23.11.24

Coimbra

 


Detalhes de fachadas Arte Nova com azulejos florais. Coimbra.

Daqui.

Elon Musk, a nossa fantasmagoria

 


«A riqueza do homem mais rico do mundo cresceu 26 mil milhões de dólares – segundo as contas relatadas pelos jornais – no dia em que Trump foi eleito Presidente dos Estados Unidos. Não adianta saber a que quantia estes 26 mil milhões vieram juntar-se porque há um limite a partir do qual as nossas capacidades soçobram e caímos no abismo do irrepresentável. Elon Musk é um titã que desembarcou no nosso tempo para mostrar sem pudor o que é o capitalismo extremo e como o seu arquétipo está para além do humano.

Neste mundo sem deuses, ele apresenta-se e representa-se como uma encarnação pós-humana, um Prometeu sem grilhetas, essa figura da mitologia grega que rouba o fogo aos deuses porque tem uma vontade de poder ilimitada. A nossa imaginação é insuficiente para poder formalizar a grandeza da sua fortuna. Podemos pensá-la, mas ela ultrapassa todas as medidas da nossa experiência sensível. Musk veio exemplificar aquilo a que Kant designou como o sublime matemático: “O que é absolutamente grande, para além de toda a comparação.”»


Teremos sempre Paris

 


O que se está a comemorar não é o 25 de Novembro...

 

«… é mais aquilo que traduz esta capa do Diabo, a ideia de que a liberdade e a democracia nasceram impolutas apenas no 25 de Novembro de 1975. O 25 de Abril não dera aos portugueses a “verdadeira liberdade”.

Era isto que, em 1974 e 1975, diziam, afirmavam e em função disto actuavam os partidários da ditadura que, de 1926 a 1974, oprimia os portugueses. Estas frases têm implícitas várias afirmações. Uma é de que não falo de “saudosistas” da ditadura, porque a palavra é mole. Eram muito mais que “saudosistas”. E digo oprimir porque, durante 48 anos, os portugueses não mandavam no seu país, naquela que foi a mais longa ditadura da Europa no século XX, com excepção da URSS. Não é pouco, é muito, e a capa do Diabo glorifica esse muito, mistificando o que aconteceu no 25 de Novembro de 1975 para atacar o 25 de Abril.

Há quem vá dizer que uma coisa é o Diabo, outra o “espírito” do 25 de Novembro, que seria o que presidiria às comemorações da Assembleia da República. Infelizmente para a nossa democracia não é verdade.

Começo por perguntar por que razão o 25 de Novembro é comemorado aos 49 anos, quando o 25 de Abril foi aos 50. As datas de comemoração normalmente correspondem a números redondos, e não se percebe a pressa de antecipar um ano a comemoração do 25 de Novembro, a não ser para o colocar no mesmo plano do 25 de Abril, ou, pior ainda, considerar que se pode comparar o seu significado histórico. Está-se a um passo de materializar a posição que está por detrás da capa do Diabo. O resto da capa, o “escapar à ditadura comunista”, também não tem qualquer fundamento histórico.

O 25 de Novembro pode e deve ser comemorado, mas é como ele foi, “como ele foi”, foi sem dúvida importante no processo que, do 25 de Abril à plena democracia, teve várias etapas. O nascimento da nossa democracia, a partir da conquista da liberdade em 25 de Abril, demorou mais ou menos dez anos. Esses anos foram convulsivos, conflituais, mas o que é que se esperava da queda de uma ditadura, que conduzia uma Guerra Colonial, com censura todos os dias, com uma polícia política sem lei, com prisões e repressão, com altas taxas de analfabetismo, emigração em massa e enorme pobreza? Queriam que essa transição fosse “higiénica”, sem pecado? Muito bem, ajudassem a derrubar a ditadura mais cedo, a acabar com a guerra, pagando as consequências, e para isso muitos dos que se queixam do tumulto do pós-25 de Abril, com efeitos trágicos em particular nas colónias, não mexeram uma palha.

O nascimento da democracia teve avanços e recuos e várias etapas que se estendem desde a revolução à derrota do 11 de Março (silêncio), às eleições para a Assembleia Constituinte, à vitória do 25 de Novembro, à vitória da AD, ao fim da tutela militar da democracia e, por fim, à eleição do primeiro Presidente civil.

Nesses avanços e recuos, o 25 de Novembro foi crucial para travar não uma “ditadura comunista” – o PCP continuou no governo e algumas das mais importantes nacionalizações são posteriores a Novembro –, mas sim o risco de um confronto entre fracções militares que se podia transformar numa guerra civil. Aliás, quando se confronta os defensores da versão “diabólica” do 25 de Novembro com as provas da participação comunista num golpe, não passam da “entrevista” de Cunhal a Oriana Fallaci, que qualquer pessoa que conheça o pensamento de Cunhal, com o que se sabe da estratégia do PCP nesses meses e da posição da URSS, sabe que ele não poderia ter dado aquelas respostas. Acresce que, quando confrontada com os desmentidos à sua “entrevista”, Fallaci prometeu divulgar as gravações, o que nunca aconteceu. O PCP tem muitas culpas no cartório no PREC, mas esta não tem.

Na verdade, os derrotados do 25 de Novembro são, a 25, a ala esquerdista ligada ao Copcon, que por razões intrinsecamente militares e corporativas sai à rua, ficando isolada e derrotada. A 26, os derrotados são outros, todos aqueles que queriam ilegalizar o PCP.

