A crónica de José Pacheco Pereira no Público de hoje, merece leitura e reflexão. Aqui fica, na íntegra, «sublinhada»
por mim a vermelho.
«Eu já vejo com muitas reservas esta obsessão dos dias de hoje de atribuir
estados de alma a toda a gente para explicar tudo e mais alguma coisa, e por
isso sou avesso, por maioria de razão, a embarcar na ideia que o mesmo se possa
fazer aos povos. Isso a propósito da “paciência” do povo português celebrada
pelo primeiro-ministro como virtude ímpar numa Europa turbulenta.
Claro que se podem dizer muitas coisas sobre o “povo português”: que está
“zangado” com a crise, que está “furioso” com os políticos, que está
“deprimido” com o empobrecimento forçado, que está “descrente” da democracia,
que está “prostrado” pela inacção, que tem uma infinita “paciência”. Há, no entanto,
várias coisas que ninguém tem coragem de dizer e o problema dos excessos de
psicologia impressionista começam aqui. Ninguém tem a coragem de dizer que o
povo português está “contente” com o “ajustamento”, que fica “feliz” porque
passou a ter, como lhe dizem os governantes, que viver com os seus parcos
recursos, e não pode viver mais do crédito (um parêntesis para dizer que um dos
absurdos da actual situação que parece escapar a muitos é que todo este
“ajustamento” se está a fazer “para o país voltar aos mercados”, ou seja, para
pedir mais dinheiro emprestado…), que está “consciente” de que o futuro do seu
país é risonho após o termo desta “revolução dos costumes”, que “compreende”
que tem que sofrer para depois renascer como a Fénix.
Em vez da psicologia e dos estados de alma, prefiro a política. É por isso
que a frase da “paciência” tem um duplo significado
político: é um desejo, de que os portugueses se portem bem; e é uma ideia sobre
o “estado” em que estão e também sobre o que são. É uma ideia sobre os
portugueses. A primeira coisa é um desejo, que todos podem ter; a segunda, é
uma ilusória ideia de que existe uma qualquer virtude essencial nos portugueses
que consiste em “comerem e calarem”. Ora isto é uma asneira monumental sob
todos os pontos de vista, seja o do puro bom senso, seja histórico, seja
sociológico, seja até, admirem-se, psicológico e psiquiátrico. Masoquistas, só
às vezes e é pelo prazer, não é pelo chicote.
A comparação que fez D. Januário Torgal entre Passos
e Salazar levou ao paroxismo a interpretação da frase da “paciência”. Ora, se
entendida como sendo uma comparação entre Passos Coelho e Salazar, como pessoas
e políticos, não tem nenhuma razão de ser. Passos é um político
democrático, a quem de certeza são completamente alheias as ideias
conservadoras e antidemocráticas de Salazar e a quem não move qualquer impulso
autoritário. Pode ser indiferente, como muitas pessoas da sua geração, perante
os valores da liberdade que receberam já adquiridos, e que sempre conheceram
como naturais, mas isso não o faz um ditador em potência.
O problema é outro, é que muitas ideias do nosso
salazarismo de background impregnam
muito mais do que se pensa o discurso público vulgar, aquele que não é muito
elaborado e se desenvolve por aquilo que pensam ser evidências, sobre as quais
nunca pensaram. Passos Coelho não é um caso especial, mas como é
primeiro-ministro fica mais exposto. É o problema, também geracional, de uma
formação política muito superficial, assente pouco mais do que leituras de
jornais e em discursos estandardizados sobre Portugal e os portugueses. Esses
discursos repetem, sem autoconsciência, como lugares-comuns, aquilo que no
salazarismo era um pensamento contra, um ataque ao liberalismo político em nome
de uma organicidade substancial do “povo português”, que correspondia à visão
rural e paroquial das virtudes dos portugueses.
Por isso, a frase polémica de D. Januário, se
entendida como uma comparação entre a ideia de povo que tinha Salazar e que tem
Passos Coelho, tem alguma razão de ser. Não tem toda, mas tem alguma. A
principal razão que diferencia Salazar e Passos Coelho nessa apreciação comum
da “bondade” do povo português é que Salazar a fazia com óbvio cinismo. Salazar
pensava, como um típico produto da nossa ruralidade ancestral, com “manha”, a
forma do cinismo dos camponeses. Por isso, Salazar
entendia que esse eventual estado natural de bondade do “povo português” não
era assim tão forte que não precisasse de ser “protegido” pela polícia política
e pela censura da contaminação vil da “política”. Os portugueses eram
bons, trabalhadores, aceitavam a pobreza virtuosa, assim como os bois no poema
de Afonso Lopes Vieira, em que se pode tirar os “bois” e pôr os portugueses que
dá o mesmo: