuga não foi detectada imediatamente, mas quase uma hora depois; quem proferiu a frase “fugiram cinco!” não foi um guarda, mas outro recluso; as diversas forças de segurança não foram acertadas imediatamente, mas apenas horas — ou até dias — depois; as câmaras de vigilância existem, e filmaram a fuga, mas não havia ninguém a ver as imagens. Todos compreendemos isto muito bem porque os serviços prisionais têm com as câmaras de vigilância a mesma relação que nós temos com as bicicletas estáticas. Um dia, olhamos para a bicicleta estática na loja e decidimos: agora é que eu vou começar a fazer exercício. Compramos a bicicleta estática. Instalamos a bicicleta estática no quarto. Usamos a bicicleta estática uma vez. Daí em diante, a bicicleta estática passa a funcionar como cabide. A mera presença da bicicleta estática lá em casa dá-nos a sensação de que fizemos alguma coisa pela nossa boa forma física, assim como a presença de câmaras de vigilância na prisão dá aos serviços prisionais a sensação de que fizeram alguma coisa para prevenir as evasões. O facto de não haver ninguém a usar a bicicleta estática (nem a ver as imagens captadas pelas câmaras de vigilância) não nos desmoraliza. A bicicleta foi adquirida e instalada (e as câmaras também). A massa gorda (ou a população prisional) não seria capaz da desfaçatez de se acumular na zona abdominal (ou de se evadir), ignorando o nosso investimento na bicicleta (ou nas câmaras). Além disso, é importante não esquecer o seguinte: nós vivemos num país ridículo. Há quem viva num país violento. O melhor destino é, sem dúvida nenhuma, o nosso. Talvez isso explique porque é que o ridículo persiste. É muito difícil de combater. Já todos assistimos a manifestações em que centenas de milhares de pessoas exigem, aos gritos, “Basta de violência!” Mas é muito difícil imaginar uma multidão que se mobilize para exigir mudança empunhando cartazes que dizem: “Basta de ridículo.”»


12.9.24

Amílcar Cabral, 100

 


Nasceu na Guiné (Bafatá), em 12 de Setembro de 1924, fez o liceu em Cabo Verde, veio mais tarde para Lisboa onde se licenciou em Agronomia. Em 1956 foi um dos fundadores do PAIGC, partido que liderou e que, em Janeiro de 1963 declarou guerra contra o colonialismo de Portugal. Dez anos mais tarde, em 20 de Janeiro de 1973, assassinaram-no em Conacri.

Foi precisamente em Conacri (1969) que esta entrevista teve lugar:



Para assinalar o centenário que hoje se celebra, realizam-se muitas iniciativas anunciadas nos OCS.

Regulamentar a Lei da Eutanásia é respeitar a democracia

 


«Mais de 250 personalidades exigem regulamentação da lei Impedir a regulamentação da lei da eutanásia é “jurídica e politicamente inaceitável”. Mais de um ano depois da publicação do diploma que abre portas à morte medicamente assistida, quando passaram mais de 400 dias face a um prazo de regulamentação que era de três meses, um conjunto de mais de 250 personalidades juntou-se para exigir a concretização prática da lei. Com subscritores da esquerda à direita do espectro político, a carta aberta exige que o Governo “cumpra a obrigação de regulamentar a lei”.» (Público, 12.09.2024)

Sou uma das subscritoras e deixo aqui o texto da Carta, na íntegra, divulgado também no Público.

Regulamentar a Lei da Eutanásia é respeitar a democracia

Por cinco vezes, a Assembleia da República aprovou, por larga maioria, a lei que despenaliza, em determinadas circunstâncias, a morte medicamente assistida. À aprovação da versão inicial da lei, no início de 2020, o Presidente da República respondeu com dois vetos políticos. Seg,uiram-se duas decisões do Tribunal Constitucional que exigiram do poder legislativo a adopção de acertos pontuais e de clarificações dos conteúdos normativos daquele diploma. A versão final da lei, aprovada pelo Parlamento em 31 de Março de 2023 e publicada a 25 de Maio, incorporou todas essas clarificações e todos esses acertos, possibilitando a promulgação pelo Presidente da República, que pôs fim a um dos mais participados e criteriosos processos legislativos ocorridos na democracia portuguesa. Não há, portanto, razão para que a lei não seja regulamentada e aplicada.

A Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio, estabelece, no seu artigo 31.º, que “o Governo aprova, no prazo de 90 dias após a publicação da presente lei, a respectiva regulamentação”. Como é notório, o prazo referido foi lamentavelmente ultrapassado, adiando-se por mais de um ano a regulamentação da lei.

A regulamentação da lei que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível é uma tarefa legalmente vinculada. E é também, neste caso, uma tarefa facilitada por estar em causa um diploma reconhecidamente densificado, a um nível aliás sem paralelo no direito comparado.

