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31.8.19
Museu de Salazar aka «Centro Interpretativo do Estado Novo» (3)
Estou convencida de que não chegará a existir, mas João Abel Manta poderia fornecer algum material para mostrar António a arrastar os netinhos dos seus seguidores para a sua antiga escola primária.
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Três erros num só
«Se a mensagem de António Costa para as eleições é a de que o país está condenado à ingovernabilidade se o PS continuar a depender do BE, prepara-se para cometer vários erros num só. Primeiro, comete um erro tático. Costa aponta a mira ao BE e não ao PCP porque o primeiro está a destacar-se do segundo e tem maior porosidade eleitoral com o PS. Só que o efeito das suas palavras é o oposto ao desejado. Tentando influenciar o voto de eleitores que querem alguém que os controle, valoriza os bloquistas, tratando-os como mais firmes do que os comunistas. É falso e contraproducente. Por outro lado, o discurso da “ingovernabilidade” não pega depois destes quatro anos. Se há crítica feita a bloquistas e comunistas é a de terem cedido demais. Já ninguém os vê como fonte de instabilidade. Nem a melhor campanha consegue mudar uma perceção criada numa legislatura inteira. E esta conversa é má para a imagem de Costa. Passa uma mensagem de arrogância junto dos eleitores que gostam da ‘geringonça’ e reforça a convicção dos que acham que não deve ser deixado sozinho. Para os restantes, fica a sensação de que cospe no prato onde comeu.
É claro que o principal objetivo eleitoral de Costa é crescer à direita e chamar irresponsável ao BE. Mas quando tapa a cabeça destapa os pés. E ao mover o cobertor pode ganhar vantagem eleitoral mas comete um segundo erro, este estratégico. Além dos ganhos imediatos, a ‘geringonça’ correspondeu a uma reavaliação da estratégia do PS. Os socialistas perceberam que tinham de liderar um bloco à esquerda para deixarem de depender, para governar, de maiorias absolutas cada vez mais difíceis de conquistar ou de alianças suicidas com o PSD. Tinham razão. Mas a crise na direita e a boa situação económica terão criado a ilusão de que a maioria absoluta era agora possível e desviado o PS da opção que o salva do destino dos congéneres europeus. A tentação de ir a um eleitorado órfão de uma direita em crise, construindo um discurso mais agradável ao centro-direita, terá efeitos indesejados. Desloca o PS para o lugar de charneira do regime, deixando o flanco esquerdo desprotegido e ficando ensanduichado entre inimigos, sem aliados para o futuro. Foi desta armadilha que Costa fugiu com a ‘geringonça’, é esta armadilha que está a voltar a armar.
Portugal é um exemplo na Europa por ter integrado no arco do poder representantes de importantes franjas de descontentamento. E isso é especialmente relevante quando sabemos que a crise económica acabará por voltar pela mesma porta europeia por onde saiu. Libertar BE e PCP para uma oposição frontal impede qualquer compromisso de esquerda para lidar com uma próxima crise. À direita, o resultado será ainda mais trágico. Ao aproveitar a crise do PSD e do CDS para lhes ocupar o seu espaço natural, capturando-lhes o discurso sobre o défice e sobre as greves, deixa-os a falar para as margens do sistema sobre ideologia de género e outras patetices. Se Costa confirmar a escolha que fez há quatro anos e liderar a esquerda, permitindo que o PSD se reorganize para liderar a direita, estará a ajudar a salvar a democracia portuguesa do desgaste a que as democracias europeias têm estado sujeitas. Se, inebriado pela possibilidade passageira de uma maioria absoluta, quiser neutralizar tudo à sua volta estará a destruir o que fez. Será o seu terceiro erro: por cálculo eleitoral de curto prazo, deixará a nossa democracia mais frágil.»
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30.8.19
Museu de Salazar : uma excelente ideia
@João Fazenda
Ricardo Araújo Pereira na Visão de 22.08.2019.
«A autarquia socialista de Santa Comba Dão deseja criar um Museu de Salazar. A iniciativa revela grandeza, porque Salazar não desejaria criar uma autarquia socialista em Santa Comba Dão.
Os amores não correspondidos são sempre comoventes. No entanto, é possível que este raciocínio não esteja correcto: se soubesse que a autarquia socialista quereria criar o Museu de Salazar, talvez Salazar não tivesse nada contra autarquias socialistas. É como se costuma dizer: o ódio nasce da ignorância, e provavelmente Salazar não gostava de socialistas apenas por não os conhecer bem.
Pessoalmente, há muito que sou favorável à criação de um Museu de Salazar. Mais precisamente, desde 1928. Creio que já nessa altura Salazar merecia um museu, onde ele pudesse figurar, devidamente empalhado, para alegria de todos. E julgo, aliás, que a ideia do Museu de Salazar peca por defeito. Devia ser criada uma grande Disneylândia do fascismo, em que os visitantes pudessem encontrar diversões tais como viver duas horas nos calabouços da PIDE, frente a um inspector munido de um martelo, ou passar uma tarde na frigideira no campo de concentração do Tarrafal; onde fosse possível denunciar amigos e conhecidos (aproveitando a experiência obtida junto do botão “denunciar”, das redes sociais), vestir a farda da bufa e fazer piqueniques em que uma sardinha dá para três. Além disso, iniciativas deste tipo resolvem um problema antigo: como taxar a estupidez? Muitas vezes se lamenta: “Ah, se a estupidez pagasse imposto...” Pois bem, cobrar bilhetes para o Museu de Salazar pode ser finalmente um modo eficaz de sacar dinheiro a idiotas.
