30.8.25

Música

 


Salão Smetana na Casa Municipal, Praga, 1905-1912. É principalmente uma sala de concertos com 1.200 lugares. Além de concertos, também acolhe diversos eventos como bailes tradicionais ou galas. É também o local dos concertos de abertura e encerramento do Festival Internacional de Música da Primavera de Praga.
Arquitectos: Osvald Polívka and Antonín Balsánek.

Daqui e não só.

Já terei em quem votar

 


Mudam-se os tempos...

 


Comissão Comemorativa do 25 de Novembro: quem escreve a história?

 


«No passado dia 28 de agosto, o governo da AD decidiu cumprir aquela que é uma das velhas bandeiras do CDS, até há um ano sem eco fora da sua bolha política. Confirma-se que a prometida “Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Novembro” se virá a materializar, naturalmente envolta em polémica. Trata-se de uma decisão inusitada na política portuguesa e nasce de um ímpeto revisionista da história com raízes impreterivelmente ideológicas, vindo a confirmar aquilo que tanto Nuno Melo como Luís Montenegro fizeram por desdizer ao longo do último ano: que, para os dirigentes, o 25 de Novembro de 1975 assume igual valor ao 25 de Abril de 1974, ato fundador da democracia portuguesa. No entanto, sendo esta uma data marcante da história portuguesa, porque é que não faz sentido a criação de uma comissão desta natureza?

Em primeiro lugar, urge esclarecer que uma decisão deste cariz pode apenas ter sido motivada por um de dois fatores: ou ignorância política ou uma motivação deliberada de reescrever a história. É que está em funções, desde 2022, uma Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril, cujo objetivo é recordar não só o “dia inicial inteiro e limpo”, mas todo o contexto que o antecedeu e as suas consequências. Presidida pela renomada historiadora Maria Inácia Rezola, tem vindo a promover iniciativas sobre a memória da Revolução dos Cravos desde antes do seu eclodir e o seu programa alastra-se até 1976, ano em que se inicia o período constitucional e se conclui, finalmente, a transição para a democracia. Por conseguinte, é relativamente fácil concluir que sim, esta Comissão também se debruçará sobre o 25 de Novembro aquando do seu cinquentenário, com base na opinião dos historiadores e especialistas que a compõem.

Contudo, o governo parece querer ignorar que já existe uma entidade destinada a recordar o 25 de novembro, devidamente enquadrado no contexto revolucionário. Contrariando a sua existência, a AD incumbe Nuno Melo, líder do CDS e Ministro da Defesa, de nomear a quem caberá presidir esta nova comissão. Surge, no entanto, uma questão: se já está em funções uma comissão, com um programa já delineado e composta por especialistas a debruçar-se (também) sobre o 25 de Novembro, então quem presidirá esta nova comissão? Parece-me, no mínimo, uma atitude populista que se renegue a opinião dos historiadores sobre a história, dando lugar aos seus falsificadores.

E porque tem o governo medo que os historiadores falem sobre a história? Porque, como já foi repetidamente demonstrado, a visão do CDS (e não só) sobre o 25 de Novembro não se coaduna com a investigação científica feita nesse sentido. Embora ainda paire uma relativa névoa sobre este dia na nossa história, com pormenores ainda por esclarecer, uma coisa é certa: tratou-se de uma vitória da esquerda sobre a esquerda, que a direita agora pretende usurpar para fins políticos. A exaltação do 25 de Novembro, imbuída de ignorância histórica, serve um único fim – o de adensar a guerra cultural entre a esquerda e a direita, polarizando a sociedade e dividindo-a sobre o ato fundador da democracia portuguesa (que, por sinal, já teve melhores dias).

Não me cabe agora desenvolver o contexto histórico desta data ou aprofundar o porquê da sua comemoração, dado que já tive a oportunidade de o fazer num artigo publicado em novembro do ano passado. Cabe-me apenas sublinhar que a memória histórica é, infelizmente, uma arma. O controlo do passado foi, desde sempre, um poderoso instrumento do autoritarismo, uma ferramenta para influenciar mentalidades e ocultar factos. Espera-se de uma sociedade democrática que a memória histórica seja cultivada pela ciência, e não pelo Estado. Que seja motivada pela investigação e não tome parte em propaganda política. Será este recente endeusamento do 25 de Novembro, que nada seria sem o 25 de Abril, também ele um sinal do escurecimento democrático que se afigura avizinhar em Portugal, como está a acontecer um pouco por todo o mundo?»


