2.9.17
Dica (622)
Don’t be fooled: Brexit Britain wants a deal. Europe just wants a clean break (Natalie Nougayrède)
«This week’s talks were fractious for a reason. The UK has barely begun to understand Brussels’ mindset – and is still negotiating with itself.»
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Racistas, nós?
Este quadro, publicado num artigo do Público de hoje, está a dar origem a grandes polémicas nas redes sociais. Vale o que vale, mas, até ver, não creio que o «European Social Survey» seja uma fábrica de fake news.
«Numa pesquisa integrada no programa de investigação Atitudes Sociais dos Portugueses, com dados do European Social Survey que inquiriu 30 mil pessoas com mais de 15 anos, em 20 países, Portugal aparece com um alto índice de racismo. Medindo o racismo biológico (com as perguntas: “acredita que há raças ou grupos étnicos que nasceram menos inteligentes do que outros? acha que há raças ou grupos étnicos que nasceram mais trabalhadores do que outros?”) e o racismo cultural (“pensando no mundo hoje, diria que há culturas muito melhor do que outras ou que todas as culturas são iguais?”) os inquiridos em Portugal têm dos índices mais elevados de crença nos dois tipos de racismo: 52,9% no biológico e 54,1% no cultural quando a média europeia é de 29,2% e 44%, respectivamente.»
Marcelo e Trump
José Pacheco Pereira no Público de hoje:
«A mera junção destes dois nomes parece insultuosa, tanto mais que são duas personagens muito distintas e que detestariam em se verem reunidos num mesmo título. Na verdade, Marcelo tem pouco a ver com Trump e vice-versa. Marcelo é um político sofisticado, culto, elegante, educado, honesto e Trump é uma personagem grosseira, ignorante, brutal, corrupta e corruptora e ameaçadora. Acima de tudo, Marcelo é um político democrata e Trump é um autocrata, a diferença mais substancial. Porém há uma coisa que têm em comum: é o facto de ambos terem chegado ao poder através de uma contínua utilização do sistema mediático moderno, com criatividade e intuição, moldando o universo dos media aos seus interesses pessoais e políticos. E aqui pode-se fazer uma comparação entre ambos, e percebendo-os, perceber algumas das características da política em democracia, em particular a sua ligação/sujeição aos mecanismos mediáticos. (…)
No Expresso, Marcelo inicia uma escola de jornalismo que foi a primeira típica da nossa democracia, e que veio mais tarde a trazer para a rádio e para a televisão. Ele foi o mestre, mas os seus discípulos ainda hoje usam a “gramática” e o “léxico” do estilo de jornalismo que ele criou. Usam a forma de pensar de Marcelo e o seu vocabulário, naquilo a que chamam “jornalismo político”, mas estão muito longe da mestria de Marcelo. Os artigos de opinião, as perguntas em entrevistas, a lógica dos títulos, a enunciação dos “problemas”, os “destaques”, toda a mecânica interpretativa nasce daí, embora se se fosse a verificar a pertinência das questões da “agenda”, e os resultados de alguns vaticínios veríamos que praticamente nada acerta, ou tem utilidade analiticamente.
É um jornalismo discursivo e narrativo, pouco metafórico (aí o Independente bate todos), bastante a-histórico e onde não cabem surpresas. Inclui algum psicologismo na interpretação das personagens, mas muito superficial e muito dominado por uma lógica lúdica de intriga e mexerico, que davam ao “produto” uma lógica popular de entretenimento. (…)
Com a crescente simbiose discursiva dos políticos em democracia com esta forma de mediatização, passava a haver um contínuo entrelaçado entre os cenários e as personagens que supostamente eram os seus actores. Este efeito de teatralização da vida política ainda hoje é dominante, com a sua excessiva atenção á coreografia e desprezo pela substância. O conteúdo das políticas foi subsumido pela maneira como eram “comunicadas”, os célebres “erros de comunicação”, um aspecto muito comum nos comentários de Marcelo, como aliás nos de Marques Mendes, particularmente quando eles próprios concordavam com as políticas de fundo, mas não o queriam dizer.
