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30.1.21
Cirurgias estéticas?
Um efeito colateral a que a minha imaginação nunca chegaria!
«Especialistas indicam que aumento das cirurgias estéticas está relacionado, por exemplo, com as reuniões virtuais que evidenciam rugas, com as pálpebras descaídas que são mais destacadas pelo uso da máscara.»
«Ao destacar o olhar, destaca imperfeições, como a ptose palpebral (queda da pálpebra superior), dermatocalasia palpebral (aumento de peso ou gordura nas pálpebras superiores, podendo causar diminuição do campo visual superior) e também, por esse motivo se verificou o aumento da procura pela blefaroplastia.»
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50 x deputados x 50
50 deputados, repito: 50 deputados, consideraram-se indispensáveis (sem possibilidade de serem substituídos por colegas, portanto) e colocaram-se no primeiro turno com direito a vacinação: 26 deputados do PS, 19 do PSD, 2 do PCP, 1 do CDS, 1 do PEV e a deputada não-inscrita Joacine Katar Moreira.
Note-se que considero indispensável que alguns responsáveis políticos sejam considerados prioritários e que até tarda a sua vacinação. Mas 50 DEPUTADOS?
Ler AQUI notícia detalhada.
P.S. - 14:00: PSD retirou da lista Rui Rio e mais 11 deputados.
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A precariedade, ora nem mais, célulazinhas cinzentas, sempre atentas…
«“No futuro, todo o trabalho será precário, até que ninguém do planeta saiba se de facto está ainda a trabalhar.”
Podia ter sido o Dilbert
Falar da precariedade na ciência, em particular, é sempre muito confuso. As subtilezas contratuais são muitas e as tipologias de vínculo muitas são. Tentando esclarecer um pouco o leitor leigo nesta precariedade, e não os investigadores que já a sabem toda, recorrerei a uma ilustração.
Imagine-se num supermercado com quatro caixas e, a bem da ilustração, imagine-o público. O caixa 1 é funcionário do quadro do supermercado, o caixa 2 é contratado a termo certo do supermercado, o caixa 3 é também contratado a termo certo, mas pela Fundação Supermercado, e o caixa 4 é bolseiro da Fundação de Apoio aos Supermercados. O caixa 1 ganha mais. O caixa 2 e o caixa 3 ganham o mesmo. O caixa 4 ganha menos e nem tem direito à segurança social dos outros. Ao final de uns anos, o caixa 1 talvez suba de escalão, o caixa 2 reza para ter contrato igual ao caixa 1, o caixa 3 vai embora porque a Fundação Supermercado diz não ter quadro de caixas, nem nada a ver com o supermercado, e o caixa 4 reza pela oportunidade de ter um contrato, pois a probabilidade de o conseguir é só de 8%.
De vez em quando, há concursos da Fundação de Apoio aos Supermercados onde se podem ir buscar bolsas de caixa, pela qual muitos rezam também. Todos os caixas têm de dizer no crachá que trabalham no supermercado, independentemente de quem os contratou. O caixa 4 tem ainda de agradecer no crachá à Fundação de Apoio aos Supermercados. O caixa 1 e o caixa 2 votam nas eleições do supermercado. O caixa 3 não pode votar. O caixa 4, só pode às vezes. O “ministro dos Supermercados” diz a toda a gente que o caixa 2 e o caixa 3 têm um contrato tão bom como o caixa 1, que não têm contratos precários coisa nenhuma, ganham menos porque têm tarefas muito diferentes, e que o caixa 4 não pode ter contrato porque está em formação. Todos os produtos têm código de barras e todas as caixas calculam o troco.
O “Conselho dos Administradores dos Supermercados Portugueses” concorda com tudo, desde que não tenha de pagar ou contratar para os quadros, e de preferência que não tenha de dar direito de voto a mais ninguém. O ministro finge acreditar que vão todos para o quadro. Finge também que não é ele quem tem de pagar. Certo dia, houve um programa de regularização extraordinário dos vínculos precários. Os caixas 2, 3 e 4 concorreram porque trabalhavam há anos no supermercado e não percebiam porque não estavam no quadro como o caixa 1. Foram todos recusados, ou porque o “Administrador do Supermercado” disse que não eram necessários ou porque, apesar do que dizia o crachá, nem sequer trabalhavam para o supermercado. O ministro achou bem e o seu Governo também.
Está inscrito na Constituição da República Portuguesa que — abreviando muito — todos têm direito ao trabalho, que para trabalho igual salário igual, e que incumbe ao Estado promover políticas de pleno emprego e promover a formação dos trabalhadores. Contudo, entre muitos outros desmandos, e sem apelo nem agravo, a formação é agora argumento para manter bolsas e recusar contratos. A continuar assim, brevemente, todos os médicos serão bolseiros, durante os longos anos de internato e especialização, e se alguém ousar aprender alguma coisa enquanto trabalha, será logo despedido. Mas não esmoreça o leitor, pois os “caixas” são muitos e estão unidos e não deixarão que no futuro só haja contratos para quem já tudo tiver aprendido.»
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29.1.21
Anti-sistema
«Na actual conjuntura internacional, o anti-sistema foi capturado pela extrema-direita. Pela simples razão de que o anti-sistema agora não é o socialismo ou o comunismo, mas a ditadura e o fascismo, por mais disfarçado de “democracia iliberal”.»
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29.01.1963 - «O Tempo e o Modo»
O primeiro número saiu há 58 anos, em 29 de Janeiro de 1963. Alguns (cada vez menos, infelizmente...) recordarão a importância que teve o lançamento desta revista como plataforma de um diálogo possível em tempos de censura bem dura, na sociedade portuguesa daquele início da década de 60. Pessoalmente, tive a sorte de nela participar e, para além do enriquecimento que esse facto me proporcionou, permitiu-me colaborar com grupos e pessoas, que, sem a existência da revista, estariam fora do meu universo de então.
