17.8.19

O Gabo é que sabe



Não se queixam de filhos, de netos ou de amigos, porque estes não vos prestam a atenção que esperavam merecer à medida que vão envelhecendo. Experimentem esta receita e verão que resulta.
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As graçolas da imprensa que temos



Ainda há quem se queixe do populismo nas redes sociais, mas nos órgãos de comunicação social clássicos é o que temos. 
(A segunda imagem é do Expresso, da autoria do seu director adjunto.)
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Cinco notas sobre a greve dos motoristas



1. Uma das distorções das nossas representações sobre o que nos rodeia assenta na invisibilidade de grande parte do trabalho humano, seja na esfera da produção mercantil, seja na esfera doméstica. Quando vemos as ruas limpas – ou as escolas limpas, os hospitais o comboio ou a agência bancária – quantas vezes pensamos nos lixeiros e nos varredores que as limparam durante a noite, quantas vezes vemos, quando entramos nesses lugares, o trabalho já feito das mulheres que, para os limpar, ganham uma miséria? Quando pisamos um passeio, conseguimos ver debaixo dos nossos pés o trabalho de quem cortou a pedra e o de quem a colocou ali? Quando escolhemos os alimentos na prateleira do supermercado, conseguimos ver o trabalho, tão desconsiderado, de quem os produziu e transportou? Os exemplos são incontáveis. Há demasiados trabalhos em que só reparamos quando estão por fazer, cujo valor só consideramos quando nos confrontamos com as consequências de não terem sido feitos.

O primeiro mérito de uma greve – e desta greve dos motoristas de matérias perigosas também – é este. Obrigar-nos a apercebermo-nos da importância de um trabalho de que ninguém falava, mas que é afinal tão essencial para que a sociedade funcione. Sem greve, quem teria essa consciência, além dos próprios? Ao longo dos anos, sem greves, alguém falou da centralidade deste trabalho e das condições penosas em que é feito?

2. O objetivo de uma greve é sempre perturbar o normal funcionamento do quotidiano da produção e da circulação mercantil. Mostrar que, se os trabalhadores pararem, o mundo pára. Não há verdadeiro exercício do direito à greve se ela não se fizer sentir, em primeiro lugar, nos bolsos dos patrões que precisam do trabalho para o seu negócio e para obterem os seus lucros; e também, secundariamente, no funcionamento da sociedade, que toma com a greve a consciência da falta que aquele trabalho faz. Isto nunca quis dizer, evidentemente, que o exercício do direito à greve seja absoluto. Toda a gente concorda que, mesmo havendo uma greve, as ambulâncias têm de continuar a ser abastecidas e a comida tem de continuar a chegar aos supermercados, por exemplo. Por isso, toda a gente concorda e a lei prevê que, em cada greve, se deve definir serviços mínimos capazes de garantir que a greve se compatibiliza com outros princípios fundamentais da nossa vida coletiva. Nisso, não há polémica: os serviços mínimos existem desde que a Constituição consagrou o próprio direito à greve. Se não há acordo entre patrões e trabalhadores na sua previsão, intervém o Estado, cabendo ao Governo defini-los. Mas também é óbvio que se a definição de serviços mínimos é de tal modo maximalista que torna potencialmente nulos os efeitos de uma greve, isso é uma forma objetiva de esvaziar esse direito. Fez bem o Governo em fixar serviços mínimos nesta greve dos motoristas – e é compreensível que, em alguns casos especiais, eles sejam muito exigentes (exemplo óbvio: para emergências na saúde ou no combate aos fogos...). Mas fez muito mal em abusar dessa prorrogativa para fixar verdadeiros “serviços máximos” em áreas que não são, objetivamente, “necessidades sociais impreteríveis”, que é o termo da lei (desde quando é que, por um exemplo, um vôo comercial Porto-Lisboa pode alguma vez caber no conceito de “necessidade social impreterível”?). Têm inteira razão os sindicatos e os partidos de esquerda que acusaram o Governo de ter aproveitado – com o aplauso e o entusiasmo dos patrões e da Direita – a má condução desta greve para fazer um ataque não apenas aos motoristas, mas ao próprio direito à greve e a todas as futuras lutas em que o problema se coloque. Se se aceita o princípio de que pode haver “serviços mínimos” para todas as situações com percentagens de 75% a 100%, o que restará no futuro do impacto de uma greve, por exemplo, dos estivadores, dos motoristas dos transportes públicos ou das trabalhadoras da limpeza? Há linhas que não devem e não podem ser transpostas. E o Governo quis transpô-las.


16.8.19

Salazar e as raças



Já que andamos a falar de Salazar por causa do famigerado Museu, não é mau que recordemos o pensamento da criatura. 

Quanto à primeira parte deste texto sobre «raças», estamos entendidos... Quanto à segunda, não perdeu pela demora: menos de quatro anos mais tarde, tinha às costas o início da Guerra Colonial.
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Da novilíngua de Marcelo: «hemisférios governativos»



Entre dois mergulhos, promulgou a Lei de Bases da Saúde, mas… com muitos «MAS».

«1. O Presidente da República sempre defendeu uma Lei de Bases da Saúde que fosse mais além, em base de apoio, do que a Lei nº 48/90, de 24 de agosto, cobrindo os dois hemisférios governativos, quer na votação parlamentar, quer, sobretudo, na abertura a caminhos políticos e legislativos diferentes, a escolher pelas maiorias de cada momento, em função das necessidades, limitações de recursos ou custos-benefícios sociais, sempre a pensar no direito à saúde dos portugueses, respeitando a Constituição da República Portuguesa.
O presente diploma não corresponde, na sua votação, ao considerado ideal, nomeadamente por dela excluir o partido com maior representação parlamentar.
Mas, ao invés, preenche o critério substancial determinante da decisão presidencial: o não comprometer, em nenhum sentido, as escolhas futuras do legislador, dentro do quadro definido pela Constituição.» Etc., etc., etc.