Os pedidos de fiscalização sucessiva da constitucionalidade, pendentes ou futuros, não suspendem o dever de regulamentação. Assim o determina a Constituição, precisamente para que ninguém tente paralisar actos legislativos através de sucessivos pedidos de fiscalização da constitucionalidade, o que, como é evidente, desvirtuaria o Estado de Direito.

A posição que alguns titulares de cargos políticos vêm defendendo, na legislatura em curso, no sentido de que a regulamentação da Lei nº 22/2023 não deve ser levada a cabo, constitui um inequívoco apelo ao incumprimento da lei. Num Estado de Direito democrático, assente no primado da lei e no respeito pela vontade popular, defender que um direito consagrado em lei da República não seja concretizado é inaceitável. Como sucedeu em vários momentos do longo processo legislativo que culminou na aprovação da Lei nº 22/2023, o que os adversários da regulamentação pretendem é criar mais um obstáculo artificial a que entre em vigor uma lei cujo conteúdo não lhes agrada. Mal andaria a democracia portuguesa se a expressão da vontade da larga maioria do Parlamento, cinco vezes reiterada, ficasse refém do desagrado de quem, nessas cinco vezes, não teve vencimento de causa.

O que a democracia exige é, pois, que não sejam acolhidas posições de desrespeito pela legalidade democrática e constitucional, e que se cumpra a obrigação de regulamentar a lei que despenaliza a morte medicamente assistida. E fazê-lo, evidentemente, promovendo a segurança e o rigor jurídicos no respeito escrupuloso pela letra e pelo espírito daquela lei. Após mais de uma década de debate público e democrático, Portugal aprovou uma lei prudente, equilibrada e justa, que respeita a vontade de todas as pessoas. Impedir a sua regulamentação é jurídica e politicamente inaceitável.

O fim da Europa

 


«A Alemanha vai controlar todos os postos de fronteira terrestres a partir da próxima semana. Uma medida que aponta ao coração da que era a conquista mais valorizada pelos cidadãos da União Europeia: a liberdade de circulação. Uma medida tomada, não porque haja uma emergência, mas por cálculo eleitoral. Na próxima semana haverá eleições no Brandemburgo e as sondagens apontam para uma vitória da AfD (Alternativa para a Alemanha), partido de extrema-direita que fez dos imigrantes o bode expiatório de todos os males. Somando as intenções de voto da extrema-direita e do novo partido de esquerda populista, que também adotou uma retórica anti-imigração, mais de 40% dos eleitores daquele Estado subscrevem narrativas xenófobas ou racistas.

A Alemanha não é caso único. Há anos que que a direita radical percebeu que a imigração é um mercado eleitoral prometedor. Em Portugal, o Chega refere-se aos imigrantes numa linguagem abrasiva e defende soluções violentas, como se estivéssemos no tempo das cruzadas. “É preciso controlar as hordas de imigrantes que tentam invadir a Europa”, proclama um. “Não estamos seguros! É preciso controlar fronteiras e iniciar deportações em massa!”, exclama outro. “Não queremos mais bandidos em Portugal”, conclui Ventura.

Não é caso único a Alemanha. Mas é o país mais importante da União Europeia, em termos económicos e políticos. Uma peça central desse espaço comum de valores e de progresso. Costuma dizer-se, a propósito da economia, que, quando a Alemanha espirra, o resto da Europa constipa-se. O adágio é válido em termos de políticos. Se um Governo alemão, composto por partidos de centro-esquerda (sociais-democratas e os verdes) e liberais suspende a liberdade de circulação, contaminado pela retórica extremista, que exagera os problemas e ignora as vantagens da imigração, outros seguirão o exemplo. Não é exagerado dizer que assistimos ao princípio do fim da Europa enquanto espaço de progresso económico e social, de tolerância e de inclusão.»


11.9.24

O país do 25 de Abril não deixa as ruas ao racismo

 


A extrema-direita é a maior ameaça à segurança do país. No Reino Unido como em tantos lugares, vimos mentira e preconceito a fomentar ódio e violência contra os imigrantes. A estratégia é a habitual: transformar descontentamento em divisão para conseguir ganhos eleitorais; perpetuar desigualdades a favor dos poderosos para obter o apoio destes.

Sob a bandeira de Cabral, contra a extrema-direita

Está desde há muito convocada para 21 de setembro uma marcha para comemorar o centenário do nascimento de Amílcar Cabral, pensador anticolonial e combatente da liberdade dos povos africanos.

Iniciativa do movimento negro em Portugal, a Marxa Cabral - contra o fascismo, a xenofobia e o neocolonialismo - ganha redobrada importância quando se realiza, na mesma data, a manifestação anti-imigração entretanto convocada pelo partido Chega e apoiada por vários grupos neonazis.