António Alçada Baptista, João Bénard da Costa, Pedro Tamen, Nuno Bragança, Alberto Vaz da Silva e Mário Murteira, todos católicos, concretizaram um projecto que, desde o seu início, foi aberto à colaboração de não crentes, o que hoje parece absolutamente trivial, mas que esteve longe de o ser e foi mesmo objecto de uma votação. Não resisto a resumir o que então se passou: antes de a dita votação se efectuar, foi rezada uma Avé-Maria para que o Espírito Santo iluminasse os presentes. A decisão, pela positiva, foi tomada por cinco votos a favor e dois contra, o que permitiu que tivessem sido colaboradores, desde o início, Mário Soares, Salgado Zenha, Jorge Sampaio e Sottomayor Cardia, entre outros. Este episódio, hoje dificilmente compreensível, revela bem o peso da mentalidade então vigente e a importância histórica dos que contra ela lutavam – «abertura» passou a ser um dos sinais de marca de O Tempo e o Modo.
Em 1964, por ocasião do primeiro aniversário da revista, António Alçada Baptista comentou, bem à sua maneira: «O Tempo e o Modo pretendeu ser essa mesa onde as pessoas se conheceram e à volta da qual alguns se quiseram sentar. Depois, e à mesma mesa sentados, acharam que era possível falar. Conversados, reconheceram que muitas preocupações lhes eram comuns e que, talvez, ao tentarem resolvê-las, o poderiam fazer em equipa.» (O Tempo e o Modo, nº 12, Janeiro de 1964, p. 1.)
Foi longa e atribulada a história da revista, publicada entre 1963 e 1977. Actualmente, estão disponibilizados online todos os números das diversas fases.
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Notícias do túnel
«Eu, médica, observadora diferenciada, estive internada com o diagnóstico de covid-19 durante dez dias nas enfermarias do Hospital de Santa Maria e penso que o meu testemunho pode servir de alerta e de um enorme reconhecimento. Alerta para o risco real e actual (rastrear e confinar é preciso). E dar graças à vida pela existência do nosso Serviço Nacional de Saúde.
Estive a trabalhar e a ver doentes até ao dia 23 de Dezembro, com todo o cuidado, e não foi por aí que o vírus entrou. No dia 24, juntámo-nos seis adultos e três crianças e, apesar das máscaras e das distâncias, alguma imprudência abriu por momentos a porta ao invisível. Contaminámo-nos todos e, fiados na falsa segurança do teste simples, alguns de nós multiplicaram o contágio. Os mais jovens mantiveram a sua energia transbordante, os de idade intermédia tiveram muitos sintomas, mas trataram-se em casa, os mais velhos reagiram de acordo com os factores de risco. E foi assim que ao décimo dia de febre e outras queixas o meu colega do Centro de Saúde me ordenou, e bem, que fosse à urgência covid. Se não tivesse ido tinha morrido e esse é o primeiro alerta a manifestar.
Há um momento, determinado empiricamente, em que se conclui, por estatística, que é assim. Não vale a pena correr contra as probabilidades. Claro que foi muito incómodo, muito frio, muito desaconchegado, esperar por ser chamada no pequeno telheiro improvisado no piso das entradas. Fica melhor quem está dentro das ambulâncias, que têm suporte de oxigénio e macas ou cadeiras. Esta condição de espera, este ponto de entrada, seria possível melhorar fisicamente? Talvez. Mas os doentes chegam e não podem ser mandados para trás. Seria possível desviar um meteorito que caísse em cima das nossas cabeças? Só para os encartados e teóricos comentadores, que, eles, preveriam tudo.
Resolveu-se: agora temos o hospital de campanha. Todavia, foi por ali que me salvei. Quando finalmente dei entrada no Covidário, ganhei direito a um cadeirão, a uma máscara de oxigénio e à segurança de ter entrado no circuito. Desde esse momento fui sempre a senhora Isabel, idêntica a todos os outros e nunca, e bem, a médica da casa. Algumas horas depois entrei numa box, com WC e uma porta com grande janelão de vidro. As dimensões comparei-as com outras de outras “boxes” de há muitos anos. Idênticas, mas o janelão e o calor humano pertencem a outro universo. Fiz então uma TAC num dispositivo colocado no Covidário. E é aí o extraordinário. Nunca ao longo de tantos anos de clínica tive conhecimento de tal quadro – os meus pulmões estavam infiltrados de alto a baixo e dos dois lados com múltiplos focos de inflamação, que não deixavam o oxigénio atravessar os alvéolos e passar para o sangue, onde ele é necessário à vida. Sintomas? Poucos. Mas lá estava o oxímetro a mostrar níveis baixos. Aqui reside um grande risco. Esta “hipoxemia feliz” mata. Assim morreu o pai de uma colega minha com 50% de saturação e poucos sintomas. Foi, a partir do nada ou da experiência inicial da China, que os protocolos foram sendo estabelecidos. De madrugada saí do Covidário e fui rapidamente internada nas enfermarias covid, Medicina 2C. Fizeram-me aquilo que está protocolado que se faça: oxigénio, corticóides, broncodilatadores, antibiótico se necessário. Para os meus companheiros de enfermaria, alguns hemodialisados, diabéticos, transplantados, cada protocolo era diferente. No mesmo piso, para além da porta de separação havia mais enfermaria covid, havia a zona dos intensivos e havia a zona dos intermédios com máscara permanente de oxigénio, onde ficou o Carlos Antunes e donde partiu para sempre no dia 19 de Janeiro.
Aquilo a que assisti de serenidade, de eficácia, de competência, ficará para sempre marcado como um momento muito alto da minha vida. Sei que as pessoas todas juntas não somam inteligências, multiplicam. É um fenómeno que faz parte da natureza humana, assim a humanidade sobreviveu. Observei a entrada regular e harmoniosa das assistentes operacionais, dos enfermeiros, dos fisioterapeutas, dos jovens médicos internos e das chefes seniores. Cada um sabe o gesto que tem que fazer, o equipamento em que tem que mexer, o registo necessário, a colheita de sangue a horas, a administração do medicamento. E… sabe também informar. Explica o que vai fazer e porquê.