(Daqui)
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Museu de Salazar, NÃO!



Sou um dos primeiros subscritores desta Petição que acaba de ser lançada. Convido-vos a assiná-la, se assim o entenderem, e a partilhá-la pelos vossos contactos.

Para: Primeiro-Ministro do Governo de Portugal

MUSEU DE SALAZAR, NÃO!

Exmo. Senhor Primeiro-Ministro

Os abaixo-assinados, conhecedores do que foi a ditadura do Estado Novo, manifestam, em nome próprio e no da memória de milhares de vítimas do regime – de que Salazar foi principal mentor e responsável – , o mais veemente repúdio pela criação do Museu Salazar, recentemente anunciado pelo Presidente da Câmara de Santa Comba Dão.

Apoiam a carta dirigida a Vossa Excelência, no passado dia 12 de Agosto de 2019, por 204 ex-presos políticos, apelando ao Governo para que intervenha no sentido de impedir a concretização de um tal projecto que, longe de visar esclarecer a população e sobretudo as jovens gerações, se prefigura como um instrumento ao serviço do branqueamento do regime fascista (1926 - 1974) e um centro de romagem para os saudosistas do regime derrubado com o 25 de Abril.

Em 16 de Agosto de 2019

Albano Nunes, Alda de Sousa, António Regala, António Taborda, Carvalho da Silva, Francisco Fanhais, Joana Lopes, José Barata Moura, José Sucena, Levy Baptista, Margarida Tengarrinha, Maria do Rosário Gama, Maria Teresa Horta, Miguel Cardina, Pedro Adão e Silva, Raimundo Narciso, Rui Namorado.

A Petição pode ser assinada AQUI.
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A greve



«A greve dos motoristas de matérias perigosas fez emergir um conjunto de perplexidades. A primeira, que se coloca ainda antes de assistirmos às imagens das filas intermináveis de carros em postos de abastecimento ou à greve propriamente dita, é sobre a organização de todo o setor.

Alguém acha normal que as empresas petrolíferas, com centenas de milhões de euros de lucros por ano (só a Galp teve um lucro de 707 milhões em 2018), quase não tenham motoristas de matérias perigosas nos seus quadros de pessoal? Mais, alguém explica como é que toda a operação de distribuição deste setor está dependente de jornadas de trabalho de 14 horas? Ou, ainda, que o salário dessas longuíssimas jornadas de trabalho quase toque o valor do salário mínimo, ao que se adiciona um conjunto de parcelas inventadas para fugir a pagamento de impostos ou contribuições para a Segurança Social? Sim, este país real é o faroeste da responsabilidade social das empresas e os lucros milionários só comprovam que a ganância é como o universo, não tem fim.

Como se chegou a esta situação? O resumo é simples: privatizou-se uma empresa estratégica para o país, dando a uns poucos os lucros que deveriam ser de todos; externalizou-se parte da operação recorrendo-se ao outsourcing para as atividades que anteriormente eram desempenhadas pelos trabalhadores do quadro de pessoal, esperando que a selva do mercado trouxesse a desregulação laboral que ansiavam - o que aconteceu com os motoristas de matérias perigosas; os motoristas passaram de trabalhadores a empreendedores, incentivados a criarem a sua própria empresa - ou contratados por outros nessa situação - perdendo direitos pelo caminho. Ao longo deste processo os lucros aumentaram, a riqueza ficou ainda mais concentrada nos acionistas, e os salários caíram. É motivo para indignação? Claro que é.

Esta introdução explica o contexto que nos trouxe às lutas de hoje. Para quem achava que esta história era apenas entre interesses privados, fica claro como o poder público está na sua origem e dela nunca esteve desligado.

Isso ficou bem claro neste processo. O Governo dizia querer fazer a arbitragem do conflito, mas não mostrou distanciamento para ser um bom árbitro. O primeiro-ministro disse que o Governo se preparou para a greve, mas em nenhum momento isso passou por questionar a atuação das empresas.

Não deveria a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) ter investigado e punido as empresas pelas abusivas jornadas de trabalho, excessos de horas extraordinárias e pela manifesta desadequação dos seus quadros de pessoal? Não deveria a Autoridade Tributária ter investigado a contabilidade criativa que soma complementos ao salário para subtrair aos impostos devidos ao Estado? E não deveria a Segurança Social ter investigado essa mesma folha salarial que retira valor às pensões futuras dos motoristas? Dever, deviam todos, mas não fizeram. Por outro lado, a preparação do Governo terá sido a da folha excel dos serviços mínimos e do parecer jurídico da requisição civil. São precisas mais provas para concluirmos do lado que o Governo está?

Até a jornada de trabalho de oito horas, cuja luta já leva dois séculos e é um dos pilares da cultura de esquerda, foi negada pelo ministro do Ambiente. Disse ele que “ninguém pode ser obrigado a trabalhar para além do horário de trabalho, mas não digam que o horário de trabalho é de oito horas por dia, porque pode ser de 60 horas”. A bússola política entrou em desnorte e só isso explica que um Governo que se diz de esquerda tenha criado um precedente grave de abuso da lei do trabalho e de limitação do direito à greve.

