«Para lá da indignação, há o dever de tentar perceber. Prever o que vai ser o Trump 2.0 é muito arriscado, embora sejam muitos os sinais. Vários autores americanos falam em "mudança de regime". E já não é como antigamente. Agora trata-se de desmantelar a administração federal e criar um regime que merece a etiqueta de "tirania". O Partido Republicano, que Donald Trump controla quase por completo, dispõe da maioria das duas câmaras do Congresso, de um Supremo Tribunal obediente, ou seja, de todos os poderes. Por este caminho, os EUA em breve parecerão um regime de partido único.
Trump não se contenta com isso. Quer "varrer" o sistema judicial, depurar os altos comandos das Forças Armadas ou demolir o Departamento da Educação. Está a fazer nomeações arbitrárias para o futuro Governo. E, mesmo controlando o partido e a Câmara dos Representantes, quer passar por cima do Senado, tentando evitar a audiência de alguns dos escolhidos. O Estado de direito e a separação dos poderes passam a estar tão ameaçados como na Hungria de Viktor Orbán.
A emergência de figuras como o magnata Elon Musk e o futuro vice-presidente J.D. Vance simboliza a abertura de uma "nova era" política: o poder passa a assentar numa nova aliança que combina o conservadorismo radical republicano e a chamada "right-tech", a poderosa, e até agora pouco conhecida, "direita-tech" do Silicon Valley.
É um projecto de fusão do Estado com uma oligarquia económica, de forma a criar uma nova elite governante. Outrora, os grandes "monopólios" influenciavam o poder, por vezes de forma determinante, mas não participavam nele. Não se confunda esta "right-tech" com outros gigantes do novo mundo digital, como Google, Meta, Microsoft ou Apple. Em cerca de 70 "bilionários" que contam no Silicon Valley, só uma vintena apoiou Trump. São minoritários mas, diz um jornalista, são um "grupo de guerreiros, coisa que os outros não são".
Elon Mask será um pioneiro. Dirigirá o famoso DOGE (Department of Government Efficiency), sem participar no gabinete de Trump, para evitar conflitos de interesses. Cabe-lhe a nobre missão de despedir milhares de funcionários federais para "poupar" dois biliões de dólares. Ele não é só o homem mais rico do mundo, tem uma influência geopolítica de que nenhum outro "bilionário" dispõe. Mas não é um caso único. Outros magnatas dispõem igualmente de um poderio sem controlo que acaba por constituir uma ameaça para a democracia. Lamenta o sociólogo francês Olivier Alexandre, do Centro Internet do CNRS: "Em 30 anos, a tech passou da utopia para a distopia."
Entre Thiel e Vance
Por trás desta corrente, há uma eminência parda, Peter Thiel, fundador do PayPal. "Ele explica como as companhias são melhor dirigidas do que os Governos porque têm um único decisor – basicamente, um ditador. Ele é hostil à ideia de democracia", escreve na Time o seu biógrafo, Max Chafkin.
As regulamentações são o inimigo número um. "O progresso tecnológico deve ser continuado sem demoras, sem se preocupar, ou quase, com os potenciais riscos ou os perigos para a sociedade", anota Chafkin. "Esta vontade de desregulamentar, de simplificar a administração, ou até de suprimir agências nascidas depois do New Deal, corresponde às declarações anti-sistema de Trump, a ideia de que é preciso ‘drenar o pântano’."
Num manifesto de 2009, "The Education of a Libertarian", Thiel exprimiu o seu cepticismo sobre a via eleitoral. "Já não creio que a liberdade e a democracia sejam compatíveis." Acrescenta: "Desde 1920 que o aumento considerável dos beneficiários da ajuda social e a extensão do voto às mulheres – dois grupos notoriamente difíceis para os libertários – transformaram a noção de ‘democracia capitalista’ num oxímoro." Outros ideólogos deste mundo são ainda mais extremistas.
O politólogo Damon Linker advertiu, há um ano, no New York Times, que ignorar estes obscuros teóricos é não compreender "o papel dos intelectuais nos movimentos políticos radicais. Estes autores encorajam as elites republicanas e democratas a fazerem coisas que, há anos, eram impensáveis".
Vance é uma espécie de protegido de Thiel, para quem trabalhou e que financiou as suas campanhas eleitorais. Hoje, Vance é o rosto "desta nova direita" que tenta imprimir uma orientação ainda mais radical – em matéria de nacionalismo, da política anti-imigração e do intervencionismo americano – à revolução ideológica de Trump. Financiada em grande parte por Thiel, ela tenta tornar-se maioritária dentro do movimento conservador", escreve no Monde a jornalista Valentine Faure.
Declara ao mesmo jornal Maya Kandel, especialista da sociedade americana: "Esta nova direita virou as costas aos princípios fundadores do Partido Republicano, versão Reagan: comércio livre, abertura à imigração e política externa intervencionista, que eram antes a trilogia do partido." Esta linha é bem expressa no famoso "Projecto 2025".
"Vance é olhado como o seu emissário em Washington", escreve o Washington Post. "Poderá ajudar a transformar a indústria tecnológica na máquina do capitalismo, levando o Governo a alinhar as suas posições ideológicas pelas dos líderes da tecnologia."
Duas notas finais. "As alegações de fascismo encobrem o verdadeiro perigo", previne o historiador Samuel Moyn, da Universidade de Yale. Não regressámos aos anos 1920-1930, quando a ressaca da Grande Guerra produziu os totalitarismos do século XX. Estamos, no século XXI, a viver uma revolução tecnológica com pesados efeitos culturais e políticos. Parece-me mais acertada a palavra 'tirania', que obcecava os "pais fundadores".
Nem todos são pessimistas. Janan Ganesh, colunista do Financial Times, aposta na eleição de um presidente democrata em 2028, após um fracasso do Trump 2.0 e uma redenção política dos democratas.»
Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público, 21.11.2024