Talude e Cova da Moura

 


29.8.25

Timor-Leste: O Sonho do Crocodilo

 



Um filme de Diana Andringa a ver ou rever.

Timor-Leste, no 26º aniversário do Referendo

 


Foi há 26 anos que se realizou o Referendo em que 78,5% dos eleitores se pronunciaram a favor da independência de Timor Leste. Quase três anos mais tarde, em 20 de Maio de 2002, viria a nascer a primeira nova Nação deste milénio: Timor Lorosa’e.


Ingrid Bergman

 


Nasceu em 29 de Agosto de 1915 e morreu 67 anos depois, também num 29 de Agosto.



Marcelo tem razão: Trump é um agente de Putin

 


«O Presidente da República foi à Universidade de Verão do PSD e disse uma coisa diplomaticamente incorrecta mas verdadeira, "peculiar" e "complexa": "O líder máximo da maior superpotência do mundo, objectivamente, é um activo soviético ou russo".

Nem de propósito: a reacção tranquila dos Estados Unidos ao ataque desta quinta-feira a Kiev, que atingiu a missão da União Europeia, foi mais uma prova de que existe, cada vez com mais força, um eixo Estados Unidos/Rússia, e que isso é uma alteração sísmica em toda a geopolítica pós-Segunda Guerra.

Marcelo, na Universidade de Verão, lembrou como "a nova liderança norte-americana tem favorecido, estrategicamente, a Federação Russa" e criticou a impotente Europa por ter "minimizado o senhor Trump e o trumpismo", assim como "a hipótese de, de repente, haver uma nova balança de poderes".

Um novo eixo está em formação, à nossa frente. Vivemos estes tempos com alguma denegação, que é um mecanismo que costuma acontecer na sequência de traumas violentos.

Uma parte muito interessante do discurso de Marcelo em Castelo de Vide incide exactamente nesta denegação sobre o que se está a passar nos Estados Unidos da América, um país que tratamos como "aliado" e ao qual nos subjugamos – o conjunto dos europeus.

O Presidente da República criticou "a minimização de tudo o que é a separação de poderes" levada a cabo por Trump: "Se for preciso, ameaçando intervir na vida de uma empresa privada, num tribunal ou numa reserva federal".

"O actual Trump noutros tempos chocaria imenso", diz Marcelo. Não choca hoje porquê? Porque as democracias estão a morrer aos poucos. Porque se popularizaram as "democracias iliberais", uma expressão que é um contra-senso.

Trump disse esta semana que muitas pessoas "parecem querer um ditador", que dizem "talvez nós gostássemos de um ditador", mas que ele "não é um ditador". Quanto tempo faltará para começarmos a chamar a Trump "ditador" como chamamos a Putin? Na Rússia também há eleições.

Mais uma vez Marcelo: "Este é o tempo dos radicais com os quais as democracias se fazem de outra maneira, mas estamos a descobrir todos como é que se vão fazer, com que instituições e de que modo".

Isto era sobre Portugal e referia-se directamente ao PSD e à potencial aliança com o Chega: "Não é que não haja espaço em democracia para todas as formações e todos os posicionamentos políticos. Agora, é evidente que é mais fácil fazer acordos de regime, fazer consensos, encontrar soluções ao centro, se um partido de centro-direita for um partido de centro-direita e não de direita que é de direita radical".»

Ana Sá Lopes
Newsletter do Público (Excerto)

Dizem que é uma MAI

 


28.8.25

Biscoitos

 


Decoração de pote para biscoitos, 1904.
Alphonse Mucha.


Daqui.

28.08.1963 – Luther King, «I have a dream»

 


Em 28 de Agosto de 1963, quando Martin Luther King pronunciou este seu célebre discurso durante a «March on Washignton for Jobs and Freedom», não podia ter imaginado que o mundo estaria como está hoje. A história dos direitos adquiridos não será destruída, mas não está a ser nada fácil.