A mistificação histórica e política do 25 de Novembro apouca-o, porque o seu significado real justificava uma comemoração digna nos seus 50 anos, em 2025. O problema é que as pessoas a serem homenageadas seriam, com excepção de Jaime Neves – o herói solitário das comemorações “fake” de 2024 –, o Presidente general Costa Gomes, os militares do Grupo dos Nove, que são os mesmos que hoje se recusam a ir a estas comemorações, os seus vivos como Vasco Lourenço ou Sousa e Castro – demasiado “esquerdistas” para os propugnadores das comemorações “diabólicas” –, Ramalho Eanes e, no plano civil, Mário Soares, os seus companheiros da luta da Fonte Luminosa e os homens do PPD, Sá Carneiro e Emídio Guerreiro. Ou seja, tudo gente que merecia a “verdadeira” homenagem, e não a que tem na sua propositura na Assembleia um destacado membro da resistência armada ao 25 de Abril e os membros da direita radical no CDS e no PSD. Vão todos participar numa mistificação histórica, que é ao mesmo tempo uma menorização do valor do 25 de Novembro. Mas os tempos estão para estas coisas, que a prazo se pagam caro.»


N.B. - A capa do «Diabo» de 22.11.2024 está AQUI.

Ainda não perceberam

 



22.11.24

Maurice Béjart morreu há 17 anos

 


Maurice Béjart morreu em 22.11.2007. Tudo é conhecido sobre este grande, enorme, artista, mas eu recordo sempre o primeiro concerto dele a que assisti, em Lisboa, em 6 de Junho de 1968. Quem esteve no Coliseu dos Recreios nesse dia também nunca o terá esquecido.

Dois dias depois do assassinato de Robert Kennedy, veio ao palco no final do espectáculo para afirmar que Robert Kennedy fora “vítima de violência e de fascismo” e para pedir um minuto de silêncio “contra todas as formas de violência e de ditadura”. Com a maior parte dos espectadores de pé, renovaram-se os aplausos, com mais força e mais entusiasmo. Informado do sucedido, Salazar proibiu os espectáculos seguintes e ordenou que Béjart saísse imediatamente de Portugal.

Recorro sempre a um texto que escrevi sobre esse evento num livro publicado poucos meses antes da morte de Béjart.

«Em 6 de Junho morreu Robert Kennedy, vítima de um atentado que tivera lugar dois dias antes. Nessa mesma noite, em Lisboa, Maurice Béjart apresentou o seu «Ballet du XXe. Siècle», no Coliseu dos Recreios absolutamente repleto. Assistimos a um magnífico «Romeu e Julieta». Durante a última cena, ouviu-se gritar, repetidamente, "Façam amor, não façam guerra!". Simultaneamente e em várias línguas, eram lidas notícias sobre lutas, revoltas e injustiças. Foi arrepiante a emoção vivida na sala que se levantou em aplauso prolongado. Béjart veio então ao palco para afirmar que Robert Kennedy fora “vítima de violência e de fascismo” e para pedir um minuto de silêncio “contra todas as formas de violência e de ditadura”. Com a maior parte dos espectadores de pé, renovaram-se os aplausos, com mais força e com mais entusiasmo.

Informado do sucedido, Salazar proibiu os espectáculos seguintes e ordenou que Béjart saísse imediatamente de Portugal. Franco Nogueira cita uma nota distribuída à imprensa pelo Secretariado Nacional de Informação: “Foram dirigidas à juventude exortações derrotistas e tomadas atitudes de especulação política inteiramente estranhas ao próprio espectáculo. Perante a luta que teremos que manter em defesa da integridade nacional, não pode consentir-se que uma companhia estrangeira aproveite, abusivamente, um palco português para contrariar objectivos nacionais.”

Béjart nunca se referiu a Portugal. Mas Salazar era bom entendedor e bastava-lhe menos de meia palavra para perceber – como nós – que Béjart quisera deixar um sinal de solidariedade aos antifascistas portugueses.

Momentos raros como este funcionavam para nós como bálsamo e como estímulo. Ajudavam-nos a não desanimar.» (*)

(*) Joana Lopes, Entre as Brumas da Memória. Os católicos portugueses e a ditadura, Âmbar, 2007, pp. 118-119. Alguns minutos de «Romeu e Julieta»:


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Um pouco mais de azul (18)

 




A América e a "mudança de regime"

 


«Para lá da indignação, há o dever de tentar perceber. Prever o que vai ser o Trump 2.0 é muito arriscado, embora sejam muitos os sinais. Vários autores americanos falam em "mudança de regime". E já não é como antigamente. Agora trata-se de desmantelar a administração federal e criar um regime que merece a etiqueta de "tirania". O Partido Republicano, que Donald Trump controla quase por completo, dispõe da maioria das duas câmaras do Congresso, de um Supremo Tribunal obediente, ou seja, de todos os poderes. Por este caminho, os EUA em breve parecerão um regime de partido único.

Trump não se contenta com isso. Quer "varrer" o sistema judicial, depurar os altos comandos das Forças Armadas ou demolir o Departamento da Educação. Está a fazer nomeações arbitrárias para o futuro Governo. E, mesmo controlando o partido e a Câmara dos Representantes, quer passar por cima do Senado, tentando evitar a audiência de alguns dos escolhidos. O Estado de direito e a separação dos poderes passam a estar tão ameaçados como na Hungria de Viktor Orbán.

A emergência de figuras como o magnata Elon Musk e o futuro vice-presidente J.D. Vance simboliza a abertura de uma "nova era" política: o poder passa a assentar numa nova aliança que combina o conservadorismo radical republicano e a chamada "right-tech", a poderosa, e até agora pouco conhecida, "direita-tech" do Silicon Valley.

É um projecto de fusão do Estado com uma oligarquia económica, de forma a criar uma nova elite governante. Outrora, os grandes "monopólios" influenciavam o poder, por vezes de forma determinante, mas não participavam nele. Não se confunda esta "right-tech" com outros gigantes do novo mundo digital, como Google, Meta, Microsoft ou Apple. Em cerca de 70 "bilionários" que contam no Silicon Valley, só uma vintena apoiou Trump. São minoritários mas, diz um jornalista, são um "grupo de guerreiros, coisa que os outros não são".