Tudo isto salta à vista e, para o ver, não precisamos de concordar com a convocatória da greve, basta algum bom senso e sentido de justiça. A exigência do tempo é de mais diálogo e menos arrogância, de mais negociação e menos provocação. E não está tudo na mesma, até porque os benefícios das lutas já se começam a conhecer. Apesar de ainda não serem públicos os detalhes, será inegável que o acordo alcançado pela Fectrans resulta do atual contexto e tem nele a sua marca. Que os avanços sejam para todos, será o mínimo que se exige. Que a mediação agora pedida seja imparcial é outra condição essencial.»

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15.8.19

O mundo como nunca o imaginámos



O presidente dos EUA oferece-se para ajudar o presidente da China a resolver o problema de Hong Kong.
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O homem que veio do nada



Supõe-se, está vagamente escrito, que esse imperador veio realmente do nada. Que nasceu algures numa choupana, filho de gente-nada ou pouca-coisa, camponeses ao desabrigo. Que muito possivelmente estudou por cartilhas de aldeia; por catecismos, também. Mais: a acreditar nos compêndios das escolas, teria vindo ao mundo iluminado por Deus e tanto assim que, ainda muito mocinho, fez ciência entre os doutores.

Nessa altura chamava-se Francisco ou Vitorino; Adolfo, talvez Adolfo Hirto; ou Benito Marcolino, Zé Fulgêncio, Sebastião Desejado  não interessa. O que interessa é que quando deram por ele já tinha outro nome: Imperador, Dinosaurus Um, Imperador e Mestre. Palmas.

                «VIVA O MESTRE IMPERADOR!»
                «VIVÓÓÓ...»

Teria tido infância? Mistério: neste ponto, os cronistas tropeçam no aparo e saltam uns anos. Limitam-se a afirmar que já em criança tinha a marca inconfundível dos chefes, como mais tarde se havia de provar quando o Reino apareceu assinado de ponta a ponta com o nome dele. (...)

Saber & Autoridade era o seu lema; sua arma o Silêncio. E sendo assim, tão orientado, é de admirar que tenha atingido o poder que atingiu? Não estaria destinado por natureza a escapar às leis da morte, uma vez que, sabe-se agora, toda a sua vida tinha sido feita à margem das leis dos vivos?

Dinossauro, criatura marcada desde o berço, estava escrito que iria subir muitíssimo na asa da compostura, por cima dos casebres da aldeia e do palácio dos ricos, e que teria de tirar um curso que lhe desse para governar toda a gente. Leis, decidiu o padre local.»

José Cardoso Pires,  Dinossauro Excelentíssimo (excerto), 1972
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Obrigatório, hoje



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Marcianos abrem contas bancárias em Portugal?



«Fez este mês cinco anos que o BES colapsou. Não foi um colapso qualquer, foi um enorme estrondo, que deixou estilhaços por todo o lado. Todos percebemos as razões para a queda do banco, mas acho que praticamente ninguém percebeu o que a seguir se passou e ainda continua a passar-se.

O BES, que dias antes da resolução era considerado por governantes e supervisores como seguro e de confiança, foi dividido em dois, o banco bom e o banco mau, para se evitar uma compreensível crise sistémica, que provocaria efeitos inimagináveis na economia e na sociedade portuguesa.

Aos portugueses foi assegurado que no banco bom (Novo Banco) ficavam os ativos não tóxicos e que no banco mau (BES) ficavam os considerados tóxicos. O tempo encarregou-se de demonstrar que não foi bem assim. Para o banco bom também transitaram muitos ativos tóxicos e problemáticos sendo que, afinal, não era tão bom como apregoaram. Mais uma vez os portugueses foram enganados.

Depois continuam a tentar-nos enganar, agora com a versão de que não vão ser os contribuintes a pagar a fatura dos desvarios ruinosos desses gestores (premiados) e supervisores causadores de tamanha hecatombe.

O imenso dinheiro injetado e a injetar pelo Fundo de Resolução no Novo Banco vai ser pago até 2046 pelas contribuições sobre o setor bancário. Para pagarem ao Fundo de Resolução, os bancos vão ter que criar lucros suplementares (e até já o estão a fazer). Quem pagará esses lucros serão os depositantes e os clientes desses bancos, ou seja, de grosso modo os contribuintes.

Para garantirem esses lucros, os bancos despedem trabalhadores, fecham balcões e criam comissões bancárias em catadupa. Se não chegar inventarão mais formas de nos extorquir cada vez mais dinheiro, sempre defendidos pela máxima de que não serão os contribuintes a pagar. Até será verdade, se por acaso os depositantes ou clientes bancários não forem contribuintes portugueses, forem marcianos.

Como pelo que se saiba ainda nenhum marciano abriu uma conta num banco em Portugal, seremos todos nós a pagar, não via impostos, mas via comissões e mais comissões bancárias e outras formas engenhosas inventadas e a inventar.

A bem da transparência aos portugueses deveria ser dita a verdade. Não vai haver aumentos de impostos para pagar ao Fundo de Resolução, mas os portugueses e as empresas vão ter de pagar, a não ser que não peçam dinheiro emprestado à banca, não tenham conta bancária e guardem o seu dinheiro debaixo do colchão.

Depois temos mais uma vez a justiça a não funcionar em tempo oportuno. Cinco anos volvidos, ainda ninguém foi sequer julgado por estes atos ruinosos. Foram milhares de milhões de euros de gestão quiçá criminosa. Potenciais culpados não faltam. O que falta é fazer justiça.