O meu conhecimento dos espaços das urgências cresceu comigo organicamente. Fiz urgências nos bairros pobres de Lisboa, fiz no Hospital do Barreiro actos clínicos que não passavam pela cabeça de uma miúda de vinte e poucos anos, antes da classificação de Manchester andei de papel na mão a fazer triagem na sala de espera, vi crescer o Serviço de Observações das Urgências de Santa Maria com a Teresa Rodrigues a decidir os gestos urgentes. E lá continua ela a salvar gente. Sofri com os “directos” e culpabilizei-me. Vi o Carlos França instalar finalmente os Cuidados Intensivos. Vi tudo? Não. Não vi nada. Porque bastou o ano de 2020 e o inimigo ultra invisível para perceber que há uma coisa que de facto é um “milagre”: a capacidade de auto-organização, rápida, eficaz, criativa, serena. Era possível fazer tudo isto com requisição civil? Tenho dúvidas. É a cultura que está para trás que explica o “milagre”.
Com as minhas amigas enfermeiras conversávamos por vezes sobre os “territórios”. Pois o milagre também desenhou territórios. Quer isto dizer que reina a paz nos serviços de urgência do Serviço Nacional de Saúde? Não. Esta onda organizada de espaços e de recursos humanos palpita como um corpo que pede respiração. O director da Medicina, Lacerda, vai buscar enfermarias a todo o lado possível, converte serviços e adapta-os. A Sandra Brás supervisiona como um arcanjo os vários espaços e equipamentos covid-19. Os meus colegas dos Cuidados Intensivos, com 85% de lotação, estão no limite, ou seja, na zona das necessárias e rápidas escolhas. Estes doentes não são pneumonias habituais. Têm mais demora de cama (quanta?), têm uso de equipamentos que não existiam antes.
Os meus colegas não estão desesperados, nem aflitos, estão profundamente preocupados, esgotados também, a situação é dinâmica, é preciso fazer opções técnicas. Quando lançam o alarme cá para fora não é um pedido de socorro para eles. É dizer que só o confinamento melhora o problema. É explicar que quanto mais infectados, mais sintomáticos. Entre estes aumentam os de risco e quanto mais risco mais cuidados intensivos. E há uma linha vermelha que percorre este chão e é móvel – a das mortes evitáveis.
Na minha enfermaria, por sinal toda de afrodescendentes, senti no mais fundo da noite que alguém abandonava a Montanha Mágica. Com serenidade. Sem obstinação. É também uma escolha. No dia seguinte a animada Inalda, assistente operacional de São Tomé (já sou efectiva!), a enfermeira Ana, a enfermeira Marta, nos doentes o Sr. C. que ficou meu amigo e é de Cabo Verde, a Dona A., de Luanda, o Sr. D. que também é de Luanda e já venceu muitas coisas, corpos que já foram desejados, já se reproduziram, são a humanidade que ali está. A médica de Medicina Interna, Dra. Patrícia Howell Monteiro, que ainda foi contratada em exclusividade (2008/2009?), é o pilar sólido e sustentável que orienta o Henrique Barbacena, o Renato e o Francisco, que hão-de fazer o exame da especialidade proximamente. Para onde irão? O Renato está a sofrer nos cuidados intensivos, a dar o máximo. O Henrique é também professor de Farmacologia, tive o privilégio que me explicasse coisas sobre vírus. E ausculta à velha maneira, como eu. Conseguimos ter um momento para conversar e a propósito da vida e do ultra invisível contou-me como lera apaixonadamente a Estranha ordem das coisas, do Damásio, livro que a chefe Patrícia lhe ofereceu. Há muitos anos, o António Damásio também foi da nossa incubadora, o Hospital de Santa Maria. E, a propósito, eu e o Henrique conversámos sobre a dinâmica da vida, a necessidade de não fazer classificações mecanicistas. E reganhei a grande esperança do aviso da tal frase do Abel Salazar: “Um médico que só sabe Medicina, então não sabe Medicina.” Estes sabem Medicina e são uma das estruturas do SNS.»
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28.1.21
Vacinas
O ministro Eduardo Cabrita disse hoje na Assembleia da República que as pessoas com mais de 80 000 anos vão ser vacinadas no primeiro turno. Esperarei pacientemente.
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Privados podiam ter dado aulas online nos últimos 15 dias?
«António Costa afirmou que “ninguém proibiu ninguém de ter o ensino online” neste último período de confinamento. Foi mesmo assim?»
« Quer o decreto com as medidas de combate à covid-19, quer o ministro da Educação afirmavam, de forma clara, que a suspensão das actividades lectivas e não lectivas vigoraria em “todos estabelecimentos de ensino públicos, particulares e cooperativos”, bem como no sector social e solidário, da educação pré-escolar aos ensinos básico e secundário.»
(Daqui)
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Novo Estado de Emergência
O texto pode ser lido AQUI.
P.S. – Aprovado
na Assembleia da República, com votos a favor de
PS, PSD, CDS, PAN e Cristina Rodrigues, abstenção de BE e votos contra
de PCP, PEV, IL, Chega e Joacine K. Moreira.
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Precisamos de tempo para salvar todo o ecossistema de saúde
«“Nunca pensei que chegasse a este ponto”, oiço de forma recorrente. Recebo mensagens, telefonemas ou em rápidas conversas nos corredores, profissionais de saúde, de todas as classes e de vários locais do país, relatam uma situação semelhante: a enorme pressão a que os hospitais estão sujeitos. Nem nos piores momentos, tivemos um fluxo constante de doentes com elevados níveis de necessidades e requerem vários recursos diferenciados, desde humanos a materiais.
Os recursos materiais são esticados e improvisados ao máximo. Enfermarias transformadas em cuidados intermédios, blocos operatórios transformados em cuidados intensivos, qualquer espaço livre na urgência é aproveitado para um novo internamento. Reciclam-se camas que estavam para aproveitamento de peças, otimiza-se a rede de distribuição de oxigénio que não foi construída para esta enorme procura súbita e são retirados do armazém monitores antigos. Tudo é aproveitado ao máximo, mais houvesse, mais seria utilizado.