Sairemos à rua e seremos mais

O contributo de Amílcar Cabral faz dele um dos autores do 25 de Abril, cujo recente cinquentenário foi uma enorme afirmação cidadã de liberdade, igualdade e esperança. Contra a banalização do racismo, apelamos a uma nova maré de liberdade. A política do ódio junta apenas uma minoria e a isso deve ser reduzida.

Queremos justiça e segurança para todas as pessoas. Voltaremos a encher as ruas a 21 de setembro. Traz um amigo também.

Somos a maioria. Sábado, 21 de setembro, do Marquês ao Rossio, seremos mais.

Alexandra Leitão, líder parlamentar do Partido Socialista; Alexandra Lucas Coelho, escritora e jornalista; Alice Samara, historiadora; Ana Bárbara Pedrosa, escritora; Ana Benavente, professora universitária; Ana Deus, música; Ana Drago, socióloga; Ana Naomi, jornalista; Ângelo Torres, ator; António Brito Guterres, assistente social; António Capelo, ator; Bárbara Bulhosa, editora; Bruno Gonçalves, secretário-geral da União Internacional das Juventudes Socialistas; Capicua, rapper; Carla Castelo, vereadora Evoluir Oeiras; Carlos Pereira, ator e comediante; Carmo Afonso, advogada; Cláudia Semedo, jornalista; Cucha Carvalheiro, atriz; Daniel Oliveira, jornalista; Daniela Serralha, deputada Municipal dos "Cidadãos por Lisboa"; Dima Mohammed, professora universitária; Diogo Faro, comediante; Diogo Gazella Carvalho, cineasta; Eduardo Souto Moura, arquiteto; Erica Rodrigues, atriz; Eugénia Pires, economista; Fabian Figueiredo, líder parlamentar do Bloco de Esquerda; Fernanda Câncio, jornalista; Fernando Tordo, músico; Francisco Geraldes, futebolista; Gisela Casimiro, escritora; Inês Sousa Real, deputada do PAN; Isabel do Carmo, médica; Isabel Mendes Lopes, líder parlamentar do Livre; Isabel Moreira, deputada do PS; Joana Lopes, gestora reformada; Joana Seixas, atriz; Joãozinho da Costa, ator; Jorge Pinto, deputado do Livre; José Eduardo Agualusa, escritor; José Falcão, SOS Racismo; José Neves, sociólogo; Kiko is Hot, criador de conteúdos; Ksenia Ashrafullina, associação "Lisboa Possível"; Lila Tiago, fadista; Luís Fazenda, dirigente do BE; Manuel Carvalho da Silva, sociólogo; Mamadou Ba, SOS Racismo; Marcos Farias Ferreira, professor universitário; Margarida Gil, cineasta; Maria Begonha, deputada do PS; Mário Laginha, músico; Maria Gil, atriz; Mariana Mortágua, coordenadora do Bloco de Esquerda; Miguel Costa Matos, secretário-geral da JS; Miguel Guedes, músico; Miguel Vale de Almeida, antropólogo; Miriam Sabjaly, jurista; Paula Cardoso, jornalista; Paula Cosme Pinto, consultora; Paulo Muacho, deputado do Livre; Pedro Anastácio, vereador PS em Lisboa; Pedro Delgado Alves, deputado do PS; Pedro Filipe Soares, dirigente do BE; Pilar Del Rio, jornalista; Richard Zimler, escritor; Rita Canas Mendes, escritora; Rita Silva, presidente da ANIMAL; Rosa Vieira de Almeida, designer; Rui Bebiano, professor universitário; Rui Tavares, deputado do Livre; Sandra Duarte Cardoso, presidente da SOS Animal; São José Lapa, atriz; Shahd Wadi, investigadora; Sofia Aparício, atriz; Sofia Pereira, dirigente da JS; Susana Peralta, professora universitária; Teresa Cunha, professora universitária; Timóteo Macedo, Solidariedade Imigrante; Vítor Belanciano, crítico cultural.

 

Chovia em Santiago

 


Chile há 51 anos

 


11 de Setembro de 1973 foi o dia em que o regime democrático do Chile foi derrubado por uma acção conjunta dos militares e outras organizações chilenas, com o apoio do governo dos Estados Unidos e da CIA.

Salvador Allende afirmou, bem antes desse dia, que estava a cumprir um mandato dado pelo povo em 1970 e que só sairia do palácio depois de o cumprir. Ou que o faria «com os pés para diante, num pijama de madeira». Assim aconteceu.

Depois, foi o que é conhecido: 30.000 chilenos foram assassinados durante o regime de Pinochet.

O bombardeamento de La Moneda:




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Quantos votos rendem as prisões?