Elon Mask será um pioneiro. Dirigirá o famoso DOGE (Department of Government Efficiency), sem participar no gabinete de Trump, para evitar conflitos de interesses. Cabe-lhe a nobre missão de despedir milhares de funcionários federais para "poupar" dois biliões de dólares. Ele não é só o homem mais rico do mundo, tem uma influência geopolítica de que nenhum outro "bilionário" dispõe. Mas não é um caso único. Outros magnatas dispõem igualmente de um poderio sem controlo que acaba por constituir uma ameaça para a democracia. Lamenta o sociólogo francês Olivier Alexandre, do Centro Internet do CNRS: "Em 30 anos, a tech passou da utopia para a distopia."

Entre Thiel e Vance

Por trás desta corrente, há uma eminência parda, Peter Thiel, fundador do PayPal. "Ele explica como as companhias são melhor dirigidas do que os Governos porque têm um único decisor – basicamente, um ditador. Ele é hostil à ideia de democracia", escreve na Time o seu biógrafo, Max Chafkin.

As regulamentações são o inimigo número um. "O progresso tecnológico deve ser continuado sem demoras, sem se preocupar, ou quase, com os potenciais riscos ou os perigos para a sociedade", anota Chafkin. "Esta vontade de desregulamentar, de simplificar a administração, ou até de suprimir agências nascidas depois do New Deal, corresponde às declarações anti-sistema de Trump, a ideia de que é preciso ‘drenar o pântano’."

Num manifesto de 2009, "The Education of a Libertarian", Thiel exprimiu o seu cepticismo sobre a via eleitoral. "Já não creio que a liberdade e a democracia sejam compatíveis." Acrescenta: "Desde 1920 que o aumento considerável dos beneficiários da ajuda social e a extensão do voto às mulheres – dois grupos notoriamente difíceis para os libertários – transformaram a noção de ‘democracia capitalista’ num oxímoro." Outros ideólogos deste mundo são ainda mais extremistas.

O politólogo Damon Linker advertiu, há um ano, no New York Times, que ignorar estes obscuros teóricos é não compreender "o papel dos intelectuais nos movimentos políticos radicais. Estes autores encorajam as elites republicanas e democratas a fazerem coisas que, há anos, eram impensáveis".

Vance é uma espécie de protegido de Thiel, para quem trabalhou e que financiou as suas campanhas eleitorais. Hoje, Vance é o rosto "desta nova direita" que tenta imprimir uma orientação ainda mais radical – em matéria de nacionalismo, da política anti-imigração e do intervencionismo americano – à revolução ideológica de Trump. Financiada em grande parte por Thiel, ela tenta tornar-se maioritária dentro do movimento conservador", escreve no Monde a jornalista Valentine Faure.

Declara ao mesmo jornal Maya Kandel, especialista da sociedade americana: "Esta nova direita virou as costas aos princípios fundadores do Partido Republicano, versão Reagan: comércio livre, abertura à imigração e política externa intervencionista, que eram antes a trilogia do partido." Esta linha é bem expressa no famoso "Projecto 2025".

"Vance é olhado como o seu emissário em Washington", escreve o Washington Post. "Poderá ajudar a transformar a indústria tecnológica na máquina do capitalismo, levando o Governo a alinhar as suas posições ideológicas pelas dos líderes da tecnologia."

Duas notas finais. "As alegações de fascismo encobrem o verdadeiro perigo", previne o historiador Samuel Moyn, da Universidade de Yale. Não regressámos aos anos 1920-1930, quando a ressaca da Grande Guerra produziu os totalitarismos do século XX. Estamos, no século XXI, a viver uma revolução tecnológica com pesados efeitos culturais e políticos. Parece-me mais acertada a palavra 'tirania', que obcecava os "pais fundadores".

Nem todos são pessimistas. Janan Ganesh, colunista do Financial Times, aposta na eleição de um presidente democrata em 2028, após um fracasso do Trump 2.0 e uma redenção política dos democratas.»

Jorge Almeida Fernandes 
Newsletter do Público, 21.11.2024

Melancolia de uma eleição…

 


«Como pôde a mentira, como princípio, a boçalidade, como modo de ser, e uma campanha eleitoral politicamente abaixo de zero triunfar sobre a inteligência e a decência num país como os EUA? Perplexidade semelhante àquela que o triunfo do nazismo na Alemanha provocou: como foi possível um povo que era, então, talvez o mais instruído do mundo, eleger um antigo sem-abrigo das ruas de Viena (um nobody of Vienna) e conferir-lhe o poder que lhe permitiu fazer todo o mal que fez? Várias explicações têm sido propostas para o enigma norte-americano, algumas simplistas e redutoras, mesmo enviesadas. Uma delas é que a alternativa que os eleitores tinham era uma “agenda esquerdista”.


21.11.24

Há sempre mais um vaso

 


Vaso quadrado translúcido, decorado com camafeu de flores, folhas e caules.
Émile Gallé.

Daqui.

20/21.11.1971 – Jazz em Cascais

 


Estive lá e nunca mais esqueci.

21.11.1975 – O juramento no Ralis

 




Ucrânia: último, decisivo e perigoso sprint antes de congelar a guerra

 


«A situação é realmente trágica quando uma figura como Marco Rubio pode ser definida como moderada. Mas a verdade é que, sendo um falcão ao estilo neocon, o novo responsável pela política externa norte-americana não é pró-russo, ao contrário de outros futuros membros da equipa trumpista. Estará mais próximo da tradição de Georg W. Bush do que de Donald Trump. E a sua nomeação não é sinal de corte com a NATO. Não sendo um aliado de Putin, defendeu que Kiev deve procurar um acordo com Moscovo e desistir de recuperar território, sobretudo o que perdeu há mais de dez anos. A sua escolha dá, como sinal, não a vontade de apoiar Vladimir Putin, mas de acabar o mais depressa possível e a qualquer custo com a guerra.

A proximidade de Trump a Putin poderá ser favorável a um acordo rápido e suficientemente satisfatório para o ocupante. Na pior das hipóteses, com perda definitiva do território pela Ucrânia e exigência da sua neutralidade. Na melhor, a perda da Crimeia (que, na realidade, só seria recuperada com uma vitória clara dos ucranianos), os territórios ocupados como zona desmilitarizada, que ficaria mais ou menos num limbo, e o compromisso de umas décadas sem entrar na NATO. A guerra congelada, portanto. Não sei se a solução no fim de uma guerra mais prolongada seria muito diferente desta, na verdade.