Mas tem um limite, até conseguimos, com boa vontade e imaginação, arranjar mais um espacinho para o novo doente com covid-19 que nos chega, mas inevitavelmente, a dada altura os recursos humanos estão esticados ao máximo e no limite da sua capacidade de resposta. A trabalhar com rácios apenas possíveis porque os nossos profissionais de saúde são bastante bons. Mas não somos máquinas, trabalhar dias a fio sempre a um elevado ritmo, sem ter gozado férias em 2020 e não podendo gozar agora, a perder folgas e com vários seguimentos de turno, terá certamente impacto na saúde mental de todos nós. Temo seriamente pela nossa capacidade de processar todo este esforço.
Os cuidados intensivos chegam rapidamente à marca dos 750 internados, apenas por uma doença. A quem insiste em comparações descabidas com a gripe, tem de saber que 2014 foi o ano que a influenza causou mais pressão em cuidados intensivos, chegando a 98 doentes internados durante um período de 2 semanas. Desde o final de novembro, que a Covid-19 provocou uma ocupação de cuidados intensivos superior a 500, atingindo nas últimas duas semanas, estes novos e preocupantes máximos históricos. Colocando em perspetiva, esta utilização de recursos transposta para janeiro 2020 e estaríamos com uma ocupação de 107%.
Nas urgências experienciamos uma situação dramática. Se nas unidades, o ambiente, apesar de pesado e trabalhoso, é controlado, nas urgências a porta da rua está aberta. Não se controla, minimamente, o fluxo de doentes que nos chega e somos obrigados a ter sempre algum tipo de resposta para oferecer. Isto provoca situações limite, em que num espaço físico planeado para 15 doentes com ventilação não invasiva, existam agora facilmente 40. Pela falta de vagas em cuidados intensivos ou intermédios, os doentes são forçados a permanecer mais tempo que o desejável nas urgências, em difíceis situações clínicas e logísticas, em que profissionais são forçados a desdobrarem-se para prestar os cuidados possíveis a todos.
Na comunidade a situação não é melhor. O volume das atividades relacionadas com a testagem, rastreamento e isolamento de novos casos é uma montanha que não para de crescer. O trabalho não tem fim à vista, o que torna desesperante o dia-a-dia dos profissionais que trabalham neste contexto. Sem esquecer que todas as restantes atividades dos cuidados de saúde primários ficam invariavelmente atrasadas. A base da nossa pirâmide da saúde está suspensa e presa pela covid-19.
Faço este relato não com o objetivo de assustar as pessoas. Aliás, quero deixar claro que os profissionais de saúde não têm desistido, têm tido um esforço inegável, desde a criatividade em arranjar soluções a força física para aguentar mais turnos, que se não tivéssemos esta força de trabalho, a situação estaria bem pior. Faço este relato na esperança de que todos façam o possível por reduzir ao máximo as oportunidades de transmissão do vírus. A utilização correta das máscaras de proteção, a higiene correta das mãos, redução da presença em espaços fechados e pouco ventilados, assim como, o distanciamento social adiando jantares e convívios nas próximas semanas.
Precisamos de tempo para salvar todo o ecossistema de saúde e para as vacinas começarem a exercer a sua influência. Todos temos um papel essencial a cumprir. Uns trabalham nos serviços de saúde, outros recolhem o lixo, outros fazem o pão e outros fazem teletrabalho. Todos são heróis. Todos são necessários. Sejam agentes ativos de saúde pública.»
Mário André Macedo - Enfermeiro
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27.1.21
Quando passar uma ambulância, não olhem para o lado
«Em casa, após mais uma urgência de 24 horas, é tempo para um café bem forte e, finalmente, para a leitura do PÚBLICO de ontem e o retomar do contacto com o que se passou fora do hospital.
As notícias do agravamento dos números da pandemia em Portugal e a subida rápida do país ao topo da lista dos países com piores indicadores traz-me à memória uma das situações vividas ontem. Pelas quatro horas da tarde eu estava numa ambulância, transportando para o hospital uma doente em estado crítico, ligada a um ventilador. No interior da ambulância, por momentos desviei a atenção dos monitores, dos tubos e da doente e espreitei pela janela: estávamos na VCI, a via que circunda a cidade do Porto, e foi com espanto que constatei verificar-se um trânsito muito intenso. O fluxo de veículos era contínuo, nas três faixas de cada sentido, em tudo semelhante a um dia normal. Isto, em pleno confinamento, numa sexta-feira de tarde, com as escolas fechadas, com o país sob medidas muito semelhantes às de Março/Abril, o que observei nada tinha que ver com o que se observava então e o contraste chocou-me. No hospital desde o início da manhã, pensávamos que o fecho das escolas iria finalmente resultar em manter as pessoas em casa. Quem seriam e o que fariam todos os cidadãos que às quatro da tarde circulavam em tão grande número? Não estavam a sair dos empregos, não estavam a recolher os filhos nas escolas, alguns estariam em trabalho, mas todos?
Enquanto tentava entender o que poderia justificar tanto trânsito e quem ocuparia aqueles veículos, não pude deixar de efectuar o exercício inverso de procurar imaginar que reacção provocaria aos ocupantes dos veículos a passagem de uma ambulância e o alerta das suas luzes e sirenes. Quantos se terão preocupado com o doente transportado na ambulância? Em quantos a passagem da ambulância terá proporcionado um momento de reflexão e de introspecção?
A verdade é que são tantas as ambulâncias que receio que para muitos a sua passagem não suscite mais do que indiferença. A passagem da ambulância terá representado apenas uns milissegundos de desvio da atenção, não deixando marcas, nem suscitando reflexões. Se a ambulância transportasse alguma celebridade e ao final do dia pudessem reclamar ter assistido à passagem da ambulância que transportava “X”, então sim, o caso mereceria toda a atenção. Mas sendo apenas mais uma ambulância e o doente um simples número numa estatística anónima publicada no dia seguinte, nenhum efeito produziria este cruzamento fortuito com mais uma ambulância. Enquanto eu procurava entender o que se passaria na mente dos ocupantes de tantos veículos, senti que nas mentes de muitos deles a preocupação efectiva com o cenário no interior da ambulância seria reduzido.