Essa mesma justiça condenou recentemente e de uma forma célere um “indigente com um percurso de vida errático” a um ano de prisão por ter roubado 15 chocolates num supermercado, que foram valorizados em 23,85 euros. Sem querer fazer qualquer juízo sobre a justiça desta decisão (que se calhar até foi adequada), torna-se percetível ao cidadão comum que os poderosos acabam sempre por encontrar formas de fugirem ou adiarem o assumir das suas responsabilidades.

Torna-se claro que a nossa democracia ainda está incompleta, porque quando o sol nasce deveria ser para todos de uma forma igual e quando chove não deveriam existir abrigos privilegiados para alguns.

Vale a pena pensarmos nisto.»

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14.8.19

Essa é que é essa


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Protestos contra Bolsonaro




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A greve e a Padeira



Conta a história ou a lenda, pouco importa, que há 634 anos Brites de Almeida pegou em armas e se juntou às tropas portuguesas que se fartaram de matar castelhanos.

Não consta que castelhanos estejam a conduzir camiões de matérias perigosas, mas hoje acordei com uma dúvida: de que lado da barricada estaria a nossa padeira, cujos feitos hoje se comemoram? Motoristas ou Antram/Governo?
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O relógio suíço apressou-se demais



«Até esta segunda-feira, a cenografia em torno da greve dos motoristas tinha sido perfeita, um relógio suíço. Alto lá, dirá a leitora ou o leitor atento: mas há mesmo uma greve, provoca alarme social, incomoda quem está em férias, assusta quem anda com a casa às costas, isso não é só encenação. Certo, é muito mais do que encenação. O que há é uma greve que podia e devia ter sido evitada se tivessem ficado fixados calendários de negociação, se o pré-acordo de maio tivesse sido generoso, se o patronato não tivesse sentido desde logo que tinha uma parceria com o Governo e se tivesse sido concluído entretanto um arrastadíssimo processo negocial com o maior sindicato do sector. A pergunta que, por isso, fica no ar nos primeiros dias da greve é esta: e por que é que não a quiseram evitar e, pelo contrário, quiseram empurrar esta greve veraneante?

Pode-se dizer que aquele sindicato ajudou à festa. Não há dúvida. Os trabalhadores estão fartos de uma situação de vulnerabilidade com um salário-base baixíssimo e depois com subsídios e pagamentos dependentes da discricionaridade patronal. Quem trabalha no privado sabe bem como funciona este truque do salário de referência ser insignificante e ter depois complementos e subsídios vários. Os motoristas querem, portanto, uma resposta ao impasse salarial de tantos anos. Bem merecem essa justiça. Mas, como um dos sindicatos é representado por um presidente quase evanescente e por um vice-presidente que não é sindicalista, antes se anuncia com alguma pompa excessiva como o dono de um dos maiores escritórios de advogados do país, além de se ter logo alcandorado a candidato a deputado, foi fácil ao patronato e ao Governo acusarem os trabalhadores dos crimes mais nefandos. Na disputa da opinião pública, os motoristas entraram a perder.

Ainda por mais, e antecipando a greve, o Governo preparou a sua campanha meticulosamente. Tudo estava no seu lugar. Houve recibos de salários, bem selecionados, para serem exibidos nos telejornais: os motoristas ganham muito mesmo que ganhem pouco. Houve o anúncio da escassez, para lançar as pessoas para as filas desde uns dias antes da greve. Houve a contagem decrescente, como se se tratasse de uma tempestade devastadora e com hora marcada. Houve a escalada de ministros em declarações sucessivas, poupando os que são os principais candidatos em outubro, Centeno nem vê-lo, vai ser precisa uma campanha em tom diferente e é bom que não se note a consequência da sequência, temos então Vieira da Silva em doses reforçadas, Eduardo Cabrita porque assim encerra o arreliador caso das golas, o primeiro-ministro nos momentos cruciais. E todos delicados, nada de empolgamentos, estão tão pesarosos como o professor primário do antigamente que aplicava reguadas às crianças, as marcações no palco foram minuciosas, todos recitaram o seu papel. O país, diga-se, não se assustou por demasia e, no fim de semana e no primeiro dia de greve, uma grande parte das bombas de combustível funcionava tranquilamente.

Só que o plano tinha de ser cumprido. Talvez então o relógio tenha sido forçado em demasia: não foi jogada inteligente fazer a requisição civil logo no primeiro dia. E muito menos pôr tropas a conduzir camiões logo passadas poucas horas. As fardas eram para ser notícia grandiosa, eram para assustar, só entrariam quando Portugal inteiro suspirasse pela autoridade de galões. Era para ser quando o país se declarasse nas últimas (curiosamente, é isso que conclui a assustada imprensa internacional, enquanto aqui nos entretemos com problemas mais comezinhos e nos perguntamos se chegou finalmente o mês de agosto). Mas o Governo quis comprometer o Presidente da República com a operação e, por isso, não esperou e requisitou a tropa. Sempre dá umas boas imagens de televisão.

Percebe-se a razão da aceleração do plano, os patrões gritavam por requisição e perceberam que a eles não lhes é pedido que cumpram a lei dos serviços mínimos, ao passo que o Governo aspirava a chegar a este momento culminante, foi para ele que trabalhou, e nestas coisas os conselheiros de imagem e os spin-doctors têm sempre pressa, não se pode deixar perder o pássaro que temos na mão. E assim se antecipou o momento dramático para o fim do dia de segunda-feira, a novidade durará ainda por hoje. Temos as fardas na rua. Só que a partir daqui é só repetição.

