«Vários países do mundo são hoje governados por forças autoritárias ideologicamente vinculadas ou próximas da extrema direita. Tais forças podem ser chamadas, consoante as circunstâncias, de protofascistas ou neofascistas, mas uma coisa é inegável: todas elas estão ligadas entre si, formal ou informalmente, pelo que não é estulto falar na existência de uma "extrema direita mundial". À medida que essas forças forem conquistando posições em cada país, a sua constituição num movimento orgânico à escala planetária ganhará cada vez mais consistência.
É verdade que circunstâncias pontuais poderão atrapalhar essa tendência, mas a longo prazo ela parece irreversível. É o que acontece na atual guerra na Ucrânia: apesar de não existir uma diferença ideológica fundamental entre as forças que governam os dois países, os mesmos defrontam-se hoje militarmente, por causa de problemas mal resolvidos herdados do período da guerra fria, a que não é alheia, obviamente, a pretensão do chamado Ocidente de destruir a Rússia.
As figuras mais conhecidas desse movimento vão desde o ex-presidente norte-americano Donald Trump ou o líder russo, Vladimir Putin, ao ainda chefe de estado brasileiro, Jair Bolsonaro, passando pelo líder húngaro Viktor Órban. Mas há outros, mais ou menos disfarçados, em todas as regiões do mundo. Alguns deles, inclusive, são provenientes do campo político da esquerda e já quiseram construir o "homem novo" nos seus países, tendo-se transformado, contudo, em autocratas e ditadores, assumindo algumas das causas e bandeiras da extrema direita mundial, como a xenofobia, o racismo, a misoginia ou a homofobia.
A que se deve essa ascensão da extrema direita em vários países, como, apenas para me limitar à Europa, está a suceder há anos em França, acaba de ocorrer na Suécia e pode acontecer, em breve, na Itália? As explicações, claro, são múltiplas. No presente artigo, abordarei apenas uma delas, que muitos progressistas se recusam, infelizmente, a encarar: as responsabilidades das forças que se consideram de esquerda.
Socorro-me, para isso, de uma crónica publicada no último sábado, 17, no jornal francês Le Monde, sob título "Como impedir os eleitores populares de votar Le Pen se certas forças de esquerda alimentam polémicas que os incomodam?" e assinada por Philippe Bernard. Este lembra, no texto em questão, que, em França, o voto operário no partido de Marine Le Pen passou de 17% em 1988 para 39% em 2017 e 42% nas últimas eleições, realizadas este ano. O autor não tem dúvidas em identificar a principal causa desse crescimento: "A esquerda está mais mobilizada em torno de questões 'societais' do que nas problemáticas sociais", escreveu Bernard.
Para o articulista do Le Monde, as forças de esquerda abandonaram a luta pelo "valor-trabalho", isto é, o combate pelo trabalho justamente remunerado, em detrimento de outras causas, vou dizê-lo, "pós-modernas", como as lutas comunitárias e grupais (um exemplo são as lutas identitárias, cada vez mais fragmentárias). Assim, a relação entre as forças progressistas e as classes populares tem-se tornado crescentemente "assistencialista". O resultado é que, pelo menos em França, a esquerda tornou-se bem sucedida entre a burguesia urbana, enquanto a extrema direita constitui hoje a força dominante nas áreas suburbanas e rurais.
Esclareço que não sou contrário ao comunitarismo e acredito radicalmente que as lutas de diferentes grupos historicamente discriminados pelo resgate e valorização da sua identidade é justa e necessária. Defendo, assim, um diálogo produtivo entre o universalismo proposto pela esquerda tradicional, com base na luta de classes, e as lutas identitárias.
Entretanto, o comunitarismo não pode ser absoluto, sob pena de ser capturado não apenas pela direita liberal (vejam-se as políticas identitárias assumidas pelas grandes corporações, por uma inegável estratégia de marketing), mas pela própria extrema direita, como o discurso supremacista desta última, em todo o mundo, o demonstra.»
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