29.5.21

Marcelo não gostou

 


«Quando se comunica que se vem em bolha, é porque se vem em bolha. Senão não se diz que se vem em bolha. Diz-se vêm tantos, uns vêm em bolha, outros não. E depois tem de se explicar porque foi diferente. E tem de se ter a noção do exemplo que se dá", disse este sábado Marcelo Rebelo de Sousa.»
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Sinto-me