E, ressalvada alguma provocação de qualquer tipo, se o que fica é repetição, então é demasiado pouco. O Governo só consegue usar isto para cavalgar na sua ânsia de maioria absoluta, que é ao que tudo se resume, se houver emoção suficiente mas não excessiva, não pode parecer falso ou cínico, ou instrumental. Não se brinca com o país, isso devia estar escrito na parede do Conselho de Ministros. Se o Governo se deixa embriagar pelo sucesso das suas primeiras duas semanas de campanha eleitoral com este abençoado pretexto dos motoristas, em que conseguiu tudo, o risco agiganta-se. Até agora, calou a direita, fala sozinho nos telejornais de fio a pavio, neutralizou os outros sindicatos, raras vozes criticam a restrição ao direito de greve. Mas gastou demasiados cartuchos de emoção. E agora como vai manter o crescendo? Deixa banalizar a coisa, o tempo corre e não acontece nada, ninguém é preso, o pelourinho fica vazio, não há medo? Para ser forte como racha-sindicalistas e para ser enérgico como a voz da autoridade, o Governo precisa de emoção doseada mas crescente. Se gastou todas as surpresas, se só sobrar a rotina das reuniões de emergência sem qualquer urgência, um dia destes acorda e ninguém ligará ao caso. E o dia 6 de outubro ainda vem longe.»

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13.8.19

Comparações



Sempre que alguém compara o que estamos a viver com o Chile de Allende, há um coala bebé que morre na Austrália.
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Segurança: Camiões de combustíveis conduzidos por militares e PSP?



«Perante a situação que o país vive com esta greve sem fim definido, a APSEI – Associação Portuguesa de Segurança, através do seu Núcleo Autónomo de Segurança no Transporte de Mercadorias Perigosas (NAMP), explica que “todos os condutores que transportam mercadorias classificadas como perigosas, no transporte nacional ou internacional, estão obrigados a uma certificação de acordo com o definido no Acordo europeu relativo ao transporte internacional de mercadorias perigosas por estrada (ADR)”, referindo que esta “obrigatoriedade surgiu após um grave acidente ocorrido em Espanha em 1978 (em Los Alfaques, Tarragona)”, que teve o trágico desfecho de mais de 200 mortos.

A formação destes condutores inclui 18 sessões teóricas, com a duração mínima de 45 minutos e máxima de 60 cada. No entanto, para o transporte em cisternas, há também uma formação de especialização com a duração mínima de 12 sessões. Em ambos os casos acresce uma formação prática, nomeadamente em matéria de combate a incêndios, segundo informou a APSEI. Estas formações são dadas exclusivamente por entidades formadoras certificadas pelo IMT, IP, estando limitadas a um máximo de oito sessões por dia. A certificação para o transporte de mercadorias perigosas dá-se após a realização de um exame. No que diz respeito aos produtos petrolíferos, a Associação Portuguesa das Empresas Petrolíferas (APETRO) exige que os prestadores de serviços de transporte, e os seus motoristas, cumpram mais conjunto de exigências, definidas no Acordo sobre Segurança Rodoviária Acrescentada.»

(Daqui)
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Carta de 204 ex-presos políticos



Exmo. Senhor Primeiro-Ministro
Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República
Lisboa, 12 de Agosto de 2019

Os abaixo-assinados, ex-presos políticos, manifestam, em nome próprio e no da memória de milhares de vítimas do regime fascista – de que Salazar foi principal mentor e responsável – o mais veemente repúdio pelo anúncio da criação de um “Museu Salazar” feito pelo Presidente da Câmara de Santa Comba Dão e apelam ao Governo para que, em conformidade com o relatório aprovado por unanimidade, em Julho de 2008, pela Comissão de Assuntos Constitucionais da Assembleia da República e com normas da Constituição da República Portuguesa, intervenha para impedir a concretização desse projecto que, longe de visar esclarecer a população e sobretudo as jovens gerações sobre o que foi o regime fascista, se prefigura como um instrumento ao serviço do seu branqueamento e um centro de romagem para os saudosistas do regime derrubado com o 25 de Abril. Quando em muitos países se assiste ao renascer de forças fascistas e fascizantes, o país precisa, não de instrumentos de propaganda do fascismo – que a Constituição da República expressamente proíbe – mas de meios de pedagogia democrática que não deixem esquecer o cortejo de crimes do fascismo salazarista e preserve a memória das suas vítimas.

Os abaixo-assinados apelam ainda a todos os democratas e amantes da liberdade que se manifestem contra a criação, nos termos em que tem vindo a ser anunciado, desse memorial ao ditador.

