«Cheguei à minha aldeia, vizinha de Alpedrinha, na passada segunda-feira. O fogo já tinha descido encostas, galgado caminhos, desenhado no território uma geometria sem lógica, cheia de linhas de ameaça que os mapas não previam e que o vento reescrevia à sua vontade.
Os meus pais tinham decidido ficar. Na cidade, não se compreende o porquê. É perigoso, imprudente. Porque não fogem? Mas basta atravessar o país para perceber que ali, onde o socorro é incerto e o Estado é uma ausência ruidosa, a única estratégia é resistir. Quando não há garantias de que alguém virá proteger a casa, protege-se a casa. Porque as paredes ancoram. Porque, se elas caírem, arde também o que as rodeia. Ficar, nestas terras, também é
proteger os outros.
As noites foram longas, tensas, dormia-se pouco. Dormia-se em turnos. Regavam-se os muros, as árvores, os caminhos, os telhados. As sirenes estavam longe, mas não sossegavam. À nossa frente, a Gardunha ardia em colunas que subiam e desapareciam como fantasmas. A cada rajada de vento, temia-se o desvio.
E, do outro lado, ninguém nos dizia o que fazer.
As aldeias organizaram-se como podiam. Homens com pás. Mulheres com baldes. Tratores a abrir caminhos improvisados. Grupos de Facebook a substituir o comando. Era ali que se
anunciavam evacuações, que se mapeavam acessos, que se pediam braços. A informação não tinha centro, estava dispersa, vinha de mensagens, de boatos, de chamadas entre vizinhos. As juntas de freguesia publicavam comunicados em redes sociais. A GNR local, apesar de atenta, não sabia de nada. E assim se decidia: entre telefonemas, alertas, mãos no ombro. A logística da sobrevivência nascia da comunidade e não da estrutura.
Falei com um homem da Enxabarda. Contou-me que estava em casa quando o irmão ligou: os pais, numa aldeia mais a norte, estavam a ser evacuados. Subiu para a mota e foi. Chegou já com o fogo a cercar. Passou horas com uma pá, porque não havia água. Não havia bombeiros. Não havia ordens. A aldeia resistiu porque as pessoas estavam lá.
A sensação era a de um país sem Estado. Sentia-se que a promessa de proteção estava diluída em discursos. Lá, entre o plano e o incêndio, há uma distância onde só cabem os corpos.
Durante dias, a terra queimava e o Primeiro-Ministro permanecia no sul. Mergulhos, sorrisos, fotografias partilhadas entre fagulhas, a fórmula 1. As imagens cruzaram-se. E o país viu. Não foi só infeliz. Foi desadequado. Foi injusto. Há momentos em que o poder não pode estar longe, mesmo que não tenta nada para oferecer. Há presenças que se exigem pela sua própria existência.
O discurso do Pontal foi a confirmação de uma ausência prolongada. Um reflexo de governo fechado sobre si, como se a sua função fosse gerir o tempo mediático. Um sinal de que, por vezes, o exercício do poder esquece que o país não se resume às luzes de Lisboa.
Dias depois, quando o fogo ainda não parece dar tréguas mas as cinzas já deixam ver a paisagem queimada, chega o Governo. De gravata preta e rosto solene, o Primeiro-Ministro aparece, em Viseu, com o semblante esperado. Diz que lamenta “a percepção”. Mas não lamenta os seus erros. Diz que compreende “a sensibilidade”. Mas não reconhece o abandono. E anuncia medidas. São dezenas. Muitas têm nome de plano. Outras de promessa. Quase todas parecem responder à mesma lógica: tapar os buracos deixados pelas chamas. Ajudar quem perdeu. Indemnizar o que ardeu. Compensar a ausência com apoios. É o ritual habitual: o país arde, o Governo aparece, as câmaras registam, os papéis circulam.
Mas há um problema antigo nisto tudo: as ajudas tardam, e a prevenção nunca chega. E há a memória da família de Avelino Mateus Ferreira, morto em 2017, que três anos volvidos ainda
não tinha recebido as indemnizações prometidas. Ainda há casas por reconstruir, caminhos por limpar, planos por cumprir. E, enquanto isso, os incêndios regressam. Repetem-se. Reescrevem os mesmos lugares com a mesma fúria. E o que se escuta da política é,
invariavelmente, o mesmo som de sempre. Só se ouve depois da tragédia.
Arder não é excepção. Tornou-se, para Portugal, uma forma de agosto. E talvez isso nos diga mais do que gostaríamos.
Dizem-nos que o clima mudou. E é verdade. Mas a meteorologia não explica tudo. Portugal arde duas, três, quatro vezes mais do que os países vizinhos que têm a mesma secura, o mesmo calor, o mesmo verão. Há algo de estrutural na nossa fragilidade e que foi sendo tecido ao longo de décadas, à sombra do crescimento rápido e do abandono lento.
Somos o país da paisagem esquecida. Das encostas entregues a quem nelas consiga lucrar. Das árvores que ardem depressa porque crescem depressa. Uma floresta desenhada como conomia. A monocultura tornou-se o nosso modelo de ocupação. E o eucalipto o nosso símbolo de urgência: cresce, rende, arde.
(É uma anomalia no mediterrâneo. Espanha concentra as monoculturas de eucaliptos na Galiza — onde começou o fogo que se alastrou para território nacional — e nas Astúrias. Outra
exemplo é Itália, que vê a maior parte da sua área rural ocupada por latifólias.)
Mas há outras árvores, e há outras formas de pensar o território. Folhosas autóctones, mosaicos de gestão, margens ripícolas que travam, desacelaram o fogo. Não é utopia nenhuma. É ciência, pode ser práctica, pode ser política. Se houver vontade de a fazer.
Mas
fazer isto exige tempo. E dinheiro. E uma palavra que a democracia raramente pronuncia: continuidade.
França, que arde menos, começou a pagar o que chama o “custo da paisagem”. Aceitou que prevenir não é mais barato, mas é mais justo. Porque evita perdas que não se contam apenas em hectares. Contam-se em histórias, em casas salvas por uma pá, em noites acordadas com medo que o vento mude de lado.
Portugal já tem planos. Tem fundos. Tem palavras. O que lhe falta é densidade. A gravidade que obriga a pensar o território a partir do futuro. Não basta plantar. É preciso manter. Não basta manter. É preciso rever. E, sobretudo, não basta prometer. É preciso reordenar o olhar: da árvore para a floresta, da floresta para a aldeia, da aldeia para a terra.
Talvez o pacto de regime que o primeiro-ministro agora propõe venha tarde. Talvez não. Mas só será um pacto se aceitar o óbvio: uma paisagem que resiste custa. E não custa pouco.
Mas custa menos do que um país que arde todos os verões.»