«Há tantas palavras para definir coligações políticas como para definir relações amorosas. Do “ficante” brasileiro (“amigo colorido” é o mais parecido por cá, acho) ao casamento, há muitas classificações disponíveis para uma e outra coisa.
Montenegro tinha recusado coligações de Governo ou acordos de apoio parlamentar com o Chega. Isto é a base do “não é não”. Todas as outras formas de relação parlamentar sempre estiveram em aberto.
Se o Chega já foi “ficante” do PSD em algumas matérias, como chegou a ser PS em outras na anterior legislatura, claramente o namoro está a evoluir para uma “relação séria”, como se escrevia nos anúncios de casamento nos jornais do passado (“Cavalheiro procura senhora”), quando ainda não havia aplicativos de encontros nem redes sociais como o Facebook que, como toda a gente sabe, tem várias valências.
José Luís Carneiro desafiou o Governo, depois do chumbo do Tribunal Constitucional, a discutir a lei dos Estrangeiros com o PS, isolando o Chega, mas tudo indica que não vai ter sorte nenhuma.
Não há quaisquer sinais que o Governo decida agora trocar de parceiro parlamentar numa legislação onde, hoje, a sua política está muito mais próxima do que o que defende o Chega do que o que defende o PS.
Em editorial do PÚBLICO, David Pontes aponta que o futuro da lei dos estrangeiros será um “momento clarificador para o resto da legislatura”. Tem toda a razão.
Mas, tanto por convicção como por táctica, duvido que Luís Montenegro altere a linha que imprimiu aos primeiros meses do novo Governo. Na realidade, Montenegro sempre pensou que podia precisar do Chega: foi quase preciso apontar-lhe uma pistola à cabeça para ele pronunciar o famoso “não é não” — Montenegro foi defensor do acordo dos Açores e gabou-se disso perante o seu adversário nas directas Jorge Moreira da Silva, que era contra.
Depois, há a táctica: não convém a Montenegro um Chega com os dois pés na oposição, embora, como o David Pontes aponta, isso não é garantia que, mesmo assim, o partido de Ventura não continue a crescer.
E, depois, há o espírito do tempo, que aquela palavra alemã zeitgeist tão bem traduz.
O zeitgeist está com Ventura — não foi em vão que o candidato do PS à Câmara de Loures, Ricardo Leão, inventou uma coisa chamada “Gabinete de Defesa da Identidade Local”, para acolher denúncias de habitações ilegais ou excesso de lotação em casas. Se se juntar isto às demolições do Bairro do Talude e à aprovação da proposta do Chega para que os envolvidos em desacatos, como os que houve na sequência da morte de Odair Moniz, percam o direito à habitação camarária se ali viverem, o Chega também está infiltrado no PS.
Marcelo foi contra a maioria parlamentar e enviou a lei dos Estrangeiros para o Tribunal Constitucional. O TC chumbou, mas basta ler algumas declarações de voto dos juízes que votaram contra para se perceber que o zeitgeist também está dentro do Tribunal Constitucional.
André Ventura queixou-se que “um espírito de esquerda se apoderou das instituições”. O mesmo diz o vice-presidente do Tribunal Constitucional Gonçalo Almeida Ribeiro e o juiz António Teles Pereira, que acusam o processo que levou ao chumbo de ter servido de “pretexto para os juízes transportarem para o plano constitucional as convicções que legitimamente têm enquanto cidadãos violando a igualdade democrática”.
Outra juíza, Maria Benedita Urbano, vai mais longe: o chumbo “tem como consequência a manutenção de uma política de fronteiras abertas” e a decisão “mostra-se alheada” do país que, para Benedita Urbano, vive numa “situação catastrófica” por causa dos imigrantes.
O pensamento do Chega é hoje o pensamento do PSD e o “espírito do Chega” também parece pairar no voto de vencido de alguns juízes. Vai ser com o PS, hoje remetido a terceira força política, que o PSD vai fazer a lista dos próximos juízes? Duvido muito — basta ver a quantidade de vezes que o PS se oferece para "pactos" e é rejeitado.
Com todas as dificuldades para redigir uma nova lei de estrangeiros — há autárquicas e a Assembleia fica a meio gás, há Orçamento e a Assembleia dedica-se quase em exclusivo ao Orçamento, o Governo pode bem esperar por uma nova composição do Tribunal Constitucional que lhe seja mais favorável para a aprovação da “sua” lei de estrangeiros.
Será, já se sabe, uma composição obviamente despida de “preconceitos ideológicos”, uma expressão que em politiquês significa “alguém que tem a mesma opinião que eu tenho” — neste caso, que o Governo e o Chega têm.»