Adelino Pereira da Silva, Afonso Rodrigues, Aguinaldo Cabral, Aguinaldo Espada de Oliveira Santos. Albertino Almeida, Alberto Borges, Alexandre Jorge Almeida, Alexandre José Pirata, Alfredo Caldeira, Alfredo Guaparrão, Alfredo de Matos, Alice Capela. Álvaro Monteiro, Álvaro Pato, Américo Joaquim Brás, Américo Leal, Ana Abel, António Almeida, António Antunes Canais, António Borges Coelho, António Caçola Alcântara, António Cerqueira, António Espirito Santo, António Gervásio, António Graça, António Inácio Baião, António José Baltazar Condeço, António Lenine Moiteiro, António Melo, António Pedro Braga, António Ramalho Alcântara, António Redol, António Rodrigues Canelas, António Rodrigues Correia, António Santos, António Santos Pereira, António Velhinho Ventura, Armando Cerqueira, Arménio Marques Gil, Arnando de Lacerda, Artur Monteiro de Oliveira, Artur Pinto, Aurélio Pato, Aurora Rodrigues, Bárbara Judas, Camilo Mortágua, Carlos Brito, Carlos Campos Rodrigues Costa, Carlos Coutinho, Carlos Marum, Carlos Myre Dores, Carlos Oliveira Santos, Clemente Alves, Conceição Matos, Cristiano de Freitas, Daniel Cabrita, Danilo Matos, Diana Andringa, Domingos Abrantes, Domingos Lopes, Domingos Pinho, Duarte Nuno Clímaco Pinto, Eduardo Baptista, Eduardo Ferreira, Eduardo Meireles, Elídia Rosa Caeiro, Emília Brederode, Encarnação Raminho, Estevão A. P. Caeiro Oca, Eugénia Varela Gomes, Eugénio Ruivo, Feliciano David, Fernando Almeida Simões, Fernando Baeta Neves, Fernando Chambel, Fernando Correia, Fernando Cortez Pinto, Fernando Flávio Espada, Fernando Martins Adão, Fernando Miguel Bernardes, Fernando Rosas, Fernando Vicente, Filipe Augusto Neves do Carmo, Filipe Mendes Rosas, Firmino Martins, Francisco Braga, Francisco Bruto da Costa, Francisco Carrasco dos Santos, Francisco do Carmo Martins, Francisco Lobo, Francisco Melo, Francisco Nilha Jorge, Francisco Silva Alves, Graça Érica Rodrigues, Helena Cabeçadas, Helena Neves, Helena Pato, Herculano Neto Silva, Humberto Rui Moreira, Isabel do Carmo, Jaime Fernandes, Jaime Serra, João Augusto Aldeia, João Carrasco Caeiro, João Queirós, João Viegas, Joaquim Barata, Joaquim Henrique Rodrigues, Joaquim Jorge Araújo, Joaquim Judas, Joaquim Labaredas, Joaquim Monteiro Matias, Joaquim P. Pinto Isidro, Joaquim Santos, Jorge Carvalho, Jorge Querido, Jorge Neto Valente, Jorge Seabra, Jorge Vasconcelos, José A . Guimarães Morais, José Carlos Almeida, José Eduardo Baião, José Eduardo Brissos, José Ernesto Cartaxo, José Guimarães Morais, José Jaime Fernandes, José Lamego, José Leitão, José Luís Machado Feronha, José Manuel Serra Picão de Abreu, José Marcelino. José Mário Branco, José Marques, José Oliveira, José Revés, José Ribeiro Sineiro, José Teodósio Cachochas, José Pedro Soares, Justino Pinto de Andrade, Laura Valente, Luís Firmino, Luís Fonseca, Luís Moita, Luís Figueiredo, Luísa Oliveira, Manuel Candeias, Manuel Custódio Jesus, Manuel Ferreira Gonçalves, Manuel Henriques Estevão. Manuel José Brás, Manuel Pedro. Manuel Pedro Baião, Manuel Policarpo Guerreiro, Manuel Quinteiro Gomes, Manuel Ruivo, Manuel dos Santos Guerreiro, Manuela Bernardino, Maria da Conceição Moita, Maria Custódia Chibante, Maria Dulce Antunes, Maria Emilia Miranda de Sousa, Maria Fernanda Almeida Marques, Maria Fernanda Dâmaso Marques, Maria da Graça Marques Pinto. Maria Guilhermina Ferreira Galveias, Maria Helena Rocha Soares, Maria Hermínia de Sousa Santos, Maria Isabel Areosa Feio de Barros, Maria João Gerardo, Maria José Pinto Coelho da Silva, Maria João Lobo, Maria José Ribeiro, Maria Luíza Sarsfield Cabral, Maria de Lurdes Clarisse, Maria Lourença Cabecinha, Maria Margarida Barbosa de Carvalho Pino, Mário Abrantes, Mário Araújo, Mário de Carvalho, Mário Lino. Matilde Bento, Miguel Guimarães, Miriam Halpern Pereira, Modesto Navarro, Nozes Pires, Nuno Luís Silva. Nuno Pereira da Silva Miguel, Nuno Potes Duarte, Óscar Vieira, Osvaldo Osório, Paula Correia, Pedro Borges, Raúl Carvalho, Sara Amâncio, Saúl Nunes, Sérgio Ribeiro, Sérgio Valente, Teresa Dias Coelho, Teresa Tito de Morais, Úrsula da Conceição Farinha, Vasco Paiva, Violante Saramago Matos, Vítor Dias, Vítor Zacarias.
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Isto está a entrar na normalidade



Já temos o presidente da República a fazer declarações sobre a greve em fato de banho.
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Greve com efeitos mínimos



«De S. Bento surge uma dramatização que o país não está a sentir. António Costa desdobra-se em reuniões, o presidente da República chama o primeiro-ministro a Belém, e o dia termina com um Conselho de Ministros extraordinário, onde é decretada a requisição civil. Quem chegue a Portugal vindo de outra parte achará que aconteceu uma catástrofe. É falso. São apenas dois setores, o dos motoristas de transporte de matérias perigosas e o dos de transporte de mercadorias, que convocaram uma greve: para grande parte dos portugueses, apesar da dramatização, ainda não fez estragos.

O primeiro-ministro, legitimamente, argumenta ser graças às medidas preventivas do Governo que a paralisação não está a imobilizar o país. António Costa conseguiu, perante a quase indiferença da oposição, desvirtuar uma greve, transformar uma forma de luta dos trabalhadores, a reivindicar melhores condições salariais, num ato sem qualquer impacto. O que diz em relação à greve é impreciso. Quando afirma querer uma greve "respeitando os direitos de quem a faz, mas também os direitos de quem a podendo fazer, quer trabalhar, os deveres de quem estando sujeito aos serviços mínimos os está a cumprir e sobretudo os direitos de todos os portugueses, que têm também os seus direitos assegurados", sabe, como é natural, que tal harmonia é inviável. Como pode uma greve deixar as duas partes satisfeitas?

