«Publicado em 2018, “O Quinto Risco”, de Michael Lewis, é uma análise da transição entre as Administrações Obama e Trump, revelando como se entregaram departamentos como os da Energia, da Agricultura ou do Comércio a figuras com interesses diretos nestes sectores. O livro descreve como uma combinação explosiva entre incompetência, impreparação e venalidade alimentou o desprezo pela regulação e papel do Estado. Mas isto foi em 2016, quando um Trump impreparado ainda lidava com alguns republicanos dignos desse nome. Na sua reencarnação, só restam apóstolos. Vingativo, rancoroso e reforçado por uma vitória eleitoral em cima de condenações judiciais e de um ataque ao Capitólio, Trump pode romper todas as amarras institucionais que o prendiam. A nomeação de Musk e de Ramaswamy, um fanático bilionário da biotecnologia, para desmantelar partes significativas do Governo federal é o anúncio estrondoso do que aí vem se Trump não se boicotar a si mesmo, como fez no passado. Elon Musk, que tem contratos de milhares de milhões com o mesmo Estado que vai “reformar”, é só o oligarca mais famoso de uma “nova ordem mundial” anunciada por ele mesmo, depois de ser o verdadeiro vencedor destas eleições.
Numa entrevista, já depois das eleições, J. D. Vance disse que se a UE avançar com a regulação do antigo Twitter os EUA terão de repensar o apoio à NATO. Será fanfarronice, mas sobreposição de interesses privados aos do Estado assume-se com a clareza de uma qualquer oligarquia. O “NYT” relata como Musk, que tem passado os últimos dias com Trump, lhe pediu para nomear funcionários da sua empresa espacial, a SpaceX, para o Departamento de Defesa. É ali que se decidirá o destino de milhares de milhões de dólares da NASA. Mas os interesses vão muito para lá do espaço: seis empresas de Musk são alvo de 20 investigações federais, incluindo uma sobre os carros autónomos, um investimento vital para o futuro da Tesla.
A regulação federal é apresentada como uma barreira à inovação e ao crescimento económico e Trump promete destruí-la. A efervescência das criptomoedas é um bom barómetro do que se espera desta Nova Ordem Mundial. Desde a vitória de Trump, o bitcoin aproximou-se pela primeira vez dos 90 mil dólares, um aumento de 27%. A desregulação financeira dos anos 80 e 90, depois dos 30 anos dourados do pós-guerra, criou as bases para a concentração de riqueza, aumento da desigualdade e ciclo de sucessivas crises que devastaram as democracias. Ainda assim, não foi tão relevante como o que pode vir a acontecer com a desregulação tecnológica. Os efeitos da inteligência artificial no trabalho, nas relações sociais e até na noção de verdade e do que é ser humano são muito mais profundos do que todos os problemas que a desregulação financeira levantou. A regulação de uma transformação tão vertiginosa para a humanidade é um imperativo civilizacional. Mas é um imperativo inaceitável para o pequeno grupo de oligarcas globais que deseja expandir livremente áreas de negócio disruptivas, concentrando um poder nunca antes conhecido. O maior contributo de Musk para a vitória de Trump não foram 119 milhões de dólares, num ciclo eleitoral em que se gastaram mais de 15 mil milhões. Foi o impulso à desinformação de extrema-direita no Twitter. Em poucos anos, tudo isto parecerá arcaico comparado com os instrumentos políticos e económicos que este poder concentrará. Uma concentração de riqueza e de poder que torna estes oligarcas na maior ameaça para o futuro da democracia e de um capitalismo concorrencial.
São comuns as analogias com os anos 30 do século passado. A subida ao poder dos fascismos foi apoiada pelo capitalismo industrial, tal como Trump é apoiado pelo capitalismo tecnológico. Em perigo, o sistema calçou, mais uma vez, as luvas de boxe. Mas há uma grande diferença: o fascismo concebia a sociedade a partir de um Estado forte, que estava no centro das relações de poder. Para Trump e os oligarcas que o apoiam o Estado é securitário para imigrantes e minorias, mas anula-se na regulação do novo poder económico. Os ingénuos falam das tarifas, não percebendo que o protecionismo das economias mais fortes sempre fez parte das regras. A grande diferença em relação aos anos 30 do século passado é a proximidade entre fascistas e neoliberais. Milei, o “Presidente favorito” de Trump, e Bolsonaro entusiasmam a mesma plateia. O que se propõe é uma desregulação assimétrica, com um Estado fraco para os fortes e forte para os fracos. O ódio e o ressentimento foram o alimento eleitoral fornecido nas redes por homens como Musk para impor esta dicotomia desigual. Apresentam agora a fatura.»