 


«Pode-se dizer que não faz sentido ter o primeiro-ministro meter-se num bote para surfar a angústia nas águas do Douro, enquanto profissionais se esfalfam à procura de um corpo, e a ministra da Justiça ficar em silêncio perante uma fuga destas dimensões, falando depois do Presidente da República. Mas não coisa alguma para dizer. E mais vale esperar por informação do que fazer barulho. Apesar das exigências da máquina de ruido mediático, nada a apontar. E, tirando a necessidade de seguir o guião de todos os novos governos ao dizer que encontrou o caos no Ministério (sobretudo por insistência dos jornalistas), esteve bem na sua conferência de imprensa.

Teria um pouco de cuidado com o vicio da permanente busca da responsabilidade política por tudo o que aconteça no país. Não cabe na cabeça de ninguém felicitar um ministro quando a polícia captura um criminoso. Porque será justo o inverso? Têm vindo a público a decisão do Tribunal de Execução de Penas de Lisboa transferir um dos presos para uma prisão comum, contra os pareceres unânimes dos serviços. Isso nada tem a ver com esta ministra ou qualquer ministro anterior a ela, com este governo ou qualquer governo anterior a este.

As falhas dos Serviços Prisionais foram evidentes. Na segurança da prisão e na absurda demora na comunicação com a GNR e PJ. A demissão do diretor-geral era, por isso, justa e inevitável. Quanto à ministra, não me parece que alguma coisa lhe seja devida. Com a demissão, cumpriu o que lhe era exigido: detetar, com base em dados rigorosos e documentados, onde falhou a cadeia de comando e mudar os dirigentes.

O vício da responsabilidade política parece sinal de exigência, mas pode ser o oposto. Pode até ser um sinal de atraso democrático, por recusar a autonomia da administração pública e da justiça. A culpa não pode ser sempre do porteiro, é verdade. Mas se a culpa nunca for do porteiro, o administrador do condomínio tem de passar a estar à porta do prédio. A ausência de responsabilização política torna os políticos negligentes. A obsessão pela responsabilidade política transforma os ministros passageiros em para-raios da administração pública permanente, tornando-a negligente.

Como todos os interessados e corporações aproveitam estes momentos para dar força à sua agenda, tentemos pôr as coisas em perspetiva. Aconselho, para isso, uma boa recolha dados feita, no Diário de Notícias, por Fernanda Câncio. A nossa taxa de fuga de reclusos é cinco vezes inferior à da União da Europeia. Se cá é de 6,5 fugas por dez mil reclusos, a da UE é 32. As nossas prisões têm sido seguras na função de impedir os reclusos de fugir. Como relatam inúmeros relatórios, não são seguras é para os próprios reclusos. Porque têm más condições e estão sobrelotadas.

Desde 2009, houve uma redução de 9% dos guardas prisionais enquanto o número de reclusos aumentava 10%. Mesmo assim, o rácio entre reclusos e guardas prisionais é de 3,1, melhor do que os 3,8 da União Europeia. Bem melhor do que Espanha, França ou Inglaterra. Parece é haver má gestão, e aí há responsabilidade política estrutural. Só no Algarve, há três prisões, uma dispersão onde se perde a economia de escala e obriga a ter mais guardas do que reclusos. Isto, para além de os guardas cumprirem funções que não deviam ser suas.

Mas o maior problema é outro e cai mal na agenda securitária que domina boa parte da comunicação social e foi deixando um lastro político: temos reclusos a mais. Como é que um dos países mais seguro da União Europeia (os rankings variam entre o segundo e o quinto) tem uma taxa de 121 reclusos para cem mil habitantes, quando a da Europa é de 108? Como é que a pena média efetiva é, em Portugal, de 28 meses e, na UE, é de 11? 56% dos reclusos cumprem mais de cinco anos de pena, enquanto na UE são 34,5%. Sendo que só 9,3% é por homicídio e 28% por crimes violentos. Prendemos muito e por demasiado tempo. E, no entanto, quem veja noticiários acredita que toda a gente sai em liberdade.

No artigo de Fernanda Câncio há um número, de 2022 (como a generalidade dos outros), que me chamou à atenção e de que já tinha ouvido falar por parte de uma juíza – temos quase 900 reclusos por violação do código da estrada, 579 por conduzirem sem carta. Não é para crimes destes que servem as prisões. Se juntarmos os que estão presos por não conseguirem pagar as multas que subsituem as suas penas, aproximamo-nos de 20% da nossa população prisional. É difícil guardar gente perigosa quando se usa a prisão para crimes menores.

A tal juíza explicava-me que, antes de chegar à prisão, os tribunais tentam outras penas. Só que elas não funcionam. Porque temos um sistema “carcerocêntrico” que não se preparou para aplicar e fiscalizar o cumprimento de penas como o trabalho para a comunidade, por exemplo. A ausência de efetivas punições prévias leva à reincidência até se chegar a um ponto em que o crime se torna demasiado grave.

Há, como se vê, muito para discutir sobre as condições do nosso sistema prisional e a relação da justiça e da sociedade com o encarceramento. Mas, mesmo que esta seja uma boa desculpa para fazer um debate, é preciso dizer o que todos os sistemas prisionais têm fugas. Apesar da gravidade deste caso, o nosso, se se distingue, é por ter poucas.