Este protesto, por enquanto sem efeitos negativos para os portugueses, é a demonstração de como um Executivo socialista, apoiado pelos partidos de esquerda, esvazia uma greve, sem sequer recorrer a alterações legislativas. O Governo, como é óbvio, não podia ficar de braços cruzados à espera do que viesse a acontecer, sobretudo tendo a memória da última paralisação - mas chamar os militares e as polícias para prover os postos de abastecimento de combustível será no mínimo desproporcionado.

Fica o precedente. De um Governo socialista devemos, a partir de agora, esperar que as greves não causem impacto na vida das pessoas. Ficaremos à espera de ver os médicos ou os enfermeiros a deixar os doentes sem consultas ou cirurgias - e aí confirmaremos quais são as prioridades.»

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12.8.19

Balanço do dia


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12 de Agosto – Dia Mundial do Elefante



Estes são do Pinnawala Elephant Orphanage (Sri Lanka), fundado em 1975 para recolher sete pequenos elefantes órfãos. São agora muitos, de todas as idades, e os primeiros já são avós. Vi-os em 2011.
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Notas breves sobre a greve


«1. Estou parada na estação de serviço de Aveiras para carregar o carro eléctrico, pelo caminho cruzei-me com uma coluna de transporte, rumo a Lisboa, escoltada com aparato pela GNR.

Os meus amigos e conhecidos dividem-se perante esta greve e o seu impacto nacional. Tento organizar pensamentos e lembro-me de um seminário do Curso de Defesa Nacional onde o (excelente) conferencista falava das guerras e ameaças do futuro sendo que para ele a “guerra energética” tinha um peso superior ao terrorismo. De facto a nossa dependência quer do petróleo, quer da electricidade faz de nós altamente vulneráveis (e daí ser muito, mas muito questionável ter sectores estratégicos nacionais nas mãos de estrangeiros como acontece com o sector eléctrico português).

O sector do transporte de matérias perigosas é também ele estratégico e deveria ser pensado e tratado como tal e enquadra-se naquilo que a Constituição define como (cumprindo) “necessidades sociais impreteríveis”.

2. Se todos estamos de acordo que transportes de emergência médica, polícias, bombeiros e demais agentes da proteção civil devam ter combustível para o bom exercício das funções, já podemos questionar se o direito do cidadão comum a ter o depósito cheio, seja para ir de férias, seja para ir trabalhar, se sobrepõe ao direito à greve.

“Podemos”, como escreve André Barata no Jornal Económico, “obviamente, discordar de uma greve, da justiça social ou económica da sua causa, e nesse caso devemos mesmo tomar posição – porque uma greve é sempre um acto político que deve ser recebido politicamente, seja por cidadãos seja por partidos, sectores da sociedade, etc. Mas também esta não é uma razão suficiente para contestar o direito à greve. Discordar da motivação de uma greve é uma coisa, discordar do direito que lhe assiste é outra, bem diferente”.

3. Se calhar vale a pena desmontar um mito sobre o direito à greve:

“Se causa transtorno deve ser ilegítima”. A greve dos médicos, dos enfermeiros, dos professores, dos colaboradores da Autoeuropa, só para citar algumas causa “transtorno”, a dos trabalhadores dos transportes públicos também, são menos legítimas por isso? Ou os direitos destes trabalhadores valem menos do que por exemplo os dos juizes a quem muito recentemente foi concedido um muito generoso aumento salarial?

4. Perturba-me ver, independentemente de apreciar ou não o estilo dos líderes grevistas e patronais, que se tente diluir um direito constitucional e um dos instrumentos mais pacíficos de ser forte contra forças que de outra forma podem ser esmagadoras. É para mim uma questão basilar onde assenta a democracia.

Ver o braço de força de um governo de esquerda, de esquerda sublinho, contra um grupo de trabalhadores que tal como outros grupos de trabalhadores luta por aquilo que lhe parecem ser condições dignas é muito preocupante para quem acredita em direitos, liberdades e garantias.

5. Nota final: mais perturbador para a paz social do que esta ou outras greves é o estado de descrédito das instituições a que se chegou muito por acção ( ou inacção) política deste e de outros governos, de esquerda e de direita, mais grave que a greve é o compadrio, a “família”, o nepotismo, o tráfico de influências, a falência do sistema nacional de saúde, a desigualdade social, as inúmeras dificuldades de recursos que as polícias enfrentam, o elevador social avariado. Tudo isto é chão fértil para extremismos, isto sim merece ser combatido, não o direito à greve.»

Helena Ferro Gouveia no Facebook
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12.08.1963 – «Havemos de chorar os mortos se os vivos os não merecerem»



Foi em 12 de Agosto de 1963, duas semanas depois de o Conselho de Segurança ter condenado a política colonial portuguesa, que Salazar fez um importante discurso – «Vamos a ver se nos entendemos» – , na RTP e na Emissora Nacional.

Mas seria esta frase, rebuscada bem no seu estilo, que ficaria na lista das citações históricas do ditador: «Havemos de chorar os mortos se os vivos os não merecerem».



«Sem hesitações, sem queixumes, naturalmente como quem vive a vida, os homens marcham para climas inóspitos e terras distantes a cumprir o seu dever. Dever que lhes é ditado pelo coração e pelo fim da Fé e do Patriotismo que os ilumina. Diante desta missão, eu entendo mesmo que não se devem chorar os mortos. Melhor: havemos de chorar os mortos se os vivos os não merecerem

aqui e aqui mais duas partes do discurso.