Para além de questões de princípio, com a abertura de um precedente perigoso na Europa (que, na realidade, a NATO já abrira no Kosovo), a negociação choca com dois problemas difíceis de resolver.Do lado da Ucrânia, que garantias terá que a Rússia não se limita a aproveitar este tempo para recuperar forças, reforçar relações com os seus aliados e voltar à carga daqui a poucos anos, com uma Ucrânia paralisada na capacidade de se defender por um acordo leonino? Do lado da Rússia, como abdicará Moscovo do controlo das terras mais ricas em minerais da Europa – titânio e minério de ferro, campos de lítio e enormes depósitos de carvão. Se a Rússia conseguir anexar esta parte do território ucraniano (ou ter um governo fantoche que cumpra esta função), Kiev perderia, por roubo violento, dois terços das suas reservas.

A guerra parece estar perdida para a Ucrânia sem, no entanto, ter sido ganha pela Rússia, que fica longe dos seus objetivos iniciais. A capacidade de recrutamento em Kiev está nas últimas, perante uma potência muito mais populosa e com capacidade extra de ir buscar reforços à Coreia do Norte. A diferença de dimensão e de capacidade dos dois países é demasiado grande para uma guerra convencional de alta intensidade, ao estilo da Grande Guerra, com uso massivo de munições e de soldados como carne para canhão. A Europa não estava e dificilmente virá a estar preparada para uma guerra desta natureza.

A ideia de que o poder de Vladimir Putin seria desgastado por esta guerra (ideia que eu alimentei e que muitos continuam, contra todas as evidências, a alimentar) não se confirmou. Seria desgastado, como a URSS foi, por uma guerra de dez anos, como a do Afeganistão. Mas as democracias europeias não aguentam uma guerra com essa duração, como se vê na Alemanha. Mais depressa cai Zelensky do que Putin. E, ao contrário do que se pensou, as sanções foram incapazes de destruir a economia russa, que é, hoje, uma economia de guerra.

Falharam os que previam que os russos chegariam a Kiev em quatro dias, falharam os que acharam que a Ucrânia tinha condições para os empurrar até às fronteiras. A ideia que a Ucrânia pode resistir sem o apoio dos EUA, só com a Europa, não é temerária. É irresponsável. E ser irresponsável com a vida e a soberania dos outros é demasiado fácil.

A guerra está num impasse e não se vê como sairá dele sem que se corram riscos com consequências trágicas. Agora, o que está em jogo são as condições em que a Ucrânia negociará uma paz que dificilmente será justa. Joe Biden tentou dar força para um sprint final de dois meses que permita que sejam um pouco mais favoráveis e ofereça a Trump uma situação em que se torne mais difícil dar tudo à Rússia. É assim, e não como mera guerrilha interna, que interpreto a autorização para a Ucrânia usar mísseis de longo alcance bem dentro da Rússia chegando a 300 quilómetros no território inimigo. Kiev pode atacar regiões como Kursk, por exemplo.

Apesar dos ATACMS (Army Tactical Missile System) partirem de território ucraniano, Putin defende que o seu direcionamento tem de corresponder a um envolvimento de militares da NATO, com dados de navegação seus, correspondendo a uma participação direta na guerra. É terreno pantanoso. É evidente que os EUA estão envolvidos na guerra, mas nunca em combate.

Do ponto de vista moral, não há qualquer debate: a Ucrânia não pode ser impedida de atacar o território de onde vem o ataque. E o envolvimento de terceiros começou quando a Rússia chamou soldados da Coreia do Norte, outra potência nuclear, para participarem direitamente no conflito. E com as tropas vieram os mísseis Hwasong 11A e 11B, fornecidos pela Coreia à Rússia. Mas é bom não diminuir a relevância do passo que foi dado e os seus riscos.

Mesmo que não seja fácil levar a sério quem por doze vezes jogou a cartada da chantagem nuclear, a guerra entrou na fase mais perigosa de todas. Se este for mesmo um sprint final (as guerras dão reviravoltas que mudam tudo, de um momento para o outro) antes da negociação, é o momento do tudo ou nada. Especialmente perigoso quando acontece numa fase de transição de poder nos Estados Unidos, em que a administração que toma decisões não vai ter de as gerir e quem vai ter de as gerir discorda das decisões tomadas.»


Gouveia e Melo e um ministro entram num bar

 



20.11.24

Japão

 


Vasos de porcelana nipónica antiga, com decoração de vidro e motivos florais, 1908-1914.

Daqui.

Na Rússia continua a cair-se acidentalmente de varandas

 


«Na Rússia continua a cair-se acidentalmente de varandas Na noite de sábado, Vladimir Shklyarov, um dos mais consagrados bailarinos mundiais da atualidade e primeiro-bailarino da companhia do Teatro Mariinsky, em São Petersburgo, caiu da janela de sua casa e teve morte imediata. De acordo com os relatos da agência noticiosa estatal russa, Shklyarov deslocou-se à varanda estreita do seu apartamento num 5.º andar para fumar e tombou em direção à rua. Os relatos acrescentam que o bailarino ia ser submetido a uma operação à coluna, estava a tomar analgésicos e a morte é descrita como um acidente estúpido. Como sabemos, quem toma analgésicos tende a cair de varandas e os bailarinos são caracterizados por uma propensão particular ao desequilíbrio.»


21.11.1898 – René Magritte

 


25 de Novembro: uma comemoração despropositada

 


«Comemorar os 49 anos do 25 de Novembro na Assembleia da República com o mesmo modelo dos 50 anos do 25 de Abril é uma aberração. Comemorar os 50 anos do 25 de Novembro com o mesmo modelo dos 50 anos do 25 de Abril, convenhamos, também seria um disparate.