Mais tarde, no hospital, conversei com colegas sobre as possíveis causas para o que nos parece ser uma aparente ineficácia ou um efeito limitado do presente confinamento. Porque é que os portugueses não estão a ficar em casa e a abster-se dos contactos sociais que mantêm a propagação do vírus?
Atrevo-me a especular que, ao contrário do início da pandemia, agora o alarme e o medo só ocorrem quando é a vida de um dos nossos que está em perigo. Numa fase em que um em 20 portugueses já contraíram o vírus e a maioria nada sofreu, e em que qualquer um conhece pessoalmente várias pessoas a quem o vírus não causou doença, atenuou-se muito o medo que em todos existia no início da pandemia. Este facto, associado a semanas de exposição aos discursos que repetiam que na segunda vaga havia sobretudo assintomáticos e que o SNS estava preparado e com boa capacidade de resposta, resultou num relaxamento das medidas de protecção. A completar as premissas para uma tempestade perfeita, veio o Natal e as atitudes optimistas que tanto agradaram quer aos decisores, quer à generalidade dos cidadãos, numa singular unanimidade entre a hierarquia do Estado, as diversas autoridades e a totalidade dos partidos políticos e, naturalmente, os cidadãos. Acreditou-se na existência de condições para uma abertura no Natal e naturalmente, por efeito do chamado espírito natalício, terá ocorrido um fenómeno muito próprio da nossa cultura em que o desejo se sobrepôs à realidade.
A comparação entre a reacção dos nossos concidadãos ao avanço da pandemia em Março e em Janeiro sugere que o efeito determinante no seu comportamento possa ser a dimensão do medo. A meu ver, esta componente é no caso da presente pandemia reforçado por um elemento que constitui uma absoluta novidade: os familiares não acompanham os seus entes queridos ao longo dos seus internamentos hospitalares e não são, por isso, testemunhas do que é estar gravemente doente e sucumbir a esta doença. A fase avançada e grave ocorre com um absoluto distanciamento físico. Penso que é maior, por exemplo, o medo relativamente ao cancro, pois todos somos testemunhas de casos em que a progressão da doença provoca grandes incapacidades, as quais evoluem ao nosso lado, com uma evidência que nos choca. Com os nossos familiares internados em enfermarias covid quase não há contacto. As imagens das televisões são muito impessoais e o doente e a sua narrativa reduzem-se a números. Os casos que se tornam mediáticos são os dos sucessos terapêuticos que felizmente vão ocorrendo, mas que no fundo alimentam uma esperança que as estatísticas não iludem.
Dois depoimentos na última semana no PÚBLICO, de Jorge Soares, presidente do Conselho Nacional de Ética, e de Carlos Antunes, investigador da FCUL, são muito importantes para a compreensão do elevado crescimento em Janeiro dos números da pandemia em Portugal.
É urgente conseguir que os portugueses modifiquem a sua atitude e que entendam que está nas mãos de cada um o gesto mais importante para travar a progressão da doença. O que observei ontem na VCI sugere que muitos dos nossos concidadãos diariamente encontram motivos para legitimar o que a seu ver lhes parece uma inofensiva inconformidade. E como no dia-a-dia todos constatam que as suas acções e deslocações ocorrem num cenário em que a probabilidade de serem interpelados e questionados é mínima e a de serem penalizados é ainda menor, instituiu-se mais um cenário em que ambas as partes, autoridades e cidadãos, se refugiam na presunção de que irá prevalecer o respeito pelas determinações do confinamento e a adopção de um comportamento civicamente exemplar. Sim, porque após tantas iniciativas no domínio do que se pode classificar de “propaganda”, os portugueses convenceram-se de que desde o início da pandemia foram absolutamente exemplares, ostentando orgulhosamente o rótulo de ter participado no “milagre português”.
Esta manhã, ao sair do hospital pelos pisos subterrâneos, vi passar dois cadáveres e não pude deixar de sentir um aperto no peito imaginando o rastro que a noite terá deixado em tantas enfermarias de tantos hospitais. A caminho de casa comprei o PÚBLICO e comovi-me ao olhar a sua primeira página onde, em grandes letras sobre fundo negro, se lê: “Luísa, Vítor, Pedro, Helena... vidas que perdemos para o coronavírus”. É justamente isso que os nossos concidadãos devem ter em conta: o ocupante da ambulância, a noite nas enfermarias cheias de doentes, a perda de tantas vidas e a identidade dessas pessoas.
Há que ter em conta os milhares e milhares de crianças e jovens que vão ficar privados de anos de convívio com os seus avós. Nós, os cidadãos adultos, assoberbados com os problemas pessoais diários, temos que mudar o modo como assistimos à progressão da pandemia e uma das formas de o fazer é pensar no que teria representado para cada um de nós se os avós que nos morreram há muito tivessem morrido dez anos antes e mal os tivéssemos conhecido e beneficiado dos seus afectos, das suas histórias, do tempo que nos puderam dispensar e dos valores que através deles adquirimos ou dos valiosos ensinamentos que nos prestaram. Não é só a aprendizagem nas escolas que se está a perder, é também essa rica aprendizagem junto dos velhos. E cada um dos cidadãos em idade e situação em que o vírus não representa uma ameaça deve assumir consciência de que pode ser o elo determinante na perda da vida de velhinhos encantadores, que nunca conheceram, mas que podem estar hoje a deixar de respirar e viver.