Podemos aproveitar o momento para debater as deploráveis condições prisionais, que aparecem e sucessivos relatórios europeus e internacionais e que atentam contra os direitos humanos, e o pouquíssimo investimento (transversal a todos os governos) para mudar isto. As principais vítimas são os reclusos. Esse é o debate político para o qual não faltaram avisos e estudos e auditorias (e vêm mais duas). Mas, tirando quando fogem reclusos, alguém quer saber? Rende votos?»


Velocidade média dos comboios na Europa

 


10.9.24

Cafeteira antes de Mr. Clooney

 


Cafeteira cilíndrica de latão e prata, misturados em cobre, 1870.
Libélulas aplicadas por Edward C. Moore para Tiffany.


Macron e Le Pen

 



Jorge Sampaio

 


Morreu há três anos. Parece pouco tempo, mas dificilmente reconheceria hoje o estado do mundo – e talvez do país. Foi um grande Presidente.

Os líderes mundiais devem relançar a cooperação global para hoje e amanhã

 


«Estão em curso, em Nova Iorque, as negociações finais para a Cimeira do Futuro que terá lugar este mês, durante a qual os chefes de Estado irão negociar a reforma dos alicerces da cooperação internacional.

As Nações Unidas convocaram esta Cimeira única devido a um facto evidente: os problemas mundiais estão a avançar mais rapidamente do que as instituições que foram criadas para os resolver.

Basta olhar à nossa volta. Os conflitos ferozes e a violência estão a infligir sofrimentos terríveis; as divisões geopolíticas são abundantes; as desigualdades e as injustiças estão por todo o lado, corroendo a confiança, agravando os ressentimentos e alimentando o populismo e o extremismo. Os velhos desafios relacionados com a pobreza, a fome, a discriminação, a misoginia e o racismo estão a assumir novas formas.

Entretanto, enfrentamos ameaças novas e existenciais, desde o caos climático descontrolado e a degradação ambiental até às tecnologias, como a Inteligência Artificial, que se desenvolvem num vácuo ético e jurídico.

A Cimeira do Futuro reconhece que as soluções para todos estes desafios estão nas nossas mãos, mas precisamos de uma actualização dos sistemas que só os líderes mundiais podem oferecer.

A tomada de decisões ao nível internacional está presa no tempo. Muitas instituições e ferramentas internacionais são um produto dos anos 40 – uma era anterior à globalização, anterior à descolonização, anterior ao reconhecimento generalizado dos direitos humanos universais e da igualdade de género, anterior à chegada da humanidade ao espaço – já para não falar do ciberespaço.

Os vencedores da Segunda Guerra Mundial ainda têm preeminência no Conselho de Segurança da ONU, enquanto todo o continente africano carece de um lugar permanente. A arquitectura financeira mundial pesa fortemente contra os países em desenvolvimento e não proporciona uma rede de segurança quando enfrentam dificuldades, deixando-os afogados em dívidas, o que desvia fundos que deveriam ser investidos na sua população.

E as instituições internacionais oferecem um espaço limitado para muitos dos principais actores do mundo de hoje – da sociedade civil ao setor privado. Os jovens que herdarão o futuro são quase invisíveis, enquanto os interesses das gerações futuras estão subrepresentados.

A mensagem é clara: não podemos criar um futuro adequado para os nossos netos com um sistema construído para os nossos avós. A Cimeira do Futuro será uma oportunidade para relançar uma colaboração multilateral adequada ao século XXI.

As soluções que propomos incluem uma Nova Agenda para a Paz centrada na actualização das instituições e das ferramentas internacionais para prevenir e pôr fim aos conflitos, incluindo o Conselho de Segurança da ONU. A Nova Agenda para a Paz apela a um esforço renovado para livrar o nosso mundo das armas nucleares e de outras armas de destruição maciça e alargar a definição de segurança de modo a abranger a violência baseada no género e a violência de gangues. Tem em conta as futuras ameaças à segurança, reconhecendo a natureza mutável da guerra e os riscos de armamento das novas tecnologias. Por exemplo, precisamos de um acordo internacional para proibir as chamadas Armas Letais Autónomas, que podem tomar decisões de vida ou de morte sem intervenção humana.

As instituições financeiras internacionais devem ser o reflexo do mundo de hoje e estar equipadas para liderar uma resposta mais poderosa aos desafios atuais: endividamento, desenvolvimento sustentável, acção climática. Isto significa tomar medidas concretas para fazer face ao sobreendividamento, para aumentar a capacidade de empréstimo dos bancos multilaterais de desenvolvimento e para alterar o seu modelo de negócio para que os países em desenvolvimento tenham muito mais acesso a financiamento privado com taxas acessíveis.