Mas é isso que vai acontecer dentro de dias no Parlamento, fruto de uma convergência e de uma pressa deliberada dos partidos de direita. Foi aprovado com os votos do PSD, CDS, Iniciativa Liberal e Chega, no final de uma discussão em que o partido proponente declarou tratar-se de uma “vitória do CDS e uma vitória de todos os democratas”.

Vai haver honras militares, hino nacional no arranque e no encerramento da cerimónia, intervenções do Presidente da República e do presidente da Assembleia da República e discursos de todos os partidos de cinco minutos e meio (menos meio minuto do que o tempo previsto na grelha da sessão do 25 de Abril).

A Associação 25 de Abril já recusou o convite para estar presente, alegando que “nenhum dos acontecimentos posteriores” ao dia 25 de Abril de 1974, incluindo a movimentação militar do dia 25 de Novembro, “se pode comparar ao ‘dia inicial, inteiro e limpo’”.

Esta terça-feira, o PCP anunciou que também não irá estar presente, com argumentos semelhantes, dizendo rejeitar “a operação de desvalorização e apagamento do 25 de Abril”.

Em 2019, quando o CDS apresentou esta proposta, e foi chumbada, porque nessa altura havia uma maioria de esquerda no Parlamento, Manuel Carvalho alertava aqui para o “perigo” de a “celebração de uma facção ideológica representar uma provocação da facção oposta”. O ex-Presidente da República Ramalho Eanes, que viria a recusar presidir à comissão das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, já tinha avisado que “momentos fracturantes não se comemoram, recordam-se”.

Agora, passados cinco anos, foi com os votos determinantes do Chega, que entretanto cresceu para 50 deputados, que aquela proposta do CDS foi aprovada e que, sublinhe-se, acabou por dar origem a uma sessão mais solene do que a ideia original de 2019.

O 25 de Novembro garantiu ao país a democracia plural e ajudou a moldar o país de hoje. Nessa altura, Mário Soares e Francisco Sá Carneiro estiveram do mesmo lado, contra os militares influenciados pela extrema-esquerda e o PCP de Álvaro Cunhal.

Na sessão que celebrará para a semana o 25 de Novembro, o PSD aparecerá colado à extrema-direita, que concretizou, através do CDS, um dos seus sonhos: centrar a discussão numa polarização entre si e partidos como o PCP e o BE.

Há cinco anos, em plena “geringonça”, fazer essa discussão era um embaraço para o PS, que tinha naqueles partidos um importante suporte. Hoje, ter o figurino a que vamos assistir no Parlamento é um presente que o PSD dá de bandeja ao Chega.»


No Zambujal, com Tibunga: de regresso à cidade invisível

 



19.11.24

Boa sugestão para a ministra da Saúde «refundar» o SNS

 


O grau zero da governação

 


«A crise do INEM diz-nos mais acerca da governação do Estado. No caos agora posto a descoberto está também contida a insustentável falácia com que nos entretiveram os últimos governos de Costa e que o executivo de Montenegro se esforça por manter viva: a ideia de que governar não é sempre gerir recursos escassos e fazer opções dolorosas. Talvez seja mesmo apócrifa a frase atribuída a Lincoln e alegadamente pronunciada em Clinton, Illinois, em 1858: “Podeis enganar toda a gente durante um certo tempo; podeis mesmo enganar algumas pessoas todo o tempo; mas não vos será possível enganar sempre toda a gente.” Mas a frase é no mínimo ben trovata. Não há cativações, não há horas extraordinárias, não há expedientes ou artimanhas, por mais engenhosos que sejam, que possam dar a todos, durante todo o tempo, a ilusão de que se concluiu finalmente a quadratura do círculo na gestão da coisa pública: servir todas as clientelas e ainda cumprir o milagre das contas certas. E o problema, convém desmontar o equívoco, não é Bruxelas nem são as contas certas que outra coisa não são, aliás, do que a saudável garantia de que não obrigamos os nossos netos a pagar os nossos desmandos. O problema, por mais cruel e desagradável que seja dizê-lo, é que não é possível ter a TAP, ter a Efacec, ter autoestradas sem portagens, ter 35 horas de trabalho semanal e mais um sem número de ideias generosas e pias financiadas por recursos públicos e ainda assegurar que o Estado não falha naquilo que são os seus deveres essenciais.

Podemos e devemos divergir acerca das prioridades para a alocação dos recursos (sendo certo que da extrema-esquerda à extrema-direita todos concordamos que garantir uma rede eficaz de prestação de serviços de emergência médica é uma delas). É nessa divergência que se deve consubstanciar, aliás, o essencial do combate político. Aquilo que é profundamente perverso é continuar a gerir o Estado com base em pensamentos mágicos. A manta é curta e não é por apagarmos a luz para não a ver que deixaremos de sentir frio nos pés.»


José Mário Branco

 


Cinco anos sem ele. Mas deixou-nos uma herança que continua a fazer parte da vida de muitos de nós.

Nós indignamo-nos, os outros cancelam

 


«O CDS já morreu. E nunca resulta manter artificialmente vivo um corpo político que se esgotou. A aliança com o PSD só faz sentido se for para garantir a absorção do corpo morto e, com ele, os seus quadros e dirigentes. Tudo o resto soará a falso. E, nesta sua nova versão, se o ridículo matasse o CDS teria de ressuscitar para morrer de novo.

Depois de Olivença, a formiga que quer competir com o gigante da extrema-direita inventou uma nova polémica: os boletins de saúde infantil e juvenil iam deixar de ser cor-de-rosa e azuis para ter uma cor única, o amarelo. Apesar da cor única ser o padrão dos documentos do Estado, o deputado João Almeida viu aqui mais ofensiva woke e lançou uma campanha com o sugestivo hashtag #naosomostodosamarelos. O mesmo Ministério da Saúde que demorou mais de vinte dias a reagir a uma greve no INEM fez reverter, em apenas dois, a medida.