(No fim deste post, o texto do discurso na íntegra.)


A propósito:







«I have a dream» – Texto:


Mariana Mortágua na AR

 



É um pássaro! É um avião! É o Ventura!

 


«As câmaras do partido de André Ventura tiveram a sorte de captar o momento em que André Ventura, arriscando abnegadamente a própria vida, apaga um violento incêndio que lavrava na base de um eucalipto, e as imagens surpreenderam toda a gente. Como era possível que o presidente do Chega estivesse ali em mangas de camisa, perdendo a oportunidade de usar a sua capa e o fato de licra azul que exibe no peito um S (de “show off”)? Enfim, o acto heróico podia ter sido mais bem encenado, mas ficou o essencial: André Ventura participou decisivamente no combate aos incêndios. Este ano já arderam 250 mil hectares, mas podiam ter ardido 250 mil hectares e mais 20 centímetros quadrados se não fosse a acção do intrépido político-bombeiro.

Mais uma vez, Ventura teve a felicidade de protagonizar um daqueles actos de valentia que não exigem grande sacrifício, que é a melhor e mais barata modalidade de bravura. A minha avó teve de lidar com um fogo maior no bolo comemorativo do seu 80º aniversário. Nas últimas eleições, se bem se lembram, Ventura já se tinha batido que nem um leão contra a azia. E venceu-a quase sozinho, contando apenas com a ajuda de umas sete ambulâncias e três hospitais. Felizmente, ao que tudo indica, está agora totalmente recuperado, embora eu tenha a suspeita de que possa ser novamente acometido pela cruel maleita na próxima campanha eleitoral, porque o refluxo gástrico parece ter grande sentido de oportunidade político. Se não houver recidiva da azia, tenho a certeza de que Ventura terá a sorte de ser vitimado por um ataque de acne ou por uma micose da unha, que, por serem também gravemente incapacitantes, conseguirão igualmente excitar a mesma compaixão no eleitorado.

Entretanto, anseio por novas iniciativas heróicas do presidente do Chega, como uma pega de caras a um hamster ou a captura, em flagrante delito, de um gatuno no momento em que está a furtar um chupa-chupa a um colega, numa creche. E tenho a certeza de que será um bandido chamado Ahmed, daquela turma cheia de mini-imigrantes que o Chega denunciou há uns meses, porque só há uma coisa pior do que esses imigrantes que vêm para cá e nem querem aprender a nossa língua, que são esses imigrantes que vêm para cá e se inscrevem na escola porque querem aprender a nossa língua. No mínimo, espero que Ventura aproveite a época balnear para ir à Fonte da Telha salvar a nado o programa eleitoral do Chega. Na zona da rebentação, que já assusta.»


Exactamente

 


27.8.25

É simples e é azul

 


Vaso de vidro Loetz Art, Áustria, início do século XX.
Loetz Áustria.


Daqui.

Incêndios e despovoamento

 


«Nota-se hoje uma menor responsabilização dos políticos e da política pelos problemas dos incêndios. Quinta-feira passada, a ministra da Administração Interna afirmou (na RR): "quem tem a responsabilidade de decisão precisa de tranquilidade e de sossego". Se dissesse isto, uns anos atrás, era crucifixada. O primeiro-ministro anda "a resolver os problemas das pessoas" ("modernizando" o trabalho precário e mal pago e comercializando a nacionalidade), não consegue mais presença no terreno. E o presidente da República já não precisa tanto de selfies. (…)

É preciso proteger as pessoas, as suas casas e as aldeias. Sem dúvida! Mas, quando já não há mais nada a fazer significa que chegamos ao fim da linha. A retirada das pessoas pode tornar-se a antecâmara do abandono, do despovoamento. Elas, para habitarem numa aldeia precisam de ter trabalho, de atividades que lhes garantam meios materiais e serviços fundamentais. Não chega protegê-las na hora dos incêndios como os bombeiros procuram fazer, e bem.»

Na íntegra AQUI.

Cesária Évora

 


Seriam 84, hoje.