Sem este financiamento, os países em desenvolvimento não serão capazes de enfrentar a nossa maior ameaça futura: a crise climática. Precisam urgentemente de recursos para transitarem dos combustíveis fósseis, que destroem o planeta, para as energias limpas e renováveis.

E, tal como sublinharam os líderes no ano passado, a reforma da arquictetura financeira mundial é também fundamental para impulsionar o tão necessário progresso dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

A Cimeira irá também focar-se nas novas tecnologias com impacto mundial, procurando formas de eliminar a exclusão digital e de estabelecer princípios comuns para um futuro digital aberto, livre e seguro para todos.

A Inteligência Artificial (IA) é uma tecnologia revolucionária com aplicações e riscos que só agora começamos a compreender. Apresentámos propostas específicas para que os governos, juntamente com as empresas tecnológicas, o meio académico e a sociedade civil, trabalhem em quadros de gestão de riscos para a IA e na monitorização e mitigação dos seus danos, bem como na partilha dos seus benefícios. A governação da IA não pode ser deixada aos ricos: exige que todos os países participem e a ONU está pronta a tornar-se uma plataforma de união.

Os direitos humanos e a igualdade de género são um fio condutor que liga todas estas propostas. A tomada de decisões a nível mundial não pode ser repensada sem o respeito por todos os direitos humanos e pela diversidade cultural, garantindo a plena participação e liderança das mulheres e das raparigas. Exigimos esforços renovados para remover as barreiras históricas – legais, sociais e económicas – que excluem as mulheres do poder.

Os construtores da paz dos anos 40 criaram instituições que ajudaram a prevenir a Terceira Guerra Mundial e conduziram muitos países da colonização à independência. No entanto, não reconheceriam o mundo de hoje.

A Cimeira do Futuro constitui uma oportunidade para construir instituições e ferramentas mais eficazes e inclusivas para a cooperação internacional, em sintonia com o século XXI e com o nosso mundo multipolar.

Apelo aos decisores que não deixem escapar esta oportunidade.»


9.9.24

Uma conquista do ministro da Educação

 


Políticas de reparação e reconciliação

 


«O grupo parlamentar do Bloco de Esquerda agendou para 20 de Setembro no Parlamento a sessão com o tema “‘Libertar Portugal do colonialismo’: reparação e políticas públicas”, numa audição com cinco especialistas. A ex-deputada ao Parlamento Europeu do BE, Anabela Rodrigues, fala sobre políticas públicas com base em estatísticas oficiais, a jornalista Paula Cardoso fala sobre políticas para a igualdade e direitos cívicos, o antropólogo Miguel Vale de Almeida fala sobre reparar a desigualdade, o presidente da Associação de Professores de História Miguel Monteiro de Barros sobre políticas públicas para a educação e o sociólogo Miguel de Barros sobre desenvolvimento.»

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09.09.1973 – A dois dias do golpe no Chile

 


No dia 9 de Setembro de 1973, José Toribio Merino, comandante-chefe da Armada do Chile e membro da Junta do Governo durante os 16 anos que durou a ditadura militar, escreveu uma carta aos generais Gustavo Leigh e Augusto Pinochet, na qual é indicada a data e a hora para o golpe de Estado de 11 de Setembro:

9/Sept/1973 
Bajo mi palabra de honor, el día 'D' será el 11 de setiembre y la hora 'H', la hora 6. Si ustedes no pueden cumplir esta fase con el total de las fuerzas que mandan en Santiago, explíquenlo al reverso. El Almirante Huidobro - vea usted, señor Presidente, ¡qué apellido! -"está autorizado para tratar y discutir cualquier tema con ustedes. – Les saluda con esperanza y comprensión, 
Merino
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La démocratie, c'est moi

 


«Macron prefere aliar-se a Le Pen, tendo os republicanos como casamenteiros, a um governo de esquerda. Passou anos a pedir o voto à esquerda para salvar a França da extrema-direita. Quando o poder lhe foge, pede o voto da extrema-direita para salvar a França da esquerda. Nunca foi a França que esteve em causa, mas o seu poder. Quando sentir que a França está no ponto, Le Pen deixará cair o governo. Ainda ouviremos Macron pedir o voto da esquerda para voltar a salvar a França da extrema-direita.

Sem uma alternativa a quem ficou em primeiro – a direita tradicional e o macronismo não conseguem maioria juntos –, seria evidente que só a coligação de esquerda tinha legitimidade para ser chamada a liderar um governo, como aqui foi o PSD. Quem fica em primeiro não tem de governar. Mas a condição para tal não acontecer é haver uma alternativa maioritária.