Felizmente, a doente que a nossa ambulância transportava está a melhorar, o que permite concluir este depoimento sem adicionar mais uma narrativa trágica. E, sim, posso assegurar que o pessoal das ambulâncias, os auxiliares de acção médica, os enfermeiros, os técnicos, os médicos, os administrativos dos diferentes prestadores de cuidados de saúde, não viramos costas. E o que pedimos é simples: quando passar a ambulância ou a estatística na TV, não olhem para o lado; olhem em frente e vejam o que podem fazer do vosso lado. Pode parecer pouco, mas se todos assumirmos que as acções de cada um contam, o efeito será mais eficaz do que qualquer outra medida.»
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26.1.21
Isolar, isolar, testar, testar, vacinar, vacinar
«Os subscritores desta tomada de posição quanto à situação sanitária que se vive no país são os mesmos que desde 2017 intervieram activamente na necessidade de haver uma nova Lei de Bases da Saúde, que veio a ser aprovada em Julho de 2019, e que há meses reclamam a elaboração do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, previsto naquela Lei.
Contudo, perante o agravamento da pandemia por covid-19, verificado nos últimos dias, que está a levar o SNS ao limite das suas capacidades, entendem que se torna prioritário responder com todas as soluções ao dispor das autoridades de saúde de maneira a diminuir drasticamente a escalada de infectados, internamentos e óbitos que se estão a verificar.
Consideram os subscritores que as medidas até agora tomadas, embora sejam necessárias para conter o agravamento ainda maior da situação, representam um compasso de espera para que seja posta em prática, em larga escala, a única solução que pode responder ao enorme número de acontecimentos indesejáveis que diariamente são noticiados.
Não menosprezamos a importância do confinamento e de todas as medidas de protecção aconselhadas pelas autoridades de saúde. Defendemos que se torna necessário maior tomada de consciência por parte da população relativamente à gravidade do que se está a passar, defendendo a sua saúde e a dos outros. No entanto constituiria um grave erro de avaliação, com consequências sociais e epidemiológicas dificilmente controláveis, atribuir à população os danos que toda a sociedade está a sofrer. É na acção pedagógica que está a chave para que se verifique melhor compreensão e maior adesão ao aconselhamento que é prestado pelas autoridades.
Entendemos que o governo tem procurado tomar as decisões que mais se ajustam aos desafios que tem de enfrentar, mas fê-lo baseado num modelo de intervenção que em vez de os antecipar ou prevenir foi quase sempre reactivo e de contenção de danos, acomodando-se às restrições orçamentais. Compreendemos que estamos perante riscos para a saúde de todos nunca antes conhecidos e que alguns erros e hesitações seriam sempre inevitáveis. Contudo, não basta admitir que se cometeram erros ou que algumas soluções foram mal equacionadas. Eles devem ser explicados de maneira a que o escrutínio democrático seja feito, mas também para que todos e cada um participe na prevenção desses erros.
O princípio da transparência na tomada de decisões deve estar sempre presente, principalmente quando altera e colide com a vida das pessoas, obrigando-as a modificar hábitos, rotinas e modos de vida há muito adquiridos. Nestes casos, a opacidade da informação é um inimigo do combate à pandemia. Ter-se conhecimento dos fundamentos das decisões é não só um instrumento facilitador das soluções que em cada momento têm de ser tomadas, considerando a sua evidência científica, mas também um factor de aceitação e cumprimento da decisão.
Os subscritores consideram que as medidas intercalares que estão a ser tomadas não devem ser consideradas como um fim, mas como um meio para ganhar tempo até que a vacinação massiva seja possível. Isso seria criar falsas expectativas quanto ao caminho que há a percorrer até que a pandemia esteja controlada.
No entanto, só será possível minimizar o impacto do atual descontrolo da propagação da infeção recrutando todas as competências técnicas e científicas ao serviço de políticas mobilizadoras, fundamentadas na investigação. Compete, por outro lado, aos governantes proceder à avaliação política da situação objetiva por forma a envolver simultaneamente a população e todos os agentes que, no terreno, intervêm na aplicação das decisões que tecnicamente são consideradas as mais aconselhadas.
O único motivo que leva os subscritores a tornar pública esta tomada de posição é a saúde da população e as insuficiências que se estão a verificar nas respostas que estão a ser dadas. Toda a capacidade instalada tem de ser colocada ao serviço de quem está doente. Em situações excepcionais têm de ser tomadas medidas excepcionais. Se há recursos que ainda não estão a ser aproveitados no sector social e privado eles devem ser de imediato accionados de maneira a que não se verifique o agravamento ainda maior da situação pandémica. Todos, sem excepção, têm o dever de solidariamente contribuir para debelar esta catástrofe sanitária. Cabe, por isso, ao governo tomar as decisões que previnam males maiores para o que está a acontecer.
O governo deve investir todos os seus esforços na vacinação, sem esquecer a logística e a quantidade de profissionais necessários para que no menor espaço de tempo possível se consiga fazer a cobertura da grande maioria da população, considerando os critérios de risco etário, social e epidemiológico. Este é um aspecto crítico do planeamento, que deve estar suficientemente delineado de maneira a não se verificarem falhas na sua aplicação. Nomeadamente, deverá ser público, elaborado por escrito e tecnicamente fundamentado. Qualquer alteração ao seu cumprimento, por motivos imponderáveis, também deverá ser de imediato publicamente justificada.
Estando a verificar-se algumas dificuldades na produção de vacinas por parte dos laboratórios que abastecem a União Europeia, compete à presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, com o apoio dos outros estados membros, proceder às diligências indispensáveis para que este défice seja rapidamente ultrapassado, por exemplo, adquirindo vacinas a quem está em condições de as fornecer sem quebra de compromissos e garantia da qualidade. Estão em jogo milhões de vidas em toda a Europa e é inaceitável que o planeamento das necessidades não tenha sido feito com o máximo rigor exigido.»