Por outro lado, a criação do Museu de Salazar gera confusão, e eu sou um velho apreciador de confusões. Por exemplo, todos os saudosistas do Estado Novo, até aqui estridentemente receosos de que o poder socialista criasse em Portugal uma Venezuela, afinal tinham razão: por causa de um socialista, Portugal passa a ser um país em que, tal como na Venezuela, se idolatram ditadores. Não deve ser fácil, para um salazarista, ver-se na posição de ter de agradecer a um socialista uma linda homenagem ao doutor Salazar.
Do lado socialista também haverá confusão, de certeza. O PS assinalou – e bem – que a escolha de André Ventura para a autarquia de Loures era significativa do posicionamento ideológico de Passos Coelho, pelo que agora irá – até aposto – assinalar que a manutenção da confiança política no autarca de Santa Comba é significativa do posicionamento ideológico de António Costa. Também deste ponto de vista, a criação de um Museu de Salazar é extremamente pedagógica.»
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Lá vai o português
«Lá vai o português, diz o mundo, quando diz, apontando umas criaturas carregadas de História que formigam à margem da Europa.
Lá vai o português… lá anda. Dobrado ao peso da História, carregando-a de facto, e que remédio – índias, naufrágios, cruzes de padrão (as mais pesadas). Labuta a côdea do sol-a-sol e já nem sabe se sonha ou se recorda. Mal nasce deixa de ser criança: fica logo com oito séculos.
No grande atlas dos humanos talvez figure como um ser mirrado de corpo, mirrado e ressequido, mas que outra forma poderia ele ter depois de tantas gerações a lavrar sal e cascalho? Repare-se que foi remetido pelos mares a uma estreita faixa de litoral (Lusitânia, assim chamada) e que se cravou nela com unhas e dentes, com amor, com desespero, ou lá o que é. Quer isto dizer que está preso à Europa pela ponta, pelo que sobra dela, para não se deixar devolver aos oceanos que descobriu, com muita honra. E nisto não é como o coral que faz pé firme num ondular de cores vivas, mercados e joalharia; é antes como o mexilhão cativo, pobre e obscuro, já sem água, todo crespo, que vive a contra-corrente no anonimato do rochedo. (De modo que quando a tormenta varre a Europa é ele que a suporta e se faz pedra, mais obscuro ainda).
Tem pele de árabe, dizem. Olhos de cartógrafo, travo de especiarias. Em matéria de argúcias será judeu, porém não tenaz: paciente apenas. Nos engenhos da fome, oriental. Há mesmo quem lhe descubra qualquer coisa de grego, que é outra criatura de muitíssima História.
Chega-se a perguntar: está vivo? E claro que está: vivo e humilhado de tanto se devorar por dentro. Observado de perto pode até notar-se que escoa um brilho de humor por sob a casca, um riso cruel, de si para si, que lhe serve de distância para resistir e que herdou dos mais heróicos, com Fernão Mendes à cabeça, seu avô de tempestades. Isto porque, lá de quando em quando, abre muito em segredo a casca empedernida e, então sim, vê-se-lhe uma cicatriz mordaz que é o tal humor. Depois fecha-se outra vez no escuro, no olvidado.
Lá anda, é deixá-lo. Coberto de luto, suporta o sol africano que coze o pão na planície; mais a norte veste-se de palha e vai atrás da cabra pelas fragas nordestinas. Empurra bois para o mar, lavra sargaços; pesca dos restos, cultiva na rocha. Em Lisboa, é trepador de colinas e de calçadas; mouro à esquina, acocorado diante do prato. Em Paris e nos Quintos dos Infernos topa-a-tudo e minador. Mas esteja onde estiver, na hora mais íntima lembrará sempre um cismador deserto, voltado para o mar.
É um pouco assim o nosso irmão português. Somos assim, bem o sabemos.
Assim, como?»
José Cardoso Pires, E Agora, José ?, 1977.
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Bem-vindos ao centro interpretativo do estado novo
a minha avó era analfabeta, tal como os seus quatro irmãos. teve dois filhos de pai incógnito. a minha mãe fez a terceira classe, após o que veio ainda criança para lisboa para servir numa casa. conheceu o meu pai, que era um intelectual: teve direito a completar o quarto ano. a vida dele dava um livro, que não cabe aqui. chegaram a viver seis, sete, na mesma casa com dois quartos. dividiam-se as despesas, as refeições. não se metiam em política, bastava-lhes o medo do futuro e do passado, o medo do regresso da fome, medo esse que ainda verteu para os filhos. eu, nascido em liberdade, ainda dou um beijo num pão que tenha de deitar para o lixo. não consigo evitá-lo. graças à antítese de tudo o que representava esse tempo, tenho hoje uma vida de privilégio. é escusado gastarem dinheiro em obras e campanhas. o museu já está de pé na vida de muitos (demasiados) de nós.
sejam bem-vindos ao centro interpretativo do estado novo.
Pedro Vieira no Facebook
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“Take back control” para quem?
«Há excelentes argumentos democráticos contra o que é hoje a União Europeia. Quem não se choca ao ver não eleitos com o poder de vetar Orçamentos de Estado aprovados por deputados não acredita na democracia parlamentar. Quem não se incomoda ao ver a União destruir as suas próprias encenações pseudodemocráticas, quando promove um debate entre supostos candidatos a presidentes da Comissão Europeia sem que nenhum deles seja depois escolhido, gosta de ser tomado por tonto. As falhas democráticas da UE são tão grosseiras e nascem de equívocos tão profundos sobre a capacidade de elites vanguardistas construírem em gabinetes democracias e povos que qualquer democrata exigente tem de ser, no mínimo, eurocrítico.