Spinumviva: a espada de Dâmocles de Montenegro

 


«Um dos mistérios nacionais dos últimos meses é o súbito desaparecimento do caso Spinumviva. A empresa familiar do primeiro-ministro — prestadora de serviços, sem trabalhadores e com sede na casa do próprio — continuava em plena faturação já com Montenegro a presidir ao Conselho de Ministros. O episódio precipitou uma crise política, provocou eleições e, entretanto, sem que as questões suscitadas fossem esclarecidas, como se diz em bom português, deu sumiço.

A explicação mais plausível para este mistério reside naquilo a que se costuma chamar “suspensão da descrença”. Expressão introduzida por Samuel Coleridge, que sugeria que os leitores, para aceitarem a verosimilhança de uma obra de ficção, deveriam voluntariamente suspender o julgamento crítico sobre os factos narrados. Estávamos no século XIX, em pleno Romantismo, e a emoção sobrepunha-se à razão. Hoje, continuamos a recorrer a esse dispositivo para vermos filmes, assistirmos a peças de teatro e lermos livros.

Talvez na política não seja muito diferente — de uma forma ou de outra, olhamos para a realidade com lentes emocionais, moldadas pelas nossas predisposições ideológicas. Contudo, neste caso, julgo que a “suspensão da descrença” opera também de outra forma: perante um contexto exigente, que aparenta não deixar alternativas, prefere-se coletivamente esquecer que temos, de facto, um primeiro-ministro eticamente inviável. O PSD, aliás, teve uma janela de oportunidade para, com a mesma maioria parlamentar, substituir o chefe de Governo. Escolheu não o fazer.

É um facto que decorre um inquérito promovido pelo Ministério Público, no âmbito da insólita figura da “averiguação preventiva”, sobre o qual pouco se sabe. Mas uma coisa é o trabalho da justiça; outra, distinta, é a avaliação política que se pode — e deve — fazer. E quanto a isso, as oposições ajudaram Montenegro: em vez de obrigar o primeiro-ministro a continuar a responder a questões (como vinha sucedendo), enveredaram por uma comissão parlamentar de inquérito — uma via que estimula a promiscuidade entre escrutínio político e judicial. Montenegro não deixou escapar a oportunidade e promoveu um referendo a si próprio, como se o que está em causa fosse referendável.

Inspirado pelo nome em latim da empresa, para além do romântico Coleridge, recorro também a um grande pensador da Antiguidade Clássica: Cícero. É dele a história do cortesão Dâmocles, a quem foi concedida a possibilidade de ser rei por um dia, mas com uma espada afiada sobre a cabeça, presa apenas por um fio de crina de cavalo. Este episódio sobre a precariedade do poder serve para revelar que as circunstâncias de Montenegro não são distintas das de Dâmocles, só que sobre a sua cabeça não paira a espada do rei Dionísio, mas a Spinumviva.

Montenegro pode acreditar que o reforço eleitoral e o estado pré-comatoso do PS lhe dão alguma folga; que a remodelação do executivo lhe concede iniciativa; que o interregno presidencial o protege constitucionalmente; ou, até, que o impulso para cavalgar os temas do Chega lhe permite marcar a agenda. A verdade é que o primeiro-ministro vive sob uma ameaça que se pode concretizar a qualquer momento. Dê-se as voltas que se der, persistem demasiadas perguntas sem resposta sobre o universo empresarial de Montenegro — perguntas que regressarão a galope. Porventura, só quando for oportuno. Entretanto, o país limita-se a adiar um problema eticamente incontornável.

Já agora, o ponto de Cícero no episódio de Dâmocles era ilustrar que a verdadeira felicidade não está no exercício do poder, mas na virtude e na paz interior.»


A lixeira mais alta do mundo

 



QUE MUNDO!

«Latas, tanques de oxigénio vazios, garrafas de plástico e equipamento de montanhismo enchem as rotas de montanha que conduzem ao Evereste, cujo cume, a 8.849 metros de altitude, é cada vez mais cobiçado pelos alpinistas internacionais.»


26.8.25

Há sempre mais um vaso

 


Vaso «Clematis», Cerâmica Newcomb, Nova Orleans, 1904.
Marie de Hoa LeBlanc.