Derrotado, Macron passou dois meses a arrastar umas negociações em que tudo dependia, na realidade, da sua decisão solitária. O seu primeiro objetivo era desfazer a NFP, para que parte dela se aliasse ao desgastado macronismo. Nem um governo da NFP sem ministros da França Insubmissa (maior força da coligação de esquerda), proposto por Melenchon, foi aceite. O homem que dissolveu o parlamento sem qualquer crise, lançando a França na ingovernabilidade, recusou-se a dar posse a uma primeira-ministra da NFP em nome, veja-se bem, da “estabilidade institucional”. Para Macron, a estabilidade e a democracia começam e acabam nele.

O objetivo do Presidente nunca foi ter um governo estável, sempre foi matar no ovo qualquer alternativa política à extrema-direita que não passe por ele ou pelo seu partido. Foi o que tentou nas eleições e falhou. Tentou de novo, depois da derrota, ignorando o voto dos franceses.

Como Presidente, Macron tem o poder de escolher primeiros-ministros, não tem a prerrogativa de exigir o fim de coligações eleitorais determinadas pelos partidos e sufragadas pelos eleitores. Na sua longa caminhada egocêntrica, Macron aproveitou um momento de fragilidade da democracia francesa para desfazer o sistema partidário, moldando-o à sua imagem. Depois quis usar os poderes presidenciais para determinar as alianças partidárias, incluindo as pré-eleitorais. Só que a heterogénea coligação de esquerda manteve-se firme e Macron falhou.

Derrotado mais uma vez, foi buscar o primeiro-ministro ao quarto partido, com 8%. Michel Barnier nem sequer participou na “frente republicana” que fez eleitores de esquerda e direita votarem nos candidatos melhor colocados para derrotar a União Nacional. E isso conta para poder vir a ter o apoio de Marine Le Pen.

Sou um parlamentarista e defendo que a legitimidade de qualquer governo que consiga maioria no parlamento. Quem fica em primeiro não tem de governar. É raro, nesta lógica, ir-se buscar um primeiro-ministro a um partido que teve 8%. Ainda assim, é legitimo fazê-lo se essa pessoa agregar mais de 50% dos deputados. O que não é legitimo é substituir uma minoria que ficou em primeiro por outra minoria. A não ser, claro, que o argumento seja que macrnonistas e republicanos juntos valem mais do que a esquerda francesa. Quem o diga, em Portugal, terá de defender que deveríamos ter um governo do PS com o BE, o PCP e o Livre, como chegou a defender Rui Tavares. Não foi a posição de mais ninguém. Nem a minha, porque, do meu ponto de vista, o único critério que passa à frente da vitória é a incontornável capacidade de construir uma maioria.

Essa maioria existe em França? Aparentemente, pode vir a existir. Com a União Nacional. É bom dizer que se Emmanuel Macron quisesse uma solução maioritária de outro campo, bastaria o seu partido para a garantir a quem venceu. Mas prefere aliar-se a Le Pen, tendo os republicanos como casamenteiros, a viabilizar um governo de esquerda. Macron passou estes anos a pedir o voto à esquerda para salvar a França da extrema-direita. Quando o poder lhe fugiu das mãos, pede o voto da extrema-direita para salvar a França da esquerda. Na realidade, nunca foi a França que esteve em causa. Apenas o seu poder.

Não se enganem. Le Pen não é bengala de ninguém. Quando sentir que as coisas estão boas para a União Nacional, provavelmente próximo das presidenciais, deixará cair o governo que depende em absoluto da sua vontade. Nessa altura, ouviremos Macron e os seus amigos a pedir o voto da esquerda para voltar a salvar a França da extrema-direita. Macron usou o fantasma da extrema-direita para crescer. Agora, usa os votos das extrema-direita para se segurar ao poder depois da derrota eleitoral. É um narcisista sem princípios que destruiu o sistema partidário francês e que está a destruir a democracia francesa.»


8.9.24

Literacias

 