Qualquer pessoa que tenha assistido ao debate sobre o Brexit, em que ao discurso do medo perante a imigração se respondeu com o discurso do medo perante as consequências da saída, sem restar nada de positivo para defender, sabe que nunca foi a questão democrática que esteve em cima da mesa. E podia ter sido. Não faltava assunto, atropelo e perigo vindo de instituições dominadas por burocratas e por políticos que fogem ao escrutínio democrático. O mote de um discurso eurocético democrático até podia ser o mesmo que foi usado pelos xenófobos: “Take back control”. Mas isso era se o objetivo fosse devolver ao povo o controlo das suas vidas, o que implica o controlo da soberania democrática, seja lá a escala em que a política se faz. As mentiras da campanha e o discurso que escolheu os imigrantes como inimigos deixaram claro que essa não era a questão. Esse não era o controlo. Essa não era a soberania.
Para quem tivesse dúvidas sobre a irrelevância de qualquer preocupação democrática de Boris Johnson, tudo ficou mais evidente esta semana. O seu primeiro gesto não foi devolver aos povos do Reino Unido o poder sobre o seu destino. Foi tirar-lhes esse controlo. A suspensão do Parlamento, como atalho para tentar tornar inevitável um Brexit sem acordo, deixa claro que Boris não queria devolver o controlo aos britânicos, queria ter ele o controlo sobre os britânicos. Toda a diatribe de Nigel Farage e do próprio Boris Johnson contra os atropelos aos valores democráticos e parlamentares, que se não saísse de bocas tão impróprias até poderia ser subscrita por verdadeiros democratas, fica agora exposta como puro cinismo.
Boris Johnson não respeita mais o Parlamento britânico do que qualquer burocrata sentado em Bruxelas. Respeita menos. Num país que não tem uma Constituição escrita, o mais relevante não é se a coisa é legal ou ilegal, assim como o mais relevante nos atropelos ao espírito democrático por parte das instituições europeias não é o que está escrito nos tratados. É a política. E ficou claro o que quer Boris Johnson.
Disse, e não me arrependo, que ele é o melhor primeiro-ministro para liderar o Brexit: porque é quem o defendeu que tem o dever de o aplicar. Espero que as instituições do Reino Unido sejam suficientemente firmes para o impedir de seguir qualquer atalho. É respeitando as regras democráticas que Boris terá de percorrer o caminho que propôs aos britânicos. Sem recorrer aos mesmos estratagemas, em versão piorada, que tão violentamente criticou na Europa. Não queria devolver o controlo ao povo? Pois o povo é legitimamente representado pelo Parlamento que lhe deu a maioria para governar. Custa governar com esta contrariedade democrática? Claro. Mais do que dirigir uma campanha demagógica.»
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29.8.19
Museu de Salazar aka «Centro Interpretativo do Estado Novo» (2)
Estou convencida de que não chegará a existir, mas João Abel Manta poderia fornecer algum material para encher as paredes da escola primária do menino António, com imagens daqueles que ele tão bem tratou durante décadas.
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Portugal, 2019
«"Aqueles que aceitam ficar nesta situação (em parques de campismo) pensam que a situação será transitória. Se calhar é, mas o nosso turismo está cada vez menos sazonal", conta a sindicalista Josefa Lopes. E o que seria uma alternativa temporária torna-se mesmo uma situação permanente.»
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Tempos excepcionais (mas não estes)
«Numa das suas dissertações magistrais sobre Maquiavel, o Professor João Bettencourt da Câmara (1948-2017) relembrava que, entre aqueles que, ao longo dos séculos da Civilização se têm dedicado ao pensamento filosófico e científico, houve sempre uma predisposição para julgarem os “seus” tempos de excepcionais na história das relações internacionais e dos povos. Há, efectivamente, períodos de absoluta anormalidade sistémica, sendo que todos os outros momentos, aqueles que compõem a linha de continuidade histórica, não são mais do que o comportamento natural do sistema internacional, em constante estado de tensão e conflito.
Considero que muitos daqueles que, constantemente, se apresentam à opinião pública como descodificadores dos tempos supostamente extraordinários que eles próprios dizem estar a viver, revelam um esquecimento comprometedor ou selectivo da História. Esses “intérpretes”, que em vários fóruns não se cansam de repetir, a cada ano que passa, aquilo que consideram ser momentos únicos e raros no percurso da história política da Humanidade, constroem um raciocínio baseado na omissão ou desconhecimento de acontecimentos, alguns deles recentes, resultante de formatações intelectuais ou de agendas ideológicas que em nada têm a ver com uma análise científica e rigorosa das dinâmicas sociais e políticas.
Por estes dias, há uma banalização do critério de excepcionalidade na classificação dos acontecimentos dos Estados e das lideranças, que ignora, parcial ou completamente, o pensamento criado, os debates gerados, a doutrina produzida, os sobressaltos sociais e conflitos políticos que determinadas épocas ou períodos provocaram no passado. Para estes novos “profetas”, tudo é perigosamente novo num mundo em constante confrontação, com fenómenos que só eles compreendem e sabem explicar. No tempo em que vivem e comentam, neste nosso tempo, portanto, tudo é absolutamente extraordinário, tudo é inequivocamente ameaçador.