Daqui.

Nikias Skapinakis - 5 anos sem ele

 

Encontro de Natália Correia, Fernanda Botelho e Maria João Pires. 1974.

26.08.1914 – Julio Cortázar

 


Julio Cortázar nasceu na embaixada argentina em Ixelles, Bruxelas, poucos dias depois de as tropas alemãs terem entrado na cidade. Com três anos foi para a país de origem dos pais, de onde viria a sair com 37, em oposição à ditadura. Instalou-se então em Paris e foi lá que viveu até morrer.

Inovador como poucos, mestre no conto curto, iniciou uma nova forma de fazer literatura latino-americana e com ela influenciou muito e muitos. «Blow-up», de Michelangelo Antonioni, baseia-se num dos seus contos: «As Babas do Diabo».
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Cântico Negro

 


Estado de fumo

 


«Cheguei à minha aldeia, vizinha de Alpedrinha, na passada segunda-feira. O fogo já tinha descido encostas, galgado caminhos, desenhado no território uma geometria sem lógica, cheia de linhas de ameaça que os mapas não previam e que o vento reescrevia à sua vontade.

Os meus pais tinham decidido ficar. Na cidade, não se compreende o porquê. É perigoso, imprudente. Porque não fogem? Mas basta atravessar o país para perceber que ali, onde o socorro é incerto e o Estado é uma ausência ruidosa, a única estratégia é resistir. Quando não há garantias de que alguém virá proteger a casa, protege-se a casa. Porque as paredes ancoram. Porque, se elas caírem, arde também o que as rodeia. Ficar, nestas terras, também é proteger os outros.

As noites foram longas, tensas, dormia-se pouco. Dormia-se em turnos. Regavam-se os muros, as árvores, os caminhos, os telhados. As sirenes estavam longe, mas não sossegavam. À nossa frente, a Gardunha ardia em colunas que subiam e desapareciam como fantasmas. A cada rajada de vento, temia-se o desvio.

E, do outro lado, ninguém nos dizia o que fazer.

As aldeias organizaram-se como podiam. Homens com pás. Mulheres com baldes. Tratores a abrir caminhos improvisados. Grupos de Facebook a substituir o comando. Era ali que se anunciavam evacuações, que se mapeavam acessos, que se pediam braços. A informação não tinha centro, estava dispersa, vinha de mensagens, de boatos, de chamadas entre vizinhos. As juntas de freguesia publicavam comunicados em redes sociais. A GNR local, apesar de atenta, não sabia de nada. E assim se decidia: entre telefonemas, alertas, mãos no ombro. A logística da sobrevivência nascia da comunidade e não da estrutura.

Falei com um homem da Enxabarda. Contou-me que estava em casa quando o irmão ligou: os pais, numa aldeia mais a norte, estavam a ser evacuados. Subiu para a mota e foi. Chegou já com o fogo a cercar. Passou horas com uma pá, porque não havia água. Não havia bombeiros. Não havia ordens. A aldeia resistiu porque as pessoas estavam lá.

A sensação era a de um país sem Estado. Sentia-se que a promessa de proteção estava diluída em discursos. Lá, entre o plano e o incêndio, há uma distância onde só cabem os corpos.

Durante dias, a terra queimava e o Primeiro-Ministro permanecia no sul. Mergulhos, sorrisos, fotografias partilhadas entre fagulhas, a fórmula 1. As imagens cruzaram-se. E o país viu. Não foi só infeliz. Foi desadequado. Foi injusto. Há momentos em que o poder não pode estar longe, mesmo que não tenta nada para oferecer. Há presenças que se exigem pela sua própria existência.

O discurso do Pontal foi a confirmação de uma ausência prolongada. Um reflexo de governo fechado sobre si, como se a sua função fosse gerir o tempo mediático. Um sinal de que, por vezes, o exercício do poder esquece que o país não se resume às luzes de Lisboa.

