«A confrontação que está a ocorrer na fronteira entre a Bielorrússia e a Polónia é preocupante, mas não pode ser analisada a preto e branco. É uma crise complexa, que levanta toda uma série de questões. Estamos perante problemas humanitários, migratórios, securitários, geopolíticos, éticos, ou seja, face a uma constelação de desafios que precisam de ser debatidos de modo sereno, frontal e completo.
Como pano de fundo, temos duas grandes problemáticas. A primeira é sobre a democracia. A segunda centra-se na pobreza extrema, num mundo profundamente desigual e que os conflitos, a pandemia e as mudanças climáticas tornam ainda mais dissemelhante e fraturado.
Mas, antes de tudo, é preciso pensar nas pessoas que estão agora encurraladas na terra-de-ninguém, entre o arame farpado polaco e as matracas das unidades especiais bielorrussas. Não se sabe quantos milhares são - as estimativas não são fiáveis. Sabe-se, porém, que incluem gente frágil, muitas crianças, e que passam fome e frio, e sofrem humilhações e violências constantes. São, além disso, alvos permanentes de notícias falsas que os agentes bielorrussos fazem constantemente circular, de modo a manter vivas as ilusões dos migrantes.
Alexander Lukashenko, o senhor da Bielorrússia, está claramente a aproveitar-se da miséria de certos povos. Mas o nosso lado não pode ficar indiferente perante o sofrimento de quem se deixou manipular, gente que vive em contextos tão complicados que qualquer promessa, por mais irrealista que possa ser, traz sempre um fio de esperança. E que lança massas de pessoas nos caminhos minados das migrações ilegais.
A fronteira com a Bielorrússia separa o espaço europeu de um regime autocrático, em que vale tudo o que possa manter o ditador no poder. Lukashenko é hoje a nossa preocupação mais imediata, mas não é caso único na vizinhança. Se olharmos à nossa volta, e nos fixarmos em quem representa uma ameaça potencial ou real mais próxima, temos um ramalhete que inclui igualmente os líderes da Rússia e da Turquia. Não quero acrescentar a esta lista alguns políticos marroquinos, mas recomendaria que se não perdesse de vista esse nosso vizinho do norte de África, que já mostrou que sabe utilizar as migrações massivas como arma de arremesso político.
É verdade que também temos, no interior da UE, quem desestabilize a construção europeia. Mas isso é matéria para uma outra reflexão.
Falemos agora de democracia. A UE precisa de formular uma doutrina que defina como se deve relacionar com vizinhos não democráticos, sobretudo quando surgem situações de hostilidade aberta, como agora acontece. No quadro atual, fica-se com o sentimento de que as democracias tendem a perder perante os Estados fora-da-lei. É, por isso, necessário fixar com clareza qual deve ser a resposta adequada às agressões de natureza híbrida, levadas a cabo à tangente da linha vermelha dos conflitos armados entre Estados, sem, todavia, a ultrapassar. Um primeiro passo deverá consistir numa resposta firme e inequívoca. Inclui a adoção de sanções de modo mais célere, multifacetado e mais centrado nas personagens que contam. Um outro meio será o de fazer um maior uso do sistema multilateral. Isso permitirá levar para a agenda internacional ações como a que Lukashenko mandou executar, à custa do desespero dos curdos do Iraque, dos sírios e de outros povos do Médio Oriente.
Quanto às disparidades que existem entre uma Europa rica e toda uma série de países pobres, o efeito de atração é inevitável. As migrações em massa do sul para o norte serão um dos fenómenos mais marcantes desta e das décadas seguintes. A UE não pode fingir que não vê a tendência. É inaceitável deixar uma matéria dessa importância ao critério de cada Estado membro. A questão deve ser tratada em comum. E o assunto tem de se tornar numa das principais linhas de debate da Conferência sobre o Futuro da Europa. É aliás tempo de dizer aos cidadãos que essa conferência está a decorrer e fazer que estes nela participem.»
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