Trump, as migrações, Johnson, os populismos, os extremismos, o Brexit e o fim da UE, os nacionalismos, as fake news, por diante… Tudo isto é inédito e único, porque, para estas pessoas, agora, sim, estamos próximos do Apocalipse. É como se fizessem tábua rasa dos dramáticos e sistémicos acontecimentos que ao longo dos séculos foram fazendo parte da evolução das comunidades e dos sistemas políticos. É como se ignorassem o facto de os nacionalismos se terem expressado com toda a sua força no século XIX ou que a História dos povos, desde a Antiguidade, tenha produzido todo o tipo de carniceiros e ditadores. Ou então, é como se menorizassem o apogeu da ascensão dos extremismos e fanatismos no século XX, provocando milhões de mortos e um rasto de destruição.
Veja-se, por exemplo, o caso europeu. Basta recuar alguns anos, até ao período de Guerra Fria, e perceber o que era a vivência por detrás da Cortina de Ferro e a ameaça constante da destruição nuclear. Ou, então, mais recentemente, relembrar as atrocidades que se viveram nos Balcãs no início dos anos 90. Por mais crises do euro, Brexits, Orbáns ou Salvinis que a Europa agora tenha, nunca o Velho Continente – dentro de um quadro de análise que tenha em consideração uma linha temporal considerável – viveu tamanha estabilidade e prosperidade numa área geográfica tão abrangente. Das Flores a Moscovo, nunca a Europa esteve tão perto daquilo que é o sonho da “paz perpétua”.
Na altura em que escrevia este texto, Rui Tavares, no seu habitual espaço de opinião no PÚBLICO, concretizava milimetricamente essa tal perspectiva da excepcionalidade do seu (meu) tempo. Numa abordagem legítima, diga-se, Rui Tavares escrevia o seguinte a 21 de Agosto:
28.8.19
Museu de Salazar aka «Centro Interpretativo do Estado Novo» (1)
Estou convencida de que não chegará a existir, mas João Abel Manta poderia fornecer algum material para encher as paredes da escola primária do menino António com os seus actuais seguidores.
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MUSEU de SALAZAR, NÃO! - Informações
Fui hoje contactada por um jornalista do Jornal do Centro (de Viseu, distrito a que pertence Santa Comba Dão), a propósito da Petição de que fui uma das subscritoras.
Fica AQUI a notícia, actualizada depois das minhas declarações, bem como a gravação de excertos do que eu disse.
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Não tratem o PCP como um urso de peluche
«A afirmação da entrevista de António Costa que tem consequências mais graves não é a exibição da sua animosidade contra o Bloco de Esquerda nem a demonstração da volúpia da maioria absoluta. É evidente que o PS definiu este tripé e não sai dele: exigir maioria absoluta, elogiar o PCP, atacar o Bloco. Com franqueza, tudo isso já se sabia. Não tinha sido tão esplendorosamente gritado aos sete ventos, mas era segredo de polichinelo e, em todo o caso, nesta entrevista só aparece de novo o frenesim político, ou a adrenalina eleitoral. Foi demais, como se viu. Costa levou três dias a justificar-se, o que é prova provada de que meteu o pé na argola. Mas as frases que, pelo contrário, demonstram uma estratégia mais fria, são as que se referem ao PCP, sob o manto diáfano de elogios desbragados.
Há quem, anunciando intimidade com os sentimentos profundos do primeiro-ministro, explique que se trata dos seus amores antigos, de um respeito histórico e até de uma devoção filial. Disso nada tenho a comentar. Ainda me surpreende que se utilizem conversas pessoais ou, pior ainda, simples interpretações psicologizantes, para analisar a ação pública de políticos profissionalíssimos que sabem que, neste negócio, o que parece é, ou que tudo o que dizem também é lido pelo significado literal e pelas implicações evidentes. A amizade entre o comentador e o político não devia dar carta de alforria para o justificacionismo.
O facto factual é que a geringonça é o primeiro caso de uma aliança negociada e assinada entre Costa e os partidos de esquerda, ressalvadas algumas manobras de curto alcance que fez no passado. O certo é que, quaisquer que fossem os seus amores e desamores íntimos, o atual primeiro-ministro foi candidato em Loures para tentar vencer uma maioria PCP e, mais tarde, enquanto autarca em Lisboa, não é conhecido nenhum pacto continuado com aquele partido, ao contrário do que acontecera com Jorge Sampaio. Fez o que achava que cumpria a sua escolha política e deve ser respeitado por isso. Assim, essa história de devoção mútua, agora confabulada, é uma ficção, injusta para o socialista (social-democrata desde muito jovem, como ele próprio explica com graça), que lutou sempre pelas suas cores, e falsa para o PCP, que tratou da sua vida.
Ora, o elogio do primeiro-ministro ao PCP tem outra leitura. Não é um estado de alma. É uma estratégia, aliás explícita: apresentar o PCP como um partido acessível e manejável, cordato e orientável. Fá-lo por duas razões também evidentes. A primeira é friamente instrumental, sugerindo um contraste com o Bloco, que seria rebelde. A segunda é criar uma ponte com o eleitorado do PCP, ou pelo menos limitar a sua área de expansão potencial. Essa estratégia foi prosseguida meticulosamente ao longo do último ano, nas negociações do Orçamento, nos debates quinzenais, até na questão da Lei de Bases da Saúde quando, com algum descaramento, o Governo assegurava (falsamente, ao que se sabe) que tinha o acordo do PCP para incluir na lei as parcerias público-privado. Não foi um arroubo na entrevista ao Expresso, tem pelo menos um ano que esta manobra é prosseguida meticulosamente.