Porque é que este longo tirocínio comunicacional abriu a Marcelo o caminho da Presidência, que a sua própria actividade política não abriu? Primeiro, a longa exposição mediática é de um modo geral uma vantagem para quem tem que fazer um comentário. Não precisa de perder tempo com preliminares, visto que o seu público conhece-o muito bem, e de um modo geral sabe o que ele pensa.
O resultado desta longa exposição é uma espécie de intimidade, o “homem está lá em casa todas as semanas”, tornou-se um hábito que gera um núcleo fiel de leitores, mesmo críticos, e Marcelo foi capaz como ninguém de criar essa intimidade que se manifestava inclusive nas formas de tratamento entre o próximo e o deferencial.
Por outro lado, havia um aspecto nos comentários de Marcelo que exercia uma função cívica: explicava procedimentos, processos, comparações que davam ao seu público uma pedagogia da democracia, que é um dos aspectos mais positivos do bom comentário político. Mas Marcelo ia mais longe, ao apresentar-se com a persona do “professor” dando notas, um mecanismo adoptado por toda a comunicação social nas setas do sobe e desce, valorizava o classificador reduzindo o classificado ao papel de aluno. Na verdade, poucas coisas eram mais absurdas do que ver Marcelo a classificar com notas Cavaco ou Clinton, mas o facto de nós não vermos essa absurdidade, remete para o seu poder mediático. A verdadeira subversão seria classificar o próprio Marcelo, como aliás analisar os seus comentários com uma fact checking que eles muitas vezes falhavam, por exemplo em política internacional.
Estes são alguns dos aspectos da “escola de Marcelo” A ela se soma, depois do 25 de Abril, dois momentos de alternativa, todos anti-Marcelo, também com algum sucesso, um a escola do Independente de Portas e Miguel Esteves Cardoso, outra a linha da Alt-right portuguesa que começou nos blogues de direita e que desembocou no Observador.»
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1.9.17
Dica (621)
Within and Against Capitalism (Alyssa Battistoni)
«Climate change isn’t just an issue to talk about every few years — it has to be at the center of how we mobilize and organize going forward. From now on, every issue is a climate issue.»
. 01.09.1939 - A invsão da Polónia
Na manhã de 1 de Setembro de 1939, a Alemanha invadiu a Polónia e, dois dias depois, a Grã-Bretanha e a França declararam guerra à Alemanha.
Três vídeos muito úteis para aprender ou relembrar:
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Uma Madonna Lisboa
«Foi com alguma curiosidade que assisti ao primeiro debate com os candidatos à Câmara Municipal de Lisboa na SIC e, na segunda parte, na SIC Notícias. Moderado por Rodrigo Guedes de Carvalho o debate acabou por ser chocho. Notou-se a falta de uma candidata do PSD. Outra crítica, sendo o debate sobre Lisboa e os seus habitantes fazia sentido terem posto legendas em francês e inglês, porque são as pessoas a quem o debate mais diz respeito.
No final do debate, fiquei com a sensação de que a Teresa Leal Coelho é a única pessoa que tem menos vontade de ser presidente da câmara do que eu tenho que ela seja. Ela só quer que isto acabe. Nem quer arriscar e vai votar Fernando Medina. O que lhe dava jeito era o PSD não eleger ninguém. Numa das intervenções, Teresa Leal Coelho disse que fazia vídeos sobre Lisboa esquecida. Como, por exemplo, o caminho de sua casa para a câmara. O que Teresa Leal Coelho foi fazer à SIC foi distribuir votos. Cristas esteve todo o debate com um sorriso de habitante de Lisboa extremamente satisfeito. Ou de quem sabe que ganha mais votos cada vez que Teresa Leal Coelho fala do que com o que diz.