Acho que não preciso de explicar que é um desperdício de esforço e meios distinguir boletins de saúde por género, como seria com o passaporte ou o cartão de cidadão. Que é quem faz questão de ter esta distinção que se agarra a temas identitários inúteis, a debates fúteis, ao fetichismo político.

Se repararmos com atenção, grande parte das vezes que questões identitárias ou simbólicas ficam no centro do debate político é porque a direita, os supostos inimigos do woke, as colocam na agenda. Se a guerra não se faz em torno de cada palavra, faz-se na distinção cromática dos géneros, mesmo quando é dispensável. Basta recordar que Luís Montenegro teve como primeira medida a mudança do logotipo do governo com argumentos que, nos meses seguintes, ignorou em vários rebrandings institucionais. A direita conservadora precisa, desesperadamente, do fantasma woke.

Por causa de um protesto de um deputado, o Ministério da Saúde deu ordens à Direção Geral de Saúde para recuar numa medida meramente administrativa. Ninguém reagiu com mais do que umas gargalhadas, perante o ridículo.

Poucos dias depois, a marca de preservativos Control fez mais um dos seus anúncios provocadores. Com a imagem de uma castanha, lia-se: “O pior é quando a descascas e vês que tem uma minhoca”. Devo dizer que, quando vi o anúncio, julguei que era uma piada sobre as dimensões da genitália, o que me pareceu pouco inteligente para quem tem de vender proteção a todo o tipo de clientela. Depois percebi que a leitura foi outra, sobretudo por causa de se ter escolhido uma castanha e escrito “a descascas”. Os defensores da causa trans sentiram-se especialmente incomodados com “o pior”.

Não vou perder tempo com o conteúdo do anúncio. Defendo o direito a fazer aquela piada assim como defendo o direito de pessoas manifestarem a sua indignação, ao ponto de lançarem campanhas contra a marca. E esta, sim, é uma batalha minha: combater esta estranha moda de querer liberdade de expressão, mas nunca liberdade de reação, desde que seja por via do legítimo exercício da liberdade de expressão. Quando fazemos uma piada não decidimos como é que os outros reagem a ela. Podem rir-se, podem ficar indiferentes, podem ofender-se. E podem manifestar qualquer uma destas reações de forma pacífica, legal e livre. Liberdade de expressão não é dever de passividade dos outros perante o exercício dessa liberdade.

As empresas que contratam agências de publicidade não procuram entreter ou cultivar o público. Usam o humor para vender produtos. A polémica até lhes pode interessar. Determinado tipo de polémicas pode ser contraproducente. As empresas não têm qualquer problema em recuar numa piada se essa piada lhes tirar clientes porque os valores que estão em causa são mesmo os do mercado. Até lhes pode interessar a polémica e depois o recuo. É publicidade. Ponto. Isto não acontece, infelizmente, só na publicidade. Como escrevi há uns meses, “o mercado é o maior censor”. No mercado livreiro, por exemplo. Maior do que o Estado. Com isso, vivo pior. É fundamental que haja áreas da nossa vida desmercantilizadas ou que, estando no mercado, não se submetam à sua ditadura: o jornalismo, a arte, a educação, a saúde, a habitação e por aí adiante. A publicidade dificilmente seria uma dessas áreas.

Perante a polémica, a Control achou que o humor lhe custava clientes e recuou e pediu desculpas. O recuo teve exatamente o mesmo objetivo da piada: ganhar ou manter clientes. Não têm razão? Precisava de conhecer os estudos de mercado para o saber. Para quem quer vender um produto, a sensibilidade dos clientes é central. Assim não deve ser na liberdade artística. E só um publicitário tonto julga que, por ser criativo, é artista.

Curiosamente, e ao contrário do que aconteceu com uma ordem dada pelo Ministério da Saúde, em nosso nome, à DGS, a ordem dada pela Control, em nome dos acionistas da empresa (penso que o atual proprietário é a LifeStyles Europe, que comprou a Tecnilatex), levou a uma enorme indignação contra a “censura” woke. Um caso, que envolve o Estado, não causou incómodo. Outro, que envolve uma marca, mobilizou muita gente, a começar pelo deputado da Iniciativa Liberal Mário Amorim Lopes, que quis explicar a uma empresa privada o que deve fazer quando há más reações a um anúncio. Achará, talvez com razão, que a empresa se engana na avaliação de mercado. Como liberal, deixará que seja a empresa a fazê-la. Ou oferece, claro, os seus préstimos de consultadoria.

Não estou indignado com a Control. Estou-me nas tintas, para dizer a verdade. Assim como estou nas tintas para cor dos boletins de saúde. Apenas quero recordar que a liberdade de humor é tão livre como a liberdade de indignação. Essa indignação só parece cancelamento quando são os outros a indignarem-se.»


Está a faltar-nos jornalismo?

 



18.11.24

Agora taças

 


Taça Morcego, Arte Nova, feita de bronze com aplicações em cobre martelado e gravado, ouro e prata. Paris, 1909.
Henri Husson.

Daqui.

Seriam 81, hoje

 


Um 25 para mim, outro para ti

 


«Perante isto, porque deseja a direita parlamentar comemorar solenemente esta data? Será que pretende homenagear Costa Gomes, Melo Antunes, Mário Soares ou Álvaro Cunhal? Não parece que seja esse o caso. Esta iniciativa procura, sim, celebrar uma visão mitificada e, de certo modo, distorcida dos eventos, com pouco ou nenhum sustento historiográfico, que visa culpabilizar o PCP pelas acções da extrema-esquerda militar no 25 de Novembro — uma ideia semelhante àquela que a direita reaccionária também procurou difundir na época. Numa manobra retórica inusitada, é associado o perigo do extremismo e da radicalização a uma esquerda enfraquecida, num momento em que a extrema-direita cresce e ganha força pela Europa e no mundo ocidental — note-se a recente vitória de Trump nos EUA, que vem legitimar estes movimentos extremistas. Esta postura é incorreta não apenas por falta de rigor histórico, mas também face ao cenário político actual.» 