 
𝐔𝐦 𝐝𝐨𝐬 𝐩𝐨𝐬𝐬í𝐯𝐞𝐢𝐬 𝐩𝐫𝐞𝐬𝐢𝐝𝐞𝐧𝐭𝐞𝐬 𝐝𝐚 𝐑𝐞𝐩ú𝐛𝐥𝐢𝐜𝐚 𝐝𝐞𝐬𝐭𝐞 𝐩𝐚í𝐬, 𝐌𝐚𝐫𝐪𝐮𝐞𝐬 𝐌𝐞𝐧𝐝𝐞𝐬 𝐝𝐞 𝐬𝐞𝐮 𝐧𝐨𝐦𝐞, 𝐝𝐢𝐬𝐬𝐞 𝐡𝐨𝐣𝐞, 𝐜𝐨𝐦𝐨 𝐮𝐦𝐚 𝐝𝐞𝐬𝐜𝐨𝐛𝐞𝐫𝐭𝐚 𝐞𝐱𝐭𝐫𝐚𝐨𝐫𝐝𝐢𝐧á𝐫𝐢𝐚 𝐞 𝐜𝐨𝐦 𝐡𝐨𝐧𝐫𝐚𝐬 𝐝𝐞 𝐚𝐧ú𝐧𝐜𝐢𝐨 𝐧𝐚 𝐩𝐫é𝐝𝐢𝐜𝐚 𝐝𝐞 𝐃𝐨𝐦𝐢𝐧𝐠𝐨, 𝐪𝐮𝐞 𝐭𝐢𝐧𝐡𝐚 𝐚𝐩𝐫𝐞𝐧𝐝𝐢𝐝𝐨 𝐡á 𝐝𝐢𝐚𝐬 𝐮𝐦𝐚 𝐩𝐚𝐥𝐚𝐯𝐫𝐚 𝐜𝐮𝐣𝐚 𝐞𝐱𝐢𝐬𝐭ê𝐧𝐜𝐢𝐚 𝐢𝐠𝐧𝐨𝐫𝐚𝐯𝐚. 𝐐𝐮𝐞 𝐩𝐚𝐥𝐚𝐯𝐫𝐚 𝐞𝐬𝐭𝐫𝐚𝐧𝐡𝐚? 𝐆𝐄𝐍𝐔𝐅𝐋𝐄𝐗Ó𝐑𝐈𝐎.

Ecoansiedade

 


«Duvidei da normalidade das marés que cobriam com grandes lençóis de água os antes generosos areais. Estranhei as pequenas praias a que sempre fui e que agora revelavam um leito pedregoso. Quando procurei ouriços-do-mar, em que tantas vezes me piquei ao caminhar pelas poças por entre as rochas, não vi nenhum – terão migrado? No caminho para a praia, a bica de água doce encontra-se, pela primeira vez, completamente seca. O vento persistente e arrepiante, o sol a estalar mal a brisa baixava; o denso nevoeiro que submergiu a vila, num outono antecipado; o terramoto que me acordou pela madrugada fora – tudo contribuiu para um verão, no mínimo, original. Posso ser eu, pensei, que padeço de sintomas agudos de ecoansiedade, vendo alterações climáticas para onde quer que olhe. Ou pode ser que se comecem a ver a olho nu décadas de desistência face a sucessivos alertas.»

Votou por engano? Aguente

 


Além da cor da minha pele

 


«Tive a honra de ser uma das nove celebridades brasileiras escolhidas para participar de um projeto inédito de mapeamento do genoma humano. A pesquisa foi conduzida pela equipe do geneticista Sérgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais, de Belo Horizonte. Eles consideraram 40 trechos do DNA, que têm características diferentes entre as populações que mais contribuíram para a origem do brasileiro: europeus, africanos e ameríndios.

Outra que participou da experiência foi a nossa eterna ginasta Daiane dos Santos. O seu resultado surpreendeu a todos. Ela tem mais herança europeia do que africana em seu material genético. Segundo Pena, o genoma de Daiane, o primeiro a ser divulgado, define o protótipo do brasileiro: 39,7% africano, 40,8% europeu e 19,6% ameríndio.

Antes de ver o resultado do meu exame, eu apostava que ia dar entre 70% e 90% africano e que não teria um só gene europeu. Não tenho olho azul, não tenho cabelo escorrido, não tenho nada de branco aqui. Da Europa, nada, bradei.

Mas qual foi a minha surpresa ao ver o resultado: 67,1% de seu genoma têm origem europeia, e 31,5%, africana. Eu sou mais europeu do que africano. Quando recebi o resultado, disse: “Europeu, eu?! Um negão desse…”. Foi uma gargalhada geral.

Outro exame, o de saliva, mostrou que, na análise da linhagem materna, sequências genéticas idênticas às minhas foram também encontradas em povos mancanha (Guiné Bissau), limba (Serra Leoa) e iorubás (distribuídos por uma região que engloba hoje países como Nigéria, Benin, Gana e Togo).

Já do lado paterno, foi mais difícil precisar as minhas origens, porque o material genético analisado mostrou ampla distribuição geográfica entre as três regiões da África que enviaram escravos ao Brasil (África Ocidental, África Central e Sudeste da África).

Os resultados do meu DNA e do de Daiane mostram que os que ainda acreditam que a ascendência genética se refletem na cor da pele não entenderam nada. O projeto do doutor Pena mostra que os que julgam que os negros são apenas fruto da África ignoram a formação do nosso povo.

O Brasil é resultado da junção de índios, europeus e africanos. Não foi um processo fácil, nem justo. Mas negar isso, é negar que o sol vai nascer amanhã.

Posso dizer que esse negrão aqui é o típico exemplar do povo brasileiro. Carrego a ancestralidade dos meus, com a missão de criar pontes entre Brasil, Portugal e África. E minha armadura é a nossa música, a mais pura tradução dessa mistura. Com cadências africanas, lusitanas e indígenas, criamos aquele que pode ser o mais universal dos sons: o samba brasileiro.»