25 de Janeiro de 2021
Adelino Fortunato (economista); Aguinaldo Cabral (médico); Ana Feijão (médico); Ana Matos Pires (médica); Ana Prata (jurista); André Barata (jurista); Antónia Lavinha (médica); António Avelãs (professor); António Rodrigues (médico); Armando Brito Sá (médico); Augusta Sousa (enfermeira); Carlos Ramalhão (médico); Cipriano Justo (médico); Corália Vicente (matemática); Daniel Adrião (consultor); David Pires Barreira (psicólogo); Fernando Gomes (médico); Fernando Martinho (médico); Gregória Caeiro Von Amann (médica); Guadalupe Simões (enfermeira); Helena Roseta (arquitecta); Heloísa Santos (médica); Jaime Correia de Sousa (médico); Jaime Mendes (médico); João Lavinha (investigador); João Proença (médico); Jorge Espírito Santo (médico); José Aranda da Silva (farmacêutico); José Calheiros (médico); José Carlos Martins (enfermeiro); José Manuel Boavida (médico); José Maria Castro Caldas (economista); José Reis (economista); Luiz Gamito (médico); Luísa d´Espiney (enfermeira) ; Maria Deolinda Barata (médica); Maria João Andrade (médica); Maria Manuel Deveza (médica); Mariana Neto (médica); Mário Jorge Neves (médico); Nídia Zózimo (médica); Paulo Fidalgo (médico); Pedro Ferreira (matemático); Ricardo Sá Fernandes (advogado); Sérgio Esperança (médico) ; Sérgio Manso Pinheiro (geógrafo); Sofia Crisóstomo (farmacêutica); Teresa Gago (dentista)
(Recebido por mail)
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Portugueses do bem
«Os resultados eleitorais não são surpresa, mas revelam uma dimensão de normalização política e social do discurso da extrema direita que não pode ser escamoteada.
Um discurso repleto de nacionalismo, racismo, sexismo e xenofobia que dá voz e presença efetiva a preconceitos pré-existentes que, apesar de sempre desvalorizados, mostraram força suficiente para obter um terceiro lugar, numa corrida com vencedor antecipado.
Vitorioso e antevendo um regresso imediato, mediático e apoteótico, Ventura, em mais um golpe publicitário, num vou ali mas já volto travestido de cumprimento de promessa e pleno da empáfia que a vitória e a reconfiguração da direita justificam.
O candidato dos portugueses de bem, conceito que parece excluir, entre outros, os portugueses pretos, ciganos ou que usam batom vermelho, foi o candidato da extrema direita mas foi também o candidato da direita dita centrista, sempre pronta a dar-lhe palco, esperançada ou confortada com a perspetiva de colheita de votos que poderá capitalizar adiante, numa frente unida. Ventura sabe-o bem: “Não há volta a dar: não haverá Governo sem Chega nos próximos anos.”
Nesta onda normalizadora de discursos xenófobos e de exclusão, não esqueço o papel que o atual Governo de Cabo Verde desempenhou, quando não se coibiu de ligações escusas com o Chega, por razões, sem dúvida, ligadas a financiamentos partidários, a não ser que se identifique ideologicamente com a lógica discursiva da extrema direita portuguesa.
Por mais difícil que seja, é preciso admitir que o discurso xenófobo, racista, sexista, discriminatório e fomentador de políticas de ódio abre caminho em Portugal e tem encontrado uma direita recetiva que lhe vai dando palco, normalizando discursos e estreitando alianças em nome do interesse supremo que dá pelo nome de poder.
Em cada eleição existe oportunidade de desmascarar os apelos à intolerância cultural, de mitigar a iliteracia sobre a democracia e os direitos humanos. Oportunidade desperdiçada nestas presidenciais, porque continuamos a subestimar e desvalorizar os sinais.
Desperdiçada quando vemos que a garra de Marcelo face a Ana Gomes só tem comparação no lébi lébi do diálogo com Ventura; quando se esperava um contraponto claro e assertivo de valores, ficou um registo levíssimo de que não é a direita de Marcelo, induzindo que também é direita. Marcelo demitiu-se de combater a extrema-direita populista, quer no campo político, quer na defesa dos valores da dignidade humana, não em nome da sua reeleição mas em nome de um ressurgimento da direita, em futuros atos eleitorais.
Desperdiçada quando vemos uma esquerda pulverizada, sem um projeto comum que enfrente a lógica discursiva fácil da extrema direita, e uma Ana Gomes refém de si própria e de um discurso incapaz de mobilizar a vontade, até daqueles que sofrem na pele a normalização discriminatória.
Os comportamentos discriminatórios, seja pela cor, pela etnia e pelo sexo, são uma realidade e, se não definem um país ou as suas instituições, não podem ser ignorados ou apenas ser tidos em conta em situações limite.
Quando os discursos políticos de ódio da extrema direita são normalizados, os comportamentos xenófobos, racistas e discriminatórios sentem-se estimulados e tendem a aumentar no terreno lavrado pelas dificuldades que o mundo de hoje oferece.
Cada um de nós, portugueses do bem, que acreditamos naquele princípio consagrado na Constituição da dignidade da pessoa humana, não podemos assistir impassíveis à degradação de valores fundamentais em nome de interesses políticos de manutenção ou obtenção de poder.
Urge um combate político sério e uma recusa social muita clara e apartidária das lógicas e discursos discriminatórios. Reconhecer a liberdade de expressão da extrema direita não implica reconhecer as práticas discriminatórias e os discursos violentos como normais. Significa apenas que, enquanto portugueses do bem, reconhecemos a liberdade de expressão como um direito.»
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25.1.21
Lá vai o português
Hoje só me apetece sacudir o pó e regressar aos meus clássicos que já se foram embora e é Cardoso Pires que me acompanha.
«Lá vai o português, diz o mundo, quando diz, apontando umas criaturas carregadas de História que formigam à margem da Europa.
Lá vai o português… lá anda. Dobrado ao peso da História, carregando-a de facto, e que remédio – índias, naufrágios, cruzes de padrão (as mais pesadas). Labuta a côdea do sol-a-sol e já nem sabe se sonha ou se recorda. Mal nasce deixa de ser criança: fica logo com oito séculos.