Dias depois, quando o fogo ainda não parece dar tréguas mas as cinzas já deixam ver a paisagem queimada, chega o Governo. De gravata preta e rosto solene, o Primeiro-Ministro aparece, em Viseu, com o semblante esperado. Diz que lamenta “a percepção”. Mas não lamenta os seus erros. Diz que compreende “a sensibilidade”. Mas não reconhece o abandono. E anuncia medidas. São dezenas. Muitas têm nome de plano. Outras de promessa. Quase todas parecem responder à mesma lógica: tapar os buracos deixados pelas chamas. Ajudar quem perdeu. Indemnizar o que ardeu. Compensar a ausência com apoios. É o ritual habitual: o país arde, o Governo aparece, as câmaras registam, os papéis circulam.

Mas há um problema antigo nisto tudo: as ajudas tardam, e a prevenção nunca chega. E há a memória da família de Avelino Mateus Ferreira, morto em 2017, que três anos volvidos ainda não tinha recebido as indemnizações prometidas. Ainda há casas por reconstruir, caminhos por limpar, planos por cumprir. E, enquanto isso, os incêndios regressam. Repetem-se. Reescrevem os mesmos lugares com a mesma fúria. E o que se escuta da política é, invariavelmente, o mesmo som de sempre. Só se ouve depois da tragédia.

Arder não é excepção. Tornou-se, para Portugal, uma forma de agosto. E talvez isso nos diga mais do que gostaríamos.

Dizem-nos que o clima mudou. E é verdade. Mas a meteorologia não explica tudo. Portugal arde duas, três, quatro vezes mais do que os países vizinhos que têm a mesma secura, o mesmo calor, o mesmo verão. Há algo de estrutural na nossa fragilidade e que foi sendo tecido ao longo de décadas, à sombra do crescimento rápido e do abandono lento.

Somos o país da paisagem esquecida. Das encostas entregues a quem nelas consiga lucrar. Das árvores que ardem depressa porque crescem depressa. Uma floresta desenhada como conomia. A monocultura tornou-se o nosso modelo de ocupação. E o eucalipto o nosso símbolo de urgência: cresce, rende, arde.

(É uma anomalia no mediterrâneo. Espanha concentra as monoculturas de eucaliptos na Galiza — onde começou o fogo que se alastrou para território nacional — e nas Astúrias. Outra exemplo é Itália, que vê a maior parte da sua área rural ocupada por latifólias.)

Mas há outras árvores, e há outras formas de pensar o território. Folhosas autóctones, mosaicos de gestão, margens ripícolas que travam, desacelaram o fogo. Não é utopia nenhuma. É ciência, pode ser práctica, pode ser política. Se houver vontade de a fazer.

Mas fazer isto exige tempo. E dinheiro. E uma palavra que a democracia raramente pronuncia: continuidade.

França, que arde menos, começou a pagar o que chama o “custo da paisagem”. Aceitou que prevenir não é mais barato, mas é mais justo. Porque evita perdas que não se contam apenas em hectares. Contam-se em histórias, em casas salvas por uma pá, em noites acordadas com medo que o vento mude de lado.

Portugal já tem planos. Tem fundos. Tem palavras. O que lhe falta é densidade. A gravidade que obriga a pensar o território a partir do futuro. Não basta plantar. É preciso manter. Não basta manter. É preciso rever. E, sobretudo, não basta prometer. É preciso reordenar o olhar: da árvore para a floresta, da floresta para a aldeia, da aldeia para a terra.

Talvez o pacto de regime que o primeiro-ministro agora propõe venha tarde. Talvez não. Mas só será um pacto se aceitar o óbvio: uma paisagem que resiste custa. E não custa pouco.

Mas custa menos do que um país que arde todos os verões.»


25.8.25

E esta porta?

 


Porta de entrada do restaurante “A Velha Sinagoga”, Praga, 1907.
Arquitectos: František Weyr e Richard Klenka.

Daqui.

1944 – A libertação de Paris

 



Entre 19 e 25 de Agosto de 1944, a libertação de Paris pôs fim a quatro anos de ocupação. Desde 22 de Junho de 1940, a cidade era administrada pela Alemanha.

Charles de Gaulle, chefe do Governo Provisório, fez um discurso à população, que ficou célebre e imortalizado em algumas frases: «Paris outragé! Paris brisé! Paris martyrisé! Mais Paris libéré!».