Estranhamente, um dos nomes mais referidos no debate foi o de Madonna. Não me perguntem porquê. Segundo sei, Madonna vai viver para Sintra. Há um certo histerismo com isto da Madonna se mudar para Portugal e ser vista aqui e acolá. Nós temos tradição disso. Eu ambiciono ver a Madonna em Fátima. E não é só a Madonna. Há vários famosos que se mudaram para Lisboa e, sem entrar no nosso lado Caras, eu até acho que com o "boom" com que a cidade anda até podíamos apostar na vinda para Lisboa de famosos já mortos. Exemplo: Prince no Panteão, David Bowie nos Jerónimos. Só assim, de repente.
É realmente diferente ver um debate sobre as autárquicas em Lisboa em que se começa por falar da Madonna. Não parecia um debate autárquico, parecia o princípio de um filme do Tarantino. Teresa Leal Coelho parecia estar chateada com a Madonna. Disse que Madonna não veio para Lisboa para estar uma hora fechada dentro do carro. Parece que nunca viu um vídeo com o que a Madonna faz dentro de uma limusina. Uma hora dentro do carro da Madonna está longe de ser a chatice que a Teresa Leal Coelho quer fazer parecer. Depois, acrescentou que os lisboetas "não têm o orçamento da Madonna." Esta embirração toda com a Madonna só pode ser inveja da colecção de sapatos.
Retirei pouco mais do debate, excepto as vinte estações de metro de Cristas, uma coisa digna da Madonna, incluindo uma estação de metro em Loures. Aposto que o candidato do PSD a Loures não se opõe à ideia desde que a nova estação de metro de Loures se chame Sapo e tenha pinturas com o tema, etc.»
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31.8.17
Dica (620)
«The right-wing authoritarian drive is based on repressive social conservatism that legitimises dangerous paths against democracy, individual rights and social justice.»
. Cavaco - O tempora o mores!
1993, Cavaco em Salzburgo, pago pela Nestlé e criticado por Paulo Portas em O Independente.
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31.08.1945 - Sérgio Godinho
Sérgio Godinho faz hoje 72 anos. Compagnon de route de muitos de nós, mesmo a distância, já que viveu grande parte da sua vida no estrangeiro até 1974, faz parte de um grupo precioso que tanto nos ajudou a usar a cantiga como arma antes do 25 de Abril e como grito de vitória e de esperança depois.
Difícil é a escolha, mas ficam aqui algumas das suas canções – em jeito de homenagem ao Sérgio e à nossa memória.
Com José Mário Branco, numa das canções desse extraordinário cd, de 2003, «O irmão do meio»:
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30.8.17
No dia dele – para memória futura
Tivemos nós esta abécula como primeiro-ministro durante 10 anos e como presidente da República durante outros 10!
. Dica (619)
The Bannon Ultimatum (Matthew Phelan)
«Steve Bannon, the president's nativist consigliere, has left his post in a stronger position than Trump himself.»
. Americanos e asiáticos
Há muitas inundações e não é só no Texas. E com mais vítimas. Bombaim fica apenas a mais 1.000 kms de Lisboa do que Houston. E, no entanto, os texanos são «nossos» para as TVs. Quanto aos outros, who cares? Escurinhos e tantos!…
As viagens de balão
«Há um século, ou dois, as aspirações dos seres humanos eram mais modestas. Viajar de balão era uma delas. Júlio Verne percebeu isso e ofereceu-nos o delirante "Cinco Semanas num Balão", onde o doutor Ferguson e os seus amigos desejam fazer a travessia do continente africano. Esta aventura faz-nos esquecer que a história das viagens de balão tem sempre o mesmo fim: a queda do aparelho na terra. Tal como a política ou a vida. O balão foi derrotado, em velocidade, pelo comboio ou pelo avião. E passou a ser apenas um meio de transporte romântico. Mas isso não fez decrescer o desejo de viajar. Uns querem conhecer Las Vegas. Outros ir ver um concerto de Lady Gaga. Alguns, mais modestos, querem apenas ir a uma feira comer torresmos ou entrecosto. Só os eleitores mais fervorosos de Donald Trump não desejam conhecer mais nada para lá das fronteiras do seu estado no meio dos EUA. Até têm medo de sair de lá. Na idade do turismo "low-cost", viajar tornou-se tão habitual como ir ao supermercado comprar comida pronta a aquecer e consumir. Mas todas as viagens podem ter um lado negro: e a administração pública portuguesa está a descobri-lo.
