16.8.19

A greve



«A greve dos motoristas de matérias perigosas fez emergir um conjunto de perplexidades. A primeira, que se coloca ainda antes de assistirmos às imagens das filas intermináveis de carros em postos de abastecimento ou à greve propriamente dita, é sobre a organização de todo o setor.

Alguém acha normal que as empresas petrolíferas, com centenas de milhões de euros de lucros por ano (só a Galp teve um lucro de 707 milhões em 2018), quase não tenham motoristas de matérias perigosas nos seus quadros de pessoal? Mais, alguém explica como é que toda a operação de distribuição deste setor está dependente de jornadas de trabalho de 14 horas? Ou, ainda, que o salário dessas longuíssimas jornadas de trabalho quase toque o valor do salário mínimo, ao que se adiciona um conjunto de parcelas inventadas para fugir a pagamento de impostos ou contribuições para a Segurança Social? Sim, este país real é o faroeste da responsabilidade social das empresas e os lucros milionários só comprovam que a ganância é como o universo, não tem fim.

Como se chegou a esta situação? O resumo é simples: privatizou-se uma empresa estratégica para o país, dando a uns poucos os lucros que deveriam ser de todos; externalizou-se parte da operação recorrendo-se ao outsourcing para as atividades que anteriormente eram desempenhadas pelos trabalhadores do quadro de pessoal, esperando que a selva do mercado trouxesse a desregulação laboral que ansiavam - o que aconteceu com os motoristas de matérias perigosas; os motoristas passaram de trabalhadores a empreendedores, incentivados a criarem a sua própria empresa - ou contratados por outros nessa situação - perdendo direitos pelo caminho. Ao longo deste processo os lucros aumentaram, a riqueza ficou ainda mais concentrada nos acionistas, e os salários caíram. É motivo para indignação? Claro que é.

Esta introdução explica o contexto que nos trouxe às lutas de hoje. Para quem achava que esta história era apenas entre interesses privados, fica claro como o poder público está na sua origem e dela nunca esteve desligado.

Isso ficou bem claro neste processo. O Governo dizia querer fazer a arbitragem do conflito, mas não mostrou distanciamento para ser um bom árbitro. O primeiro-ministro disse que o Governo se preparou para a greve, mas em nenhum momento isso passou por questionar a atuação das empresas.

Não deveria a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) ter investigado e punido as empresas pelas abusivas jornadas de trabalho, excessos de horas extraordinárias e pela manifesta desadequação dos seus quadros de pessoal? Não deveria a Autoridade Tributária ter investigado a contabilidade criativa que soma complementos ao salário para subtrair aos impostos devidos ao Estado? E não deveria a Segurança Social ter investigado essa mesma folha salarial que retira valor às pensões futuras dos motoristas? Dever, deviam todos, mas não fizeram. Por outro lado, a preparação do Governo terá sido a da folha excel dos serviços mínimos e do parecer jurídico da requisição civil. São precisas mais provas para concluirmos do lado que o Governo está?

Até a jornada de trabalho de oito horas, cuja luta já leva dois séculos e é um dos pilares da cultura de esquerda, foi negada pelo ministro do Ambiente. Disse ele que “ninguém pode ser obrigado a trabalhar para além do horário de trabalho, mas não digam que o horário de trabalho é de oito horas por dia, porque pode ser de 60 horas”. A bússola política entrou em desnorte e só isso explica que um Governo que se diz de esquerda tenha criado um precedente grave de abuso da lei do trabalho e de limitação do direito à greve.

Tudo isto salta à vista e, para o ver, não precisamos de concordar com a convocatória da greve, basta algum bom senso e sentido de justiça. A exigência do tempo é de mais diálogo e menos arrogância, de mais negociação e menos provocação. E não está tudo na mesma, até porque os benefícios das lutas já se começam a conhecer. Apesar de ainda não serem públicos os detalhes, será inegável que o acordo alcançado pela Fectrans resulta do atual contexto e tem nele a sua marca. Que os avanços sejam para todos, será o mínimo que se exige. Que a mediação agora pedida seja imparcial é outra condição essencial.»

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