Se isto vai ter um efeito eleitoral facilitando a votação no PS, ou prejudicando o PCP, está ainda por ver. Teve esse impacto nos processos eleitorais desde 2015, mas é tudo menos certo que agora se repita, estas eleições têm outro alcance. Há no entanto um efeito que merece atenção: estes elogios desvalorizam o sentido do discurso do PCP e pretendem torná-lo estranhamento ambíguo. Sempre que Jerónimo de Sousa enunciar a sua crítica dura ao Governo ou aos limites da ação do PS, às suas alianças com a direita na lei laboral, às insuficiências do programa económico ou à submissão às regras europeias, Costa responde, com condescendência, qualquer coisa como que “eu adoro a confiabilidade do PCP”. O subtexto é poderoso, sugerindo que todo o discurso crítico é um biombo e que, no fundo, o PCP não constitui uma alternativa e é por isso apreciado em S. Bento.
Tratar o PCP, deste modo, como um urso de peluche, é um insulto. E quem o faz sabe que é um insulto. Mais, é mesmo uma forma de agressividade que pretende agir no debate interno daquele partido. Vale a pena por isso lembrar a história. Jerónimo de Sousa foi eleito secretário-geral do PCP substituindo Carlos Carvalhas, depois de um período que agora a historiografia oficial do partido designa por “desvio de direita”. Houve nisto uma evidente injustiça, na opinião de quem assina estas linhas, dado que Carvalhas, sempre fiel ao seu partido e inicialmente com o apoio de Cunhal (mais tarde retirado com fragor, como lembrou Domingos Lopes em entrevista ao “Público”), ficou acusado de inaugurar um processo de diálogos à esquerda, o “Novo Impulso”, que abriu o PCP a políticas unitárias – e a esquerda que não tem política unitária não tem caminho. Mas a história é como é, e Jerónimo triunfou claramente com o regresso a uma ortodoxia de autorreferência partidária. Talvez se possa intuir que só um dirigente nestas condições poderia ter conduzido este partido a um acordo como o da geringonça. Mas o preço é a existência de tensões internas e de resistências, que não as anedoticamente enunciadas por alguma imprensa, antes as que são expressivas e portanto pouco se manifestam em público, e que são radicalizadas por esta abordagem de Costa.
A estratégia condescendente, ou do urso de peluche, é prejudicial para toda a esquerda por isto: divide em vez de unir, cria animosidade partidária, dificulta discussões centradas sobre objetivos sociais e, acima de tudo, pretende enfraquecer um dos pilares importantes das respostas das esquerdas. Como aqui abundantemente defendi, continuo a pensar que medidas de esquerda exigem a ação tanto do Bloco como do PCP. São precisos os dois conjugados para melhorar a relação de forças com o Governo. E, se a estratégia do urso de peluche resultar, os custos sociais serão profundos, em particular nos riscos de desagregação sindical ou de marginalização de sectores sociais que se reconhecem numa longa história política. Se é isto que fica da entrevista, é um sinal de alarme.»
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27.8.19
MUSEU de SALAZAR, NÃO! - Informação sobre a Petição
Entendeu-se desactivar a petição, por ter cumprido o principal objectivo: fazer chegar ao Primeiro-Ministro o repúdio de cerca de 18 000 antifascistas, pela criação de um espaço/museu/memorial em Santa Comba Dão, na expectativa de que se pudesse travar o que, desde há meses, configurou um aberto ataque à Democracia.
Até ao momento, ainda não obtivemos qualquer reacção do Primeiro-Ministro, mas regozijamo-nos pelo eco que este abaixo-assinado teve na Comunicação Social e em muitos cidadãos de renome, que entenderam juntar a sua voz à voz destes muitos milhares de antifascistas, e em apoio dos 204 ex-presos políticos, dando-lhes assim maior visibilidade. Muito em breve, enviaremos ao Primeiro.-Ministro as quase três mil assinaturas que vieram juntar-se aos 15 mil nomes do primeiro envio.
Tudo faremos para que esta iniciativa da Câmara Municipal de Santa Comba Dão não vá adiante, mesmo que sob a capa de um Centro Interpretativo do Estado Novo, e apelamos a todos os democratas para que prossigam o combate contra este projecto de reabilitação do ditador Salazar e da sua ditadura.
Fascismo Nunca Mais!
Em 26 de Agosto de 2019
Pelos promotores da petição:
Albano Nunes
Joana Lopes
Maria do Rosário Gama
Miguel Cardina
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A Amazónia não é do Brasil, é do mundo. E o mundo tem de travar Bolsonaro
«A imagem de São Paulo às escuras, às 15h, parece o retrato de uma distopia. Para além dos fenómenos climatéricos que tornaram tudo o que era extraordinário banal, a escuridão explicava-se pela fuligem que vem das queimadas na Amazónia, mais de três mil de quilómetros a norte – uma Europa quase inteira. Como se a natureza quisesse explicar aos brasileiros que o que está a ser feito existe mesmo. Não é uma “fake” no WhatsApp.
Os quase oitenta mil incêndios registados na Amazónia este ano são um recorde absoluto e correspondem a um aumento de 83% em relação ao mesmo período do ano passado. Não foi Bolsonaro, feito Nero, que pegou fogo ao pulmão do mundo. Mas ninguém tem dúvidas de que há uma relação entre estes fogos e o saque para mais terra para agricultura e pastagem. Aliás, os municípios onde deflagram mais fogos são os mesmos onde a desflorestação tem sido mais intensa. A mão criminosa é evidente.