Viajar à borla tornou-se um desporto nacional. Tal como ir ver concertos sem despender um cêntimo (e aqui atire pedras quem nunca pecou). O problema é quando algumas viagens trazem cicuta nos bilhetes de avião e de jogos de futebol. Um grupo de secretários de Estado já lhe provou o gosto depois de ir celebrar os dribles da selecção a França. Agora começou a noite das facas longas: vários altos quadros do Ministério da Saúde foram até à China e outros até aos EUA. Se se escarafunchar um pouco não faltarão outras viagens de mais umas dezenas de quadros, de diferentes ministérios ou serviços públicos, aos mais diferentes locais do planeta. A destruição do Estado continuará assim em marcha, porque se saltou a fronteira do político para o não-político. Isso não invalida a falta de transparência. Estas viagens de balão vão sair bem caras à estrutura central do Estado. E a todos nós.»
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29.8.17
Dica (618)
Sowing Seeds of Hate. The Unforgivable Disgrace of an American President (Christoph Scheuermann)
«There has never before been a U.S. president who trivialized the violence and racism of neo-Nazis. For many Republicans, Donald Trump has now gone too far. The populist leader has become more isolated than ever before -- in the world and inside his own party.»
. Marcelo comentador, Marcelo presidente
Em 28 de Agosto de 2011, Marcelo o comentador afirmou isto numa das suas homilias de Domingo. Pode ajudar a imaginar o que vai na cabeça de Marcelo o presidente.
«Eu estava a ficar preocupado. (…) Precisamos de uma oposição forte. Se não há oposição forte, para onde é que vai a insatisfação das pessoas? As pessoas começam a indignar-se e a revoltar-se. Se não têm como canalizar para os partidos políticos, canalizam para onde? Para os sindicatos e depois para a rua. Precisamos da oposição (…) para canalizar as insatisfações.»
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Apenas melhoria nas estatísticas do desemprego?
Não está só em cima da mesa a melhoria das estatísticas do desemprego! Um exemplo entre muitos outros, aqui descritos, de leitura obrigatória.
«A Filipa é dentista e nem por isso fugiu ao flagelo da precariedade no mercado de trabalho. “Neste momento sinto-me uma autêntica escrava”, desabafa. “Neste momento, trabalho numa clínica que me paga 1% daquilo que faço, ou seja, se uma pessoa colocar um aparelho de 1700€, eu ganho 17€.»
. Bom dia, paraíso!
Um grupo de amigos de Nuno Brederode Santos continua a recordá-lo regularmente. Hoje faço-o deixando aqui mais uma das suas belíssimas crónicas, neste caso publicada no Diário de Notícias de 12.10.2008.
«Não é de hoje nem de ontem que os sexagenários se refugiam, no seu soturno convívio, na cansada graçola de que, daí para a frente, o seu destino é perderem a identidade, em caso de atropelamento. Tenhamos sido o mais desenvolto e transpirado na estiva dos trabalhadores do porto de Lisboa, ou o melhor professor de Filosofia dos liceus deste país, os jornais dirão "sexagenário mortalmente atropelado na Avenida da Índia". Mas o que eles calam - entre várias outras coisas que fazem muitíssimo bem em calar - é que a idade lhes rouba também o nocturno e o onírico. Esse mundo que, mesmo fugido ao território da vontade, nos alça em deuses fazedores, criadores do que ninguém controla ou condiciona. De tal modo que tem de ser a imaginação vigil a preencher esse vazio. Não vou por isso dizer que sonhei, mas, mais humilde e honestamente imaginei, o que se segue - reivindicando contudo o mesmíssimo estatuto de inimputabilidade do sonho, o que nem sequer Freud questionou.