Vai ficar tudo mal

 



O elogio da esquerda etiquetária pela direita

 

Antonio Berni

«Devia-nos escorrer uma lágrima furtiva quando lemos os carinhosos analistas que exigem à esquerda que regresse à “velhinha luta de classes”, agora “propriedade” da direita, pois o “vírus” democrata foi “capturado por grupelhos anticapitalistas”. O eterno Fukuyama é citado por Teresa de Sousa para provar que o que condenou Kamala foi a “protecção exclusiva de um conjunto de grupos marginalizados: minorias raciais, imigrantes, minorias sexuais, etc.”. E acrescenta ela com condescendência: “O problema não está em que estas preocupações não sejam justas, que são”. São mas não são e não podem, aqui aplica-se a filosofia da famosa rábula do Ricardo Araújo Pereira.

As minhas teses contra estes conselhos comoventes são, primeiro, que são uma fraude para incensar Trump e, depois, que tentam empurrar a esquerda para uma marginalidade etiquetária conveniente à direita.

Apaziguar Trump?

A pantomina começa por apresentar o Partido Democrata (PD) como a esquerda. O PD foi o partido dos esclavagistas durante a guerra civil; 70 anos depois, mesmo com a sua supermaioria, Roosevelt desistiu de uma lei federal contra os linchamentos porque os senadores democratas sulistas não o permitiriam. A perda dessa influência territorial e a pressão dos direitos civis mudou o mapa partidário, mas não a fidelidade a Wall Street: foi Clinton quem determinou o fim da lei do New Deal no controlo bancário e Kamala vangloriou-se da chancela da Goldman Sachs no seu programa. Chamar esquerda ao PD, ou fantasiar que representou os trabalhadores, é um insulto mal recebido pelos seus chefes.

Num país dividido ao meio pelo bipartidarismo, tanto democratas como republicanos sempre tiveram povo e é uma pirueta apresentar Trump como o portador da tal nova “luta de classes” colonizada pela direita. E, como é bom de ver, os lusos “proprietários da luta de classes” olham para o salário como a abominação que reduz o lucro. Nisso coerentes, a sua “luta” é pela redução do IRC ou, como notava o bilionário Warren Buffett, é para pagar menos IRS do que a sua secretária. Temo aliás que este amor pela “classe” seja de pavio curto e que volte à fábula meritocrática do elevador social, minúscula arca de Noé onde não cabe classe alguma.

O facto é que os “proprietários da luta de classes” se refugiam no discurso poltrão sobre a culpa woke para justificarem Trump. Afinal, repetem, ele tocou o coração do povo, oferecendo o identitarismo MAGA e a esperança dos descamisados. No entanto, bastaria olhar para a galeria de horrores do séquito para notar que o trumpismo é o poder de uma casta económica e procura impor a necropolítica, pobres descamisados que são carne para canhão. Por isso, a política de apaziguamento dos que endeusam o homem, que já deu mau resultado no passado, não será melhor agora: o que ela prova, como se verifica no fim do cordão sanitário francês ou na nomeação de Rutte para a NATO às costas do Governo de extrema-direita, é que a direita clássica desliza para o trumpismo.

Arrumados no beco?

O trumpismo é um identitarismo brutalista, dirigido por um fascista, com traços teocráticos e subordinado à pilhagem do país por uma elite empresarial, cujo ícone é Elon Musk, que investiu 119 milhões e ganhou 26 mil milhões com a eleição. Esta vaga crescerá. É o que me leva ao meu segundo ponto: a resposta da esquerda só pode ser a disputa da maioria, o que exige que crie a certeza social de que é ela que garante liberdade e segurança.

Assim sendo, face à ameaça civilizacional, é só curiosa a tentativa dos apaziguadores de nos pedirem um regresso ao passado. Ora, uma esquerda declarativa e cerimonial – etiquetária, portanto – só serve para o consolo da direita. Ela é inútil, nenhuma muralha de Jericó cairá com as trombetas das proclamações sobre o partido-guia. O modelo dessa política etiquetária já foi experimentado de todas as formas e só conduziu a sectarismo e auto-satisfação desarmante, enquanto a luzinha que brilhava numa janela do Kremlin para iluminar a humanidade se extinguiu às mãos dos dirigentes feitos oligarcas. Esse passado é um beco onde morreu a saudade.

Entretanto, em nome da fantasia de um exército de robots obedientes a algum grande educador do proletariado, a esquerda conservadora propõe na Alemanha a deportação de imigrantes e noutros países opõe-se à paridade entre homens e mulheres ou a medidas de transição energética.

Pois pergunto então que sentido teria a esquerda abandonar a maioria do povo, que são mulheres, ou renunciar aos direitos humanos, ou entregar o futuro ao capitalismo fóssil? Ou se, quando em Portugal se fez o referendo que despenalizou o aborto, havia outra prioridade da luta de classes? Ou se o país ficou pior por ter aprovado o casamento gay, que enfureceu a direita, a hierarquia religiosa e, já agora, muitos populares? É precisamente por disputar o único imaginário universalista que resta – liberdade e igualdade – que a esquerda deve rejeitar o etiquetarismo e juntar todos os setores populares que disputam os seus direitos.

Num tempo em que há menos sindicalizados do que precários e trabalhadores por turnos, ou migrantes, ou quando há mais manifestantes nas marchas LGBT+ do que no 1.º de Maio em todas as cidades menos uma, essa inclusão é uma condição para restabelecer a capacidade de acção colectiva da classe trabalhadora – e deve ser o seu programa.

Mais ainda, se a segurança da vida boa, dos bens comuns, da saúde à escola, e dos bens essenciais, o salário e a casa, é a base do projeto socialista, tal transmutação democrática só vencerá se for a expressão de uma aliança maioritária. Essa é aliás a razão pela qual setores da esquerda norte-americana, refugiados no seu próprio etiquetarismo sem alternativa política, prejudicam o combate pela igualdade ao substituírem a luta social pela ideia de que a experiência pessoal do trauma é a fonte da autoridade discursiva ou que o cancelamento pode estabelecer a regra da praça pública.