Desde que chegou ao poder, a mensagem de Bolsonaro foi muito clara: é para desflorestar a Amazónia que o Estado nada fará. E a desflorestação, que tem sido uma constante apenas drasticamente reduzida no primeiro mandato do Governo de Dilma Rousseff, aumentou 278% em relação ao ano passado. O que Bolsonaro disse foi o mesmo que disse à polícia: podem matar que não serão investigados. Que disse a quem quer expulsar os indígenas: podem atacar que ninguém os defenderá. Que disse aos homofóbicos: podem espancar que ninguém quer saber. Bolsonaro não precisa de ser criminoso, basta-lhe deixar claro que o crime não encontrará oposição do Estado. Sobretudo quando o crime vem de um dos três poderosos pilares do poder brasileiro: o boi, a bala ou a bíblia. E o “boi”, cego e ganancioso, acha que a Amazónia tem demasiado valor económico imediato para ser preservada.
Logo na formação do Governo ficou claro que a política ambiental estaria ao serviço da agropecuária. O Presidente começou por tentar fundir o Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura. Perante o coro de criticas, acabou por mantê-los separados, mas esvaziando de poderes a pasta ambiental, transferindo de um ministério para outro o Serviço Florestal Brasileiro. Perante os avisos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) sobre os altíssimos níveis de desflorestação, com imagens de satélite para o ilustrar, Bolsonaro acusou o presidente da prestigiada instituição científica de estar ao serviço das ONG e tratou informação recebida como “fake news”. No dia 21 publicou um edital para a contratação de uma empresa privada – mais obediente se quiser manter o negócio – para monitorizar o desmatamento da floresta. Com a fuligem a escurecer o céu de São Paulo e as imagens dos incêndios, tornou-se impossível desmentir os factos. Mas Bolsonaro não desarma: acusa as ONG que protegem a Amazónia de atear os fogos como ato de propaganda.
A comunidade internacional tem-se organizado e defendido o direito de ingerência quando estão em causa interesses globais. Na realidade, se formos rigorosos, a comunidade internacional tem sido organizada e defendido o direito de ingerência de alguns países sobre outros quando estão em causa interesses económicos das principais potências. Seguro é que não há nenhum recurso que tenha justificado intervenções musculadas com a relevância de 20% do ar que respiramos e com os efeitos climáticos que estes incêndios têm. Se o ar se vendesse já havia tropas de uma qualquer coligação internacional a chegar a Brasília. A Amazónia não é o pulmão do Brasil, é o pulmão do mundo à guarda do Brasil. Por isso, o mundo tem o dever de ajudar o Brasil a preservar o que tem. Com fundos, meios e saber. Era o que fazia a Alemanha e a Noruega até Bolsonaro deixar claro que não tencionava dar atenção aos avisos do INPE. Quando fecharam a torneira de milhões para o Fundo Amazónia, Bolsonaro respondeu com a sua infantilidade costumeira. À Alemanha disse: “Eu queria até mandar um recado para a senhora querida Angela Merkel, que suspendeu 80 milhões de dólares para a Amazónia: ‘pegue essa grana e refloreste a Alemanha, tá ok? Lá está precisando muito mais do que aqui”. E, confundindo a Dinamarca com a Noruega, acusou os noruegueses de caçarem baleias nas ilhas Faroé. É nas mãos deste cretino que estamos.
Não defendo, como fizeram noutras ocasiões tantos que hoje demonstram simpatia por Bolsonaro, qualquer intervenção militar. Defendo medidas diplomáticas, comerciais e políticas firmes que digam a Bolsonaro que ou age para proteger o que é de todo o planeta ou todo o planeta o deixará totalmente isolado até cair. Nisto, estou mais com Macron do que com Costa. Se Bolsonaro estiver disponível para o fazer, os países mais ricos têm o dever de contribuir para a preservação daquele bem comum. Se não, têm o dever de agir. Bolsonaro já não está “apenas” a atacar a democracia brasileira, os indígenas, o Estado de direito ou os homossexuais. Está a atacar-nos a todos.»
Daniel Oliveira
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26.8.19
26.08.1914 – Julio Cortázar
Julio Cortázar nasceu na embaixada argentina em Ixelles, Bruxelas, poucos dias depois de as tropas alemãs terem entrado na cidade. Com três anos foi para a país de origem dos pais, de onde viria a sair com 37, em oposição à ditadura. Instalou-se então em Paris e foi lá que viveu até morrer.
Inovador como poucos, mestre no conto curto, iniciou uma nova forma de fazer literatura latino-americana e com ela influenciou muito e muitos. «Blow-up», de Michelangelo Antonioni, baseia-se num dos seus contos: As Babas do Diabo.
Em jeito de homenagem, fica aqui um pequeno texto seu:
Aceitar / Não aceitar
«Creio que, desde muito pequeno, a minha infelicidade e, ao mesmo tempo, a minha felicidade, foi não aceitar as coisas com facilidade. Não me bastava que explicassem ou afirmassem algo. Para mim, ao contrário, em cada palavra ou objecto começava um itinerário misterioso que às vezes me esclarecia e às vezes chegava a estilhaçar-me.
Em suma, desde pequeno, a minha relação com as palavras, com a escrita, não se diferencia de minha relação com o mundo no geral. Eu pareço ter nascido para não aceitar as coisas tal como me são dadas.»