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Aconteceu então que acordei com aquela antiquíssima vontade de tomar café. Lavei-me (mas não muito, porque a água deixou de correr na pendência do sacramento), vesti-me (mas não muito, porque do último fato já só me restavam as calças) e desci ao jardim público. Bebi no quiosque meio café aguado por quinze cêntimos e fui sentar-me no meu banco habitual, munido de um cartuchinho de papel pardo com os salvados do milho que compro ao mês. Sentei-me e, enquanto os pombos afluíam de todos os lados, pus-me a pensar, prazenteiro, na extraordinária fortuna que a Fortuna reservou à minha geração. Talvez não tenhamos sido melhores do que as outras. Mas, que raio!, investimos nas incertezas (sem qualquer pulsão de jogadores de casino); suámos brio e privámo-nos de muitos dos deleites sem alma que o quotidiano oferecia ao preço da uva mijona; e alguns - tantas vezes os melhores de entre nós - deram o sangue. Tudo isto porque - fôssemos da esquerda católica, ou da laica, ou comunistas, ou libertários - tínhamos o crânio povoado pelos fantasmas difusos, mas estimáveis, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, do fim da exploração do homem pelo homem, das mãos dadas sem olhar a quem, do amor como irmão gémeo da razão - enfim, da vida como festa a ser fruída.
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Estava eu nisto quando, da minha esquerda, oiço uma voz: "Como está? Já não se lembra de mim? Sou o Varela, o sem-abrigo que, na Rua 4 de Infantaria, dormia e tomava conta, durante a noite, do Citroën Dyane do seu amigo Luís..." "Ó sr. Varela, está bom?", tropecei eu, que o não reconhecera. Já o Varela, que trazia um pacotinho igual ao meu, deitava alpista aos pombos, quando me tocaram o braço direito. Era um senhor andrajoso e afável, sobraçando outro magro pacote de milho, a perguntar se podia sentar-se do outro lado do banco. Que sim, claro, entaramelei eu - e ele sentou-se. E atirou-me: "Posso-me apresentar? Eu sou o Américo. Tive mais cortiça que ninguém e na companhia dos petróleos nada se fazia sem o meu consentimento. Mas isso foram outros tempos..." "Ah", disse eu, no esbugalho de olhos que as pálpebras ainda aguentam, "muito gosto"...
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E então conversámos os três, distribuindo, com a parcimónia dos tempos, o milho pelos pombos, que já nos trepavam pelas calças. Falámos da vida, do destino e da cidade, de vista cansada e hemorróidas, de flores, pinguins ameaçados e economias emergentes. Depois, por sugestão do Varela, cada qual torceu o papo ao seu pombo e lá fomos - naquela ternura inconfessada e a fingir frieza com que o Claude Rains tomou o braço do Humphrey Bogart, a fechar o Casablanca - até ao meu quintal, para uma cabidela alternativa de que só o Américo sabia a receita.
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Foi bom, foi solto, distendido, irresponsável. Os amanhãs não cantaram, mas os ontens não pesaram. No fim, talvez o Américo tenha contido uma lágrima pelo charuto perdido, o Varela pelo charro e eu pelo cigarro, mas não mais do que isso.
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E eu dei comigo a pensar, mas sem gozo nem rancor: como é possível que o empenho generoso de tantos tenha falhado, tão dolorosamente e durante tanto tempo, para agora, em menos de duas décadas, a pura inépcia de um bando mundial de yuppies, que restauraram o blazer (mas também a peúga branca) e cuja cabecinha jamais foi visitada por um qualquer conhecimento que a aritmética não possa exprimir, vir entregar-nos, de bandeja, a liberdade, a igualdade, a fraternidade, o fim da exploração, as mãos dadas sem olhar a quem... etc. A propriedade, não a tendo Proudhon abolido, exauriu-se e, com isso, a igualdade e a fraternidade instalaram-se, de seu natural. A liberdade acabou feita: talvez pelo desinteresse, mas aí está. Exploração, não tem como nem para quê. E eis que a vida virou festa a ser fruída. (Ainda que um tanto à custa dos pombos.) Qual quê! Nem Criação nem Big Bang. Nem Deus nem Darwin. Viva a escola de Chicago!»
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28.8.17
28.08.1963 – Luther King: «I have a dream»
Em 28 de Agosto de 1963, quando Martin Luther King pronunciou este seu célebre discurso durante a «March on Washignton for Jobs and Freedom», não podia ter imaginado que, depois de todo o progresso que se seguiu, o seu país viria a ter, mais de meio século depois, um presidente como Donald Trump. A História dos direitos adquiridos não será destruída. Mas não está a ser fácil.
(No fim deste post, o texto do discurso na íntegra.)
A propósito:
«I have a dream» – Texto:
A democracia de plataforma
«Vivemos tempos de infantilização da política. E de simplificação pateta das frases e das ideias através do twitter e do Facebook. Talvez por isso, Alan Moore (autor da novela gráfica "V for Vendetta", que recuperou a máscara de Guy Fawkes e serviu de símbolo ao grupo Anonymous), contra a simplicidade atroz dos tempos modernos, tenha escrito uma novela sólida de 1.300 páginas, "Jérusalem". Moore acha que vivemos um tempo de vazio, em que nada fazemos para além de reciclar o passado. Sem movimentos de ruptura, de contra-cultura, as sociedades adormecem. Olhando à volta, especialmente na sociedade portuguesa, sente-se isso: o afunilamento da oferta em termos de comunicação ou de cultura está a conduzir Portugal a um vácuo. O turismo não salvará este ocaso do pensamento contraditório. É por isso que as próximas eleições autárquicas, que poderiam ser um sismo nas nossas placas tectónicas bem comportadas, estão a revelar-se apenas como um ajuste de contas entre os partidos instalados e alguns políticos que saíram da sua órbita mas que pensam da mesma maneira.
Numa recente entrevista, Alan Moore dizia: "Eu acredito na democracia directa. Mas isso requer que as pessoas estejam bem informadas, e não leiam apenas os títulos de alguns sites. O problema é que hoje tudo é plataforma. E os artistas são apenas vistos como geradores de conteúdos para essas plataformas". As sociedades sem os choques eléctricos que os movimentos culturais ou sociais trazem, acabam por desertificar-se. Há quem chame a isso paz social, mas nenhuma sociedade cresceu e inovou sem a chama dos desafios que alguns trouxeram para elas. A sociedade portuguesa, sitiada entre as vitórias futebolísticas e na Eurovisão e os incêndios que demonstram a sua incompetência estrutural, vive um momento de insónia perigosa. Ler o que dizem alguns candidatos às principais autarquias do país mostra como há demasiadas pessoas a patinar na maionese. Sem uma ideia de mudança para este país onde se vai sobrevivendo.»
Fernando Sobral
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27.8.17
Dica (616)
Is Violence the Way to Fight Racism? (Peter Singer)
«Is it far-fetched to think that history could repeat itself in this way? To antifa activists who see violence as the answer to the far right, it should not be. They are the ones who are drawing the historical parallels. The Times quotes an antifa activist: “If we just stand back, we are allowing them to build a movement whose end goal is genocide.” If that is the danger, we need to find a better way of combating it than the tactic that so plainly failed in Germany.»
. Racismo? Se dúvidas houvesse…
«Os episódios não são muito diferentes daqueles pelos quais Mamadou Ba passou nos últimos meses. Em Fevereiro, quando se pôs a procurar casa na linha de Sintra e em Lisboa, não pensou que fosse tão difícil. Mesmo estando habituado a ouvir relatos de discriminação que lhe chegam através da associação SOS Racismo, da qual faz parte.
Funcionário da Assembleia da República, com contrato de trabalho e com fiador, licenciado, classe média, Mamadou Ba tinha as garantias exigidas. Só há semanas, depois de visitas frequentes e buscas diárias, é que conseguiu finalmente arrendar casa - e a uma pessoa que já conhecia.