Contaminada pelo abismo intoxicante das redes sociais, essa esquerda é profundamente individualista e desiste do sentido da comunidade, que é a essência do universalismo socialista. Sim, Trump ensina-nos alguma coisa: a não desistir de toda a luta de classes que enfrenta o capitalismo real.»


17.11.24

Praga, 17.11.1989 – A «Revolução de Veludo»

 


Poucos dias depois da queda do Muro de Berlim, com início no campus universitário e concentração final na mítica Praça Wenceslas, teve lugar uma marcha pacífica de estudantes, que pretendia assinalar a morte de Jean Opletal em 1939 e o encerramento das universidades checas pelos nazis. A manifestação foi fortemente reprimida pela polícia, facto que desencadeou uma onda de eventos que iria durar até final do ano e que congregou um número crescente de participantes.

Momento alto em 27 de Novembro, dia de greve geral, em que Mikhaïl Gorbatchev fez uma declaração em que condenou a operação do Pacto de Varsóvia, que pôs termo à Primavera de Praga em 1968, numa clara demonstração de ausência de suporte ao governo da Checoslováquia por parte da União Soviética.


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Os oligarcas da Nova Ordem Mundial

 


«Publicado em 2018, “O Quinto Risco”, de Michael Lewis, é uma análise da transição entre as Administrações Obama e Trump, revelando como se entregaram departamentos como os da Energia, da Agricultura ou do Comércio a figuras com interesses diretos nestes sectores. O livro descreve como uma combinação explosiva entre incompetência, impreparação e venalidade alimentou o desprezo pela regulação e papel do Estado. Mas isto foi em 2016, quando um Trump impreparado ainda lidava com alguns republicanos dignos desse nome. Na sua reencarnação, só restam apóstolos. Vingativo, rancoroso e reforçado por uma vitória eleitoral em cima de condenações judiciais e de um ataque ao Capitólio, Trump pode romper todas as amarras institucionais que o prendiam. A nomeação de Musk e de Ramaswamy, um fanático bilionário da biotecnologia, para desmantelar partes significativas do Governo federal é o anúncio estrondoso do que aí vem se Trump não se boicotar a si mesmo, como fez no passado. Elon Musk, que tem contratos de milhares de milhões com o mesmo Estado que vai “reformar”, é só o oligarca mais famoso de uma “nova ordem mundial” anunciada por ele mesmo, depois de ser o verdadeiro vencedor destas eleições.

Numa entrevista, já depois das eleições, J. D. Vance disse que se a UE avançar com a regulação do antigo Twitter os EUA terão de repensar o apoio à NATO. Será fanfarronice, mas sobreposição de interesses privados aos do Estado assume-se com a clareza de uma qualquer oligarquia. O “NYT” relata como Musk, que tem passado os últimos dias com Trump, lhe pediu para nomear funcionários da sua empresa espacial, a SpaceX, para o Departamento de Defesa. É ali que se decidirá o destino de milhares de milhões de dólares da NASA. Mas os interesses vão muito para lá do espaço: seis empresas de Musk são alvo de 20 investigações federais, incluindo uma sobre os carros autónomos, um investimento vital para o futuro da Tesla.

A regulação federal é apresentada como uma barreira à inovação e ao crescimento económico e Trump promete destruí-la. A efervescência das criptomoedas é um bom barómetro do que se espera desta Nova Ordem Mundial. Desde a vitória de Trump, o bitcoin aproximou-se pela primeira vez dos 90 mil dólares, um aumento de 27%. A desregulação financeira dos anos 80 e 90, depois dos 30 anos dourados do pós-guerra, criou as bases para a concentração de riqueza, aumento da desigualdade e ciclo de sucessivas crises que devastaram as democracias. Ainda assim, não foi tão relevante como o que pode vir a acontecer com a desregulação tecnológica. Os efeitos da inteligência artificial no trabalho, nas relações sociais e até na noção de verdade e do que é ser humano são muito mais profundos do que todos os problemas que a desregulação financeira levantou. A regulação de uma transformação tão vertiginosa para a humanidade é um imperativo civilizacional. Mas é um imperativo inaceitável para o pequeno grupo de oligarcas globais que deseja expandir livremente áreas de negócio disruptivas, concentrando um poder nunca antes conhecido. O maior contributo de Musk para a vitória de Trump não foram 119 milhões de dólares, num ciclo eleitoral em que se gastaram mais de 15 mil milhões. Foi o impulso à desinformação de extrema-direita no Twitter. Em poucos anos, tudo isto parecerá arcaico comparado com os instrumentos políticos e económicos que este poder concentrará. Uma concentração de riqueza e de poder que torna estes oligarcas na maior ameaça para o futuro da democracia e de um capitalismo concorrencial.

São comuns as analogias com os anos 30 do século passado. A subida ao poder dos fascismos foi apoiada pelo capitalismo industrial, tal como Trump é apoiado pelo capitalismo tecnológico. Em perigo, o sistema calçou, mais uma vez, as luvas de boxe. Mas há uma grande diferença: o fascismo concebia a sociedade a partir de um Estado forte, que estava no centro das relações de poder. Para Trump e os oligarcas que o apoiam o Estado é securitário para imigrantes e minorias, mas anula-se na regulação do novo poder económico. Os ingénuos falam das tarifas, não percebendo que o protecionismo das economias mais fortes sempre fez parte das regras. A grande diferença em relação aos anos 30 do século passado é a proximidade entre fascistas e neoliberais. Milei, o “Presidente favorito” de Trump, e Bolsonaro entusiasmam a mesma plateia. O que se propõe é uma desregulação assimétrica, com um Estado fraco para os fortes e forte para os fracos. O ódio e o ressentimento foram o alimento eleitoral fornecido nas redes por homens como Musk para impor esta dicotomia desigual. Apresentam agora a fatura.»


Vinícius