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Bolsonaro já perdeu a cruzada contra o meio ambiente
«Em sua cruzada contra o meio ambiente, o presidente Jair Bolsonaro já perdeu. O que acaba de ocorrer —as queimadas no Brasil como principal notícia no mundo— é uma derrota por nocaute do discurso a Amazônia é nossa. Domesticamente, o presidente também perdeu apoio de líderes ruralistas, que temem as sanções comerciais da Europa.
Seu pronunciamento em rede nacional, feito ontem à noite, lembrou aquelas imagens do soldado entrincheirado levantando a banderinha branca; a batalha perdida. Bolsonaro rendeu-se às críticas e declarou “seu profundo amor e respeito pela Amazônia.” E mais: prometeu tolerância zero com o desmatamento ilegal.
Porém, o turbilhão de críticas a seu discurso antiambiental pode estar longe de acabar. As queimadas vão continuar, ou até piorar, em setembro —historicamente, o mês mais seco na Amazônia—. Em outubro, o sínodo dos bispos da Pan-Amazônia, convocado pelo Papa Francisco, deve trazer mais críticas a Bolsonaro.
Depois disso, em novembro, virão os dados finais do INPE sobre o desmatamento. E, aí, preparem-se: tudo indica que estes serão os piores números em muitos anos.
É interessante notar que desde que ensaiou os primeiros ataques ao meio ambiente, Bolsonaro encontrou uma reação mais forte do que esperava. Queria acabar com o Ministério do Meio Ambiente? Teve que recuar, seguindo conselho da própria bancada ruralista. Falou que ia deixar o Acordo de Paris? Ouviu do próprio ministro Ricardo Salles que não era bom negócio.
Agora os golpes mais fortes chegaram. Na semana passada, a Alemanha e a Noruega anunciaram o congelamento de suas doações ao Fundo Amazônia. Macron chamou Bolsonaro de mentiroso e o fim de semana promete ser quente com os líderes da França, Alemanha, Reino Unido e Canadá malhando o Brasil na reunião do G7.
Ontem, milhares de pessoas em todo mundo saíram às ruas para protestar contra as chamas na Amazônia. Em quase todas as capitais do país houve panelaço. Disso Bolsonaro pode se orgulhar: de ser talvez o primeiro presidente a mobilizar uma resistência tão vocal contra o avanço do desmatamento.
Mas como isso vai mudar o que está acontecendo nas matas e campos da Amazônia? Com Madonna, Cristiano Ronaldo, Leonardo Di Caprio e o resto do mundo tuitando #PrayforAmazonia pode parecer que finalmente os ambientalistas ganharam a luta pelos corações e mentes. No entanto, é difícil imaginar que o pecuarista, o assentado ou o madeireiro deixarão de limpar seu pasto, fazer a roça e puxar a madeira porque algum gringo está chiandono Instagram.
Na prática, o modelo econômico para a Amazônia representado pelo Governo Bolsonaro está ganhando. O crescimento vertiginoso das queimadas na região Norte —145% até 20 de agosto— está provando aquilo que o sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter) já havia indicado: forte pressão sobre a floresta. No caso dos alertas, o presidente atacou o INPE, desqualificou os dados e demitiu o diretor do instituto. Já para se livrar da responsabilidade de seu Governo nas queimadas, acusou ONGs e governadores.
As crescentes derrubadas nunca foram invisíveis aos satélites, e apenas agora Bolsonaro prometeu combate ao crime ambiental. De fato, a devastação, cuja expressão máxima é a fumaça tomando conta do continente, não vai parar se o Ibama não voltar a fiscalizar e multar. O roubo de madeira, a grilagem de terras públicas, o garimpo ilegal e a invasão de terras indígenas são os grandes negócios do momento na Amazônia.
Acima de tudo, o aumento do desmatamento significa que o Brasil começa a desrespeitar o Acordo de Paris. Está previsto em lei que até o ano que vem deveríamos reduzir em 80% as emissões do desmatamento em relação a uma média de 2005 a 2012. Estávamos no caminho para de fato provar ao mundo que o Brasil sabe cuidar de suas florestas. Mas este golaço agora parece improvável.
Com a reversão da trajetória positiva do combate ao desmatamento (iniciada ainda sob o Governo de Dilma Rousseff em 2012), a Amazônia pode deixar de ser um grande sorvedouro de gás carbônico e transformar-se, com suas gigantescas queimadas, em uma grande fonte de poluentes. Mais gases de efeito estufa vindos da floresta acabam com nossas chances contra o aquecimento global. Neste caso, todos perderemos.»
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25.8.19
Não somos analfabetos, dr. António Costa
Eu não sei se Catarina Martins leu a entrevista toda, mas eu fi-lo, de fio a pavio, e aprendi a ler em pequenina, quando António Costa ainda nem sequer em projecto existia.
E confirmo que as frases dedicadas ao BE, que desde ontem circulam em tudo o que é OCS, inclusive em TVs com imagem e som, não foram indevidamente tiradas de qualquer contexto. Reflectem exactamente o que o primeiro-ministro quis dizer e que disse.
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A libertação de Paris
Entre 19 e 25 de Agosto de 1944, a libertação de Paris pôs fim a quatro anos de ocupação.
Charles de Gaulle, chefe do Governo Provisório, fez um discurso à população, que ficou célebre e imortalizado em algumas frases: «Paris outragé! Paris brisé! Paris martyrisé! Mais Paris libéré!».