Tudo isto passou-se apenas há 56 anos. 
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Um país atestado



«Um amigo regressado de Luanda confidenciava-me, há dias, com algum desdém: "Vocês sabem lá o que é faltar combustível para viver, não ter gasóleo para circular, para ligar o frigorífico que se alimenta através de um gerador ou para garantir o dia a dia de uma simples fábrica".

Nós não sabemos, de facto. E ainda bem. Mas o alarme bíblico gerado pela greve dos motoristas que hoje começa por tempo indeterminado fez-nos despertar para a essência do país que, quatro décadas e meia volvidas sobre a ditadura, ainda somos: medroso, alarmista, inseguro. Um país que se constrói e corrói com fantasmas, que medra numa redoma de orfandade, carente de um Estado firme e paternal. O Mundo não acaba a partir de hoje, mas ai de quem nos diga o contrário. No final, acabamos convencidos de que somos mais inteligentes do que todos os outros. Porque no Portugal dos pequeninos, na selva dos pequeninos, não há predadores tão dramaticamente inofensivos como nós.

Na sexta-feira, parecíamos a Venezuela. Corrida desenfreada às bombas, açambarcamento, escaramuças, manuais de sobrevivência. Durante o fim de semana, evoluímos para a pacatez e civilidade da Dinamarca. Solidão entre os gasolineiros. Em abril, o Governo dormiu na forma. Foi o que se viu. Agora, o mesmo Governo injetou litradas de cafeína na verve política pré-eleitoral e deu uma aula prática sobre governança em tempos de crise, atingindo no coração os fundamentos da greve (noutros tempos, a Esquerda treparia paredes) e exaltando o papel determinante e incontestável de um Estado de direito musculado (até o CDS bateu palmas, de uma forma um pouco sonsa).

Esperemos que a normalidade seja reposta e que o conflito salarial entre motoristas e patrões não degenere noutras formas de confrontação. Ainda é cedo para balanços, mas julgo que já podemos concluir, mesmo antes de a greve se fazer à estrada, que trememos por pouco, mas segurámo-nos como poucos. E que as matérias só são perigosas à medida dos nossos dramas.»

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11.8.19

Para Marte, rapidamente e em força



O governo devia era comprar duas viagens para Marte e enfiar o Pardal e o porta-voz da Antram num foguetão, hoje, às 23:59. Isso é que era!
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Requisição Civil? Agarrem-nos, está quase!



E se se calassem em vez de dramatizarem inutilmente as situações?

#faltam56diasparaeleições
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Leitura para férias


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Escassez e abundância



«Isto da greve dos motoristas, que não é de todos os motoristas, nem sequer de todos os motoristas de substâncias perigosas, leva a comentarismo de vária ordem do qual não quero ficar de parte, até porque estamos no verão, um verão perfeito sem calor e com chuva, o que muito irrita toda a gente que gosta é de calor, e também, suspeito, deve estar a dar gozo aos negacionistas do aquecimento global, mas que para a semana terão de derreter as suas palavras com o calorão que vai fazer, pelo menos é o que diz o tempo.

Uma das vantagens desta greve, e perdoem-me se me estou a repetir, ninguém manda ler estas coisas, é mostrar o que é escassez. A abundância morna que se chama Portugal é sacudida pela possibilidade de algo faltar. E não é algo qualquer, é o algo gasolina para o carro. Depósito cheio, o carro, o acesso aos bens materiais que chegou há tão pouco. Sim, estradas fechadas, não poder ir trabalhar, tudo isso é muito relevante, claro. Mas há o facto de ser o carro. E o carro mexe com a psique das pessoas.

Mas relembrar da escassez é bom, é importante. Saber que as coisas podem faltar, sobretudo aquelas de que mais se precisa, mais valiosas. Lembrar que um dia faltou muito, um dia até faltou tudo. Tudo e mais alguma coisa.

Além da escassez e do seu papel em mostrar as fragilidades da fartura, a escassez também mostrou a abundância da estupidez, dos medos infundados, do exagero, do açambarcamento como reação humana, demasiado humana, de querer ficar com mais à custa do menos dos outros, de querer ficar com tudo à custa do nada dos outros. A abundância acumulada perante o desespero de quem chegou à bomba depois de o último abastecer, foi por pouco, pensa, bastava não ter deixado aquele carro meter-se à frente, lá atrás, bolas, se soubesse não tinha parado para a velhinha na passadeira. A culpa é dos turistas, vêm os uberes e os táxis e açambarcam tudo, e a culpa é dos imigrantes que nem querem vir para cá, porque se viessem trabalhavam por menos dinheiro e não havia greves nenhumas. A escassez lembra-nos da maldade à raiz da pele. Quando tudo está bem, está tudo bem.

E abundância é sempre melhor do que escassez. E o que esta crise nos tira em gasosa, dá-nos em sindicatos. E como liberal, alguém que acha que haver concorrência, de empresas, de pessoas, de animais de estimação, do que for, não pode deixar de estar deliciado com o empreendedorismo sindical em que Portugal se está a transformar, uma Union Summit. Talvez o PS e as outras forças democráticas quando lutaram nos dias lá atrás contra a unidade sindical nunca imaginassem que hoje teriam de lidar com sindicatos que (ia escrever, sindicatos em que não mandam e que fazem precisamente o que é suposto os sindicatos fazerem, mas arrependi-me a meio para não ofender ninguém) encaram a luta do trabalhador como uma coisa de curto prazo. Sem tempo a perder. Que açambarcam argumentos e nos relembram da humana bondade na fartura e maldade na escassez.»

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