E há também canções «eternas»:


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Chiado 25.08.1988

 



Só 29 países no mundo são democracias plenas, as autocracias e as ditaduras estão a impor-se

 



Os brinca na areia

 


«Esta crónica não é sobre os falhanços do Estado no combate aos incêndios — seja pela falta de meios aéreos e terrestres, seja pela absoluta descoordenação. Não é, tão-pouco, sobre o crónico insucesso na prevenção — seja pela desordenação florestal, seja pela ausência de limpeza das matas. E também não é sobre as alterações climáticas — sejam as ondas de calor cada vez mais frequentes e intensas, seja a desertificação associada ao despovoamento. Sobre tudo isto muito se tem escrito, tanto nos últimos dias como ano após ano, desde que o fogo se tornou arma política. A lógica é sempre a mesma: para quem está na oposição, a culpa é de quem governa; para quem governa, a culpa é de todos, mas sobretudo do governo anterior.

Não sendo esta uma reflexão sobre o falhanço coletivo, importa sublinhar, ainda assim, que esta maneira de ser português prejudica profundamente as populações do interior. Mesmo aqueles que escapam sem a mais leve queimadura acabam vítimas do “deixa arder”. “Não tem paralelo”, afirma Marcelo sobre o que já se passou este ano, consciente de que morreram pessoas e arderam milhares e milhares de hectares. Ao ouvir o Presidente da República, fica-se com a impressão de que a brutalidade dos números de 2017 justifica tudo. Mas, muito antes disso, entre incêndios, aos do interior já lhes tinham retirado hospitais, escolas e agências bancárias. Construíram-lhes autoestradas de sentido único, rumo ao litoral, onde se concentram os empregos. E os que não conseguem fugir tornam-se um pouco mais pobres a cada ano que passa.

Génios do marketing político

Esta crónica é sobre os políticos que, de tão geniais, acabam por fintar-se a si próprios e a atirar a bola para o calçadão. Aqueles que estão sempre mais interessados em endrominar o povo do que em resolver os seus problemas. Os que, através dos pactos que propõem, tentam convencer-nos de que a culpa é precisamente dos mesmos com quem dizem querer pactuar. Do mesmo modo que os que agora são oposição se desfizeram em explicações que os ilibavam quando estavam no poder.

Os que, a meio do mês, estavam felizes e satisfeitos consigo próprios — com o pé na areia e o copo na mão — e se queixavam dos fogos que lhes estragavam a imagem festiva na televisão, não fazem um verdadeiro mea culpa: limitam-se a sacudir a água do capote. Pela análise do professor Marcelo, ficamos a saber que o grande plano é, afinal, muito semelhante ao que Costa apresentara — e que pouco ou nada resolveu. Pelo estremecimento de Marta Temido, ficamos a perceber que pode estar tudo colado com cuspe.

Fogo nas presidenciais

Antes da indignação coletiva que o ecrã dividido potenciou, o candidato presidencial Gouveia e Melo mostrou-se envergonhado com a avaria dos meios aéreos e pediu o fim do “Estado do improviso”. Logo surgiu o seu principal adversário, Rebelo de Sousa, estendendo a mão ao governo e garantindo que a coordenação era “espetacular”,enquanto o seu candidato, Marques Mendes, alinhava no politicamente correto que só permite discutir o combate aos incêndios quando já não houver nenhum incêndio para apagar.

Generalizada a indignação pela festa que não foi suspensa, Marcelo percebeu que tinha de mudar de campo. Depois de fintar meio mundo em apoio ao governo, resolveu recuar e fintar o outro meio, apontando o dedo a quem “está em execução e decide em cima da hora [porque] muitas vezes chega tarde ou não percebe bem o alcance [da situação]".

Nestes tratados de hipocrisia e cinismo, há pelo menos uma coisa em que temos de concordar: andamos todos — com honrosas exceções — a fingir que existem soluções fáceis, dependentes apenas da boa-vontade de quem detém o poder em cada momento. Mas, depois de improvisarem no combate aos fogos, acabam sempre por ter de improvisar também na comunicação política, quando percebem que, por muito elaborado que seja, o spin nunca consegue sobrepor-se à realidade.