E há também canções «eternas»:
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Matar as greves sem mudar a lei?
«Em Portugal (mas não só aqui), a Ryanair não cumpre a lei. Não é de agora. Já no ano passado houve uma greve com a reivindicação elementar e singela que agora se repete: a Ryanair tem de cumprir a lei portuguesa. Depois da greve, em outubro passado, a Assembleia da República aprovou uma resolução proposta pelo Bloco para que o Governo interviesse nesse sentido – garantir que a lei portuguesa se cumpre, promover um contrato coletivo, estabelecer uma base salarial, fiscalizar as condições de trabalho. Em novembro de 2018, um protocolo assinado entre a empresa e o sindicato assumia que esse compromisso seria cumprido em fevereiro deste ano. Até agora, nada. O que se esperaria das autoridades? Que obrigassem a empresa a cumprir a lei. O que fez o Governo? Nada que se visse. A não ser, esta semana, proteger a empresa na manutenção da selvajaria laboral, ao esvaziar o impacto da greve por via da convocação de serviços mínimos numa empresa privada que não desempenha necessidades sociais impreteríveis.
Na verdade, estamos a assistir, com esta luta na Ryanair, a mais um episódio de um processo em curso com consequências importantíssimas para o mundo do trabalho: o redesenho, socialmente regressivo e politicamente autoritário, da lei da greve por parte do Governo. Esta reconfiguração escapa à alteração da lei escrita para aprofundar, sem debate nem validação democrática, a mudança efetiva da lei na prática. Fá-lo por via da banalização da definição de “serviços mínimos” maximalistas e do recurso à requisição civil. Fá-lo pelo esvaziamento dos efeitos económicos da greve através da completa subordinação do seu exercício aos supostos “imperativos económicos”, nomeadamente no setor do turismo. Fá-lo pelo empenhamento governamental no espaço público com vista a estabelecer como evidentes ideias disparatadas como a de que “durante uma greve não se negoceia” ou que deve poder fazer-se “requisições civis preventivas” antes mesmo de se saber se os serviços mínimos são ou não cumpridos. Fá-lo mobilizando o aparelho coercivo do Estado a favor das entidades patronais – o mesmo aparelho que não é mobilizado, por exemplo, para garantir a efetividade da legislação laboral que a Autoridade para as Condições do Trabalho deveria garantir. Este redesenho da greve, que foi além do que a Direita conseguiu fazer no passado, acontece depois de uma legislatura cujo final ficou marcado pela aliança entre o PS e a Direita para manter no Código de Trabalho o desequilíbrio nele inscrito durante o período austeritário, acrescentando-lhe medidas precarizadoras de constitucionalidade muitíssimo duvidosa (como o alargamento do período experimental). Não vale a pena fingir que não vemos.
O segredo do negócio da Ryanair – para voltar ao caso concreto – há muito que é conhecido. Não passa por nenhuma paixão pela democratização da mobilidade dos cidadãos. Os milhões de lucros da companhia aérea “low-cost” explicam-se por uma estratégia agressiva para reduzir ao máximo os custos da empresa e externalizar até ao limite os riscos para os seus trabalhadores (pelo degradação radical das condições de trabalho e pelo esmagamento dos sindicatos), para o Estado (contornando normas laborais, padrões ambientais e de segurança e chantageando os poderes públicos para obter apoios sob a forma de “incentivos ao turismo”) e para os clientes (pondo-os a realizar tarefas que seriam responsabilidade da companhia, como o transporte de bagagem, cobrando tudo o que for possível por fora, tendo Michael O’Leary sugerido, por exemplo, que os passageiros gordos passassem a pagar mais bilhete em função do peso, que se pagasse à parte a utilização das casas-de-banho do avião, ou que os pilotos simulassem maior turbulência durante os voos para a companhia vender mais bebidas a bordo).
Do ponto de vista laboral, a Ryanair é repugnante. Não há salário-base (são os chamados “ordenados de base zero” de que a empresa se orgulha), os horários não estão previamente fixados e os trabalhadores só recebem a partir do momento em que o avião levanta vôo, deixando de de receber quando ele aterra (ou seja, solicita-se uma permanente disponibilidade não paga, as escalas sabem-se ao dia, não se pagam horas extra e multiplica-se o tempo trabalho não remunerado). Quem trabalha na Ryanair não têm direito a água potável (tem de comprar as suas garrafas de água para usar no período de trabalho, tal como a comida), não goza os 22 dias de férias que a legislação portuguesa prevê como obrigatórios e irrenunciáveis, não vê os direitos de parentalidade respeitados. Para maximizar lucros, a empresa transforma ainda os e as assistentes de bordo numa espécie de promotores de produtos e agentes de vendas (com a famosa história de a sua avaliação depender do número de raspadinhas que vendem durante a viagem). O abuso é a regra e a lei portuguesa é olimpicamente ignorada.
É por isto que os trabalhadores da Ryanair estão em greve. Têm toda a razão em fazê-lo. Ao agir tendo como preocupação fundamental dar conforto à empresa e impedir que a greve se faça sentir, o Governo revela não apenas a sua escandalosa parcialidade, mas abre um precedente grave para todas as empresas que achem que, em Portugal, a lei não é para cumprir. Sim, as greves perturbam o nosso quotidiano. Mas foram greves que nos trouxeram o fim de semana e as férias pagas, os contratos coletivos e a proteção no desemprego, a assistência pública na saúde e até a democracia política. Estamos mesmo dispostos a deixar que deitem ao lixo esse direito?»
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