No grande atlas dos humanos talvez figure como um ser mirrado de corpo, mirrado e ressequido, mas que outra forma poderia ele ter depois de tantas gerações a lavrar sal e cascalho? Repare-se que foi remetido pelos mares a uma estreita faixa de litoral (Lusitânia, assim chamada) e que se cravou nela com unhas e dentes, com amor, com desespero, ou lá o que é. Quer isto dizer que está preso à Europa pela ponta, pelo que sobra dela, para não se deixar devolver aos oceanos que descobriu, com muita honra. E nisto não é como o coral que faz pé firme num ondular de cores vivas, mercados e joalharia; é antes como o mexilhão cativo, pobre e obscuro, já sem água, todo crespo, que vive a contra-corrente no anonimato do rochedo. (De modo que quando a tormenta varre a Europa é ele que a suporta e se faz pedra, mais obscuro ainda).
Tem pele de árabe, dizem. Olhos de cartógrafo, travo de especiarias. Em matéria de argúcias será judeu, porém não tenaz: paciente apenas. Nos engenhos da fome, oriental. Há mesmo quem lhe descubra qualquer coisa de grego, que é outra criatura de muitíssima História.
Chega-se a perguntar: está vivo? E claro que está: vivo e humilhado de tanto se devorar por dentro. Observado de perto pode até notar-se que escoa um brilho de humor por sob a casca, um riso cruel, de si para si, que lhe serve de distância para resistir e que herdou dos mais heróicos, com Fernão Mendes à cabeça, seu avô de tempestades. Isto porque, lá de quando em quando, abre muito em segredo a casca empedernida e, então sim, vê-se-lhe uma cicatriz mordaz que é o tal humor. Depois fecha-se outra vez no escuro, no olvidado.
Lá anda, é deixá-lo. Coberto de luto, suporta o sol africano que coze o pão na planície; mais a norte veste-se de palha e vai atrás da cabra pelas fragas nordestinas. Empurra bois para o mar, lavra sargaços; pesca dos restos, cultiva na rocha. Em Lisboa, é trepador de colinas e de calçadas; mouro à esquina, acocorado diante do prato. Em Paris e nos Quintos dos Infernos topa-a-tudo e minador. Mas esteja onde estiver, na hora mais íntima lembrará sempre um cismador deserto, voltado para o mar.
É um pouco assim o nosso irmão português. Somos assim, bem o sabemos.
Assim, como?»
José Cardoso Pires, E Agora, José?, 1977
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24.1.21
Carlos Antunes
Nem sempre me apetece escrever sobre pessoas que foram próximas por vários motivos. É este o caso. Adeus, «Sérgio».
A democracia não é um dado adquirido
«Tendo nascido nos anos 80, a nossa formação política iniciou-se quase ao mesmo tempo em que aprendemos a falar. A democracia tinha poucos anos e aquilo que lhe faltava em maturidade sobrava em entusiasmo. Aprendemos que um debate se queria longo e aceso, rico em ideologia e ideais, que as campanhas eram feitas de multidões, algazarra e episódios, que o voto era uma arma e que se votava em urnas e nas ruas, se preciso fosse. Aprendemos que a democracia se conquistou no 25 de Abril, mas ninguém nos disse que tínhamos de trabalhar para a manter.
A democracia deixou para trás um passado de iliteracia, mortalidade infantil, desemprego, miséria e emigração em massa, repressão política e guerra, e muitas outras agruras. Para a maioria das pessoas da geração dos nossos pais, que conheceu essa realidade, pensar numa alternativa à democracia era um anátema; para nós, para quem o passado ainda estava bem visível nas palavras dos nossos pais e avós, era uma impossibilidade.
Talvez por isso nunca considerámos a possibilidade de a democracia não ser um dado adquirido e de nos caber, afinal, lutar por mantê-la. Encerrados nas nossas certezas, demorámos a perceber que a descredibilização de um representante eleito não fere apenas a imagem do respectivo partido político ou instituição, mas também a confiança de todos no sistema democrático. Ou que a incapacidade, por qualquer via ideológica, de corrigir desigualdades e assimetrias regionais, e de desenvolver transversalmente o país, abriria a porta a que, tarde ou cedo, alguém questionasse a validade de um sistema sobre o qual se colocam tão elevadas expectativas. E não reconhecemos que as crescentes taxas de abstenção não se limitam a piorar a qualidade da nossa democracia, sendo antes sintoma e causa da sua perda de sustentabilidade.
Lá fora, candidatos populistas, apostados em “dar voz aos que não têm voz”, desafiam ou tomam o poder. Nos EUA, líderes do mundo livre e democrático, massas ululantes, tomaram de assalto o Congresso, afirmando fazê-lo em nome da democracia e às ordens do Presidente, para impugnar o resultado das eleições que o derrubou. Em Portugal, hoje, em plena campanha presidencial, os candidatos não discutem ideologia, ideais ou sequer visões institucionais. Discutem-se uns aos outros ou fingem que nem lá estão. Entretanto, há um candidato que parece apostado em seguir as passadas dos que, no século XX, mantiveram Portugal no miasma que só a democracia veio dissipar e deixaram a Europa afundada em duas guerras com milhões e milhões de mortos.
Acabou o “estado de graça” da democracia. Não temos já motivos para acreditar que esta sobreviverá, nesta ou noutra forma reconhecível, independentemente do nosso desinteresse e inacção, ou que resistirá eternamente à desilusão, ao cinismo e ao desespero do número crescente de pessoas que, a cada quatro anos, sentem que nada mudou.
Muito há a fazer e nada do que se possa fazer produzirá o milagre de nos dar a democracia que queremos de um dia para o outro. Incrementar a militância política e restaurar a ligação dos partidos à comunidade, revitalizar o associativismo em todas as suas formas, fomentar a literacia política e cívica são apenas alguns dos passos que aqui, na base do nosso sistema político, estão ao nosso alcance enquanto cidadãos. Não são ideias originais, mas estiveram na origem do nosso sistema político e é nelas que temos que apostar para lutar pela democracia.»
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