“As visitas ou não se concretizavam ou reconheciam o sotaque e diziam que estava arrendada. Ou então marcavam para a semana seguinte e quando ligava já estava arrendada. Nunca ninguém me disse que não arrendava a casa por eu ser negro. Mas isso era óbvio...”, conta.»
. O Peter era uma grande besta, mas agora é “politicamente incorrecto”
«Quando eu era muito jovem, ali entre a meninice da infância e a infantilidade da adolescência, havia na minha rua um rapaz que dizia muitos palavrões. E não estou a falar de anticonstitucionalissimamente, esternocleidomastóideo ou pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiose – estou a falar de palavrões a sério, daqueles que acabam em alho quando saem de uma boca irada e que terminam em asteriscos quando são impressos nas páginas de um jornal corado.
Lembro-me bem do dia em que o Peter “vamos chamar-lhe assim” Parker (se é para usar um nome fictício, que seja com estilo) se chegou ao pé de mim e me disse, naquele seu jeito espalhafatoso mas ao mesmo tempo ainda mais espalhafatoso, que tinha escapado à rasca de ser atropelado: “A p*** da velha fugiu, mas ainda a mandei p’ró c******, a preta de m****!”
Era assim que ele falava todos os dias, de manhã à noite, só que sem os asteriscos. Como se dizia na altura, o Peter era aquilo a que os especialistas em comportamento juvenil chamavam “uma grande besta”.
É claro que eu não fiquei calado. Que não se falava assim, muito menos se andava para aí no meio da rua a chamar pretas e velhas às pessoas, mesmo que quase nos tenham atropelado, com certeza foi sem querer, não vês que às vezes isso acontece. “Então ela não é preta? Olha, vai p’ró c****** tu também!”
Era amigo do seu amigo, o Peter. Dava tudo o que tinha e, caso o vazio dos companheiros só pudesse ser preenchido por património tangível, era até capaz de roubar o que não tinha. Mas, neste caso, não há como discordar dos especialistas: o Peter era mesmo uma grande besta.
Muitos anos depois, o Peter continua igual. Diz tudo o que lhe apetece e tem sempre uma ofensa preparada na ponta da língua, que exercita dentro da boca como se fosse a Nadia Comaneci do Ku Klux Klan. Como costumo dizer-lhe das poucas vezes que nos cruzamos, tens-te revelado um homem coerente e de convicções fortes.
Há uns dias encontrei-o num café. A ele e à namorada, a Mary “vamos chamar-lhe assim” Jane.
É claro que a Mary nunca diria que o Peter é uma grande besta – em vez disso, chamou-lhe “uma pessoa politicamente incorrecta”. Tive o cuidado de não assinalar a ironia, para não provocar sentimentos desagradáveis a um casal tão assertivo: então não é que “uma grande besta” se transformou em “pessoa politicamente incorrecta”? Modernices.
É um problema grave, que se tem alastrado pela sociedade e que envenena o discurso público e põe em causa princípios fundamentais da nossa democracia, como a liberdade de expressão: numa lógica profundamente moralista e a fazer-se de púdica, há grandes bestas que passaram a apresentar-se como pessoas politicamente incorrectas, e há grupos de neo-nazis e supremacistas brancos que se apresentam agora como alt-right. O Peter disse-me até que as pessoas já não mentem; limitam-se a apresentar factos alternativos.
A nossa sociedade não pode continuar neste caminho. Qualquer dia, as pessoas que não lêem as notícias até ao fim antes de escreverem uma parvoíce qualquer nas caixas de comentários vão deixar de se chamar analfabetos funcionais e passar a chamar-se utilizadores de redes sociais. (E digo isto no bom sentido e com todo o respeito, não vá alguém chegar ao fim deste texto e sentir-se ofendido.) Como esse risco é muito reduzido, aproveito este último parágrafo para me despedir de mim mesmo.»
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