Os políticos tradicionais estão viciados em falar uns para os outros e perderam a capacidade de perceber o que sente e pensa o povo. Com a desculpa do que aprenderam em 2017, deixaram de ir para o terreno — onde estava Gouveia e Melo, não para atrapalhar o combate, mas para ouvir quem tudo perde. O almirante rapidamente se deu conta de como crescia a indignação das populações do interior, deixadas ao deus-dará no meio do fogo. Lembram-se do autarca de Arganil, desesperado, a gritar que tinha avisado que aquela “merda” ia acontecer? Foi no dia da festa, mas a festa ainda nem tinha começado!»


24.8.25

Neve

 


Vaso "Paisagem de Neve" em vidro marmorizado com gargalo serrilhado. Decoração finamente gravada em camafeu e pintada com esmaltes policromados, representando uma paisagem florestal. 1890-1900.
Daum Nancy.

Daqui.

Relax!

 


24.08.1916 – Léo Ferré

 


Léo Ferré nasceu no Mónaco, o pai trabalhava no Casino, a mãe era costureira e Léo, com 7 anos, já cantava no coro da catedral.

Deixou-nos preciosidades que resistem a todas as décadas, com letras suas ou de Aragon, Rimbaud e mais uns tantos. Três entre muitas outras:






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Colisão com a democracia

 


«Vale a pena revisitar o discurso feito pelo primeiro-ministro (PM) no passado dia 14, no Pontal. Não porque seja um discurso estruturado, mas sim pela lógica política (programática e de ação) em que assentou, e pelo que, entretanto, vamos constatando de ausência de respostas aos grandes problemas com que se depara quem trabalha e vive em Portugal.

Luís Montenegro, enquanto líder parlamentar do PSD reclamava, com estridência, o escrutínio democrático. Em pouco tempo, tornou-se um líder agastado - e muitas vezes sofrido ao ter que dar a cara - que embirra com os jornalistas que lhe fazem perguntas. Colocou o Tribunal Constitucional (TC) sob suspeição, acusando desbragadamente os juízes. Acompanhou o Chega e a Iniciativa Liberal no ataque à Constituição da República. Dá-lhe jeito instabilizar o TC, como passo para lhe impor outra composição que facilite a desconstrução da Constituição da democracia.

O PM insiste na velha lengalenga "nós governamos para as pessoas", querendo com isso inculcar na cabeça dos cidadãos que o escrutínio aos seus atos governativos não passa de ataque político contra os interesses dos próprios cidadãos, porque quem os interpreta é exclusivamente ele (Salazar também assim entendia). A governação tem sempre como destinatários os cidadãos. A questão é saber-se, com objetividade e rigor, quem beneficiam e quem prejudicam as políticas adotadas: isso implica questionamentos, debate transparente e participação das representações coletivas - políticas, sociais, económicas e culturais - com as quais se estabiliza e faz funcionar o sistema de pesos e contrapesos que dão vida à democracia.

Percebem-se as razões porque Luís Montenegro anda com pressa. Tem consciência da sua personalidade (o caso Spinumviva terá aparições múltiplas) e, acima de tudo, sabe muito bem que o seu Governo e o programa que vai executando se amparam em forças antirregime. O amplo setor neoliberal do PSD prossegue na convicção de que tomando a agenda da extrema-direita a controla ou aniquila. Tantas vezes e em tantos países já vimos este filme, que acaba sempre mal.

O que temos hoje à vista? Um ataque brutal aos direitos no trabalho e aos fundamentos do direito do trabalho para consolidar uma política de baixos salários e de desconstrução do sistema de relações coletivas de trabalho assente em valores democráticos. Em grande medida, as alterações nas políticas de imigração associam-se a esse objetivo. O SNS está a ser crescentemente corroído por dentro, porque, apesar das críticas justificadas que muitos cidadãos lhe fazem por ser difícil o acesso em muitas situações, os portugueses têm consciência de que foi uma extraordinária conquista. A mesma estratégia de ataque vai surgir em relação à Segurança Social.

A pressa do PM mostra-nos muitos perigos, mas também pode significar fragilidade do Governo.»