José Pacheco Pereira no Público de hoje:
«O livro de Cristina Ferreira merece ser lido nem que seja pela transcrição de comentários, tweets e outras formas de expressão nas chamadas “redes sociais”, com insultos dirigidos à própria, à sua família e aos seus amigos. E pela intenção de denunciar e combater esse mundo do ódio, de grosseria, de ameaças, de violência. Esse mundo é na sua quinta-essência o de uma forma vil de covardia, porque só o anonimato e a desresponsabilização explicam porque é que gente mesquinha, escondida no canto do seu telemóvel ou computador, faz do insulto, da intriga, da mentira e do ódio um passatempo quotidiano. Todas as pessoas com alguma notoriedade pública sabem que é assim, e um dos exemplos do livro de Cristina Ferreira mostra de que é que estamos a tratar:
“esta cristina na cama deve ser um cronho, k eu digo vos uma coisa, avaliar pela pessoa que se vê na tv, na cama deve ser um trambolho muita fava pouco vinho, vai te cronho, deves pensar k es a ultima bolacha do pacote, velha caduca…”
Aqui está do que estamos a falar, obscenidades, machismo, insultos, na linguagem gutural de um tal Paulo. Gostava que esse Paulo desse a cara para melhor se perceber este mundo de covardia, e sabermos do que se está a tratar, com cara e responsabilização. Porque, entre outras coisas, o que deveria acontecer é que o que é lei cá fora devia ser lei lá dentro, e isto é um crime.
Neste mundo de covardia, o livro é corajoso (comentário previsível: qual quê, essa gananciosa quer é ganhar dinheiro com a publicidade ao livro…). E não se surpreendam com este artigo, porque não me caem os parentes nem os pergaminhos na lama em dizer publicamente que concordo com o que concordo e ver o mérito da denúncia.
Noutras coisas, o meu mundo tem pouco que ver com o de Cristina Ferreira, não por ser aquilo a que se chama um “intelectual”, hoje mais um insulto do que um mérito, mas porque aqueles programas representam muitas vezes um papel perverso que têm mais relação com o mundo do ódio nas redes sociais do que se pensa. Critiquei António Costa, e essa crítica é extensiva a todos que foram lá fazer de cozinheiros e outras cenas esquisitas, e, eu próprio, tendo sido convidado, declinei agradecendo.
Nada tenho contra a chamada “televisão popular”, cujo papel em falar para as pessoas a quem ninguém fala e de quem ninguém fala é relevante. Mas não ignoro as relações entre a reality TV e aquilo que Cristina Ferreira critica. Há uma exposição do privado e do íntimo, que não só me repugna como tem um efeito inaceitável num dos valores civilizacionais, precário e frágil, a conquista da privacidade. A promiscuidade de que muitas vezes esses programas se alimentam acaba mais cedo ou mais tarde por limitar a liberdade de quem não traça uma linha muito firme entre o público e o privado.
Esta exposição e o abandono de qualquer pudor e privacidade que pululam nas revistas do jet-set, com centenas de pequenas figuras de fama escassa ou fugaz a “assumirem” namorados e outras coisas mais, representam um papel promocional na sua carreira que quase depende disso, dessa exposição, nem de obra, nem de talento, nem de esforço, muito menos de saber. Não estou a falar de Cristina Ferreira. E como são modelos para muita gente, que as inveja ou admira, ou as duas coisas ao mesmo tempo, fazem uma antipedagogia para as gerações mais novas e para os mais velhos que vivem dependurados no Facebook, dão origem a milhares de fotos de adolescentes a fazer beicinho, com pouca roupa, e abrem caminho para formas muito comuns de bullying nas escolas. Uma das formas clássicas é exactamente a circulação de fotografias íntimas mandadas a um namorado, que no fim do namoro ou até durante ele as envia para os colegas de turma. Isto e outras coisas mais, que permanecem como um fantasma a vida toda.
Podia dizer, como dizia Vicente Jorge Silva, o que é que “eles”, neste caso os políticos, querem quando se põem a jeito? Para “eles”, que se expõem para ganhar votos ou audiências ou dinheiro, não deveria existir a protecção da privacidade, vale tudo. Discordei, numa antiga polémica, com ele. Não, não vale tudo, mesmo quando o alvo se põe a jeito.
Já agora, sugiro à claque do ódio vários temas para comentários, tweets e outras excrescências sobre este artigo nas redes sociais, a começar pela acusação mais desejada, o miserável dinheiro. Não estou eu a querer agradar à minha “patroa” da TVI? Não estou eu a ajudar a vender o livrinho da dama por qualquer interesse financeiro ou para me promover à custa dela? Não quererei encostar-me à fama da senhora para obter likes e quejandos? Tudo isto será escrito porque o que faz mexer a cloaca das redes sociais são paus de madeira desta natureza.
Sempre existiu esta indústria do vilipêndio e agora vê-se mais? É verdade que sempre existiu e que agora se vê mais, mas também é verdade que agora é mais, mais descarado, mais vergonhoso, envolvendo mais gente, mais atenção fútil, mais dedicação ao mal, mais perseverança no insulto, mais covardia. Há gente quase profissional disto, que deve passar horas a escrever comentários como o que citei acima. Imaginem como é o mundo deles.
Sim, este elogio da denúncia de Cristina Ferreira é para vosso escarmento, vosso opróbrio, vosso desluzimento, vossa vergonha e, se tiverem de ir ao dicionário para perceber algumas palavras, ao menos ganha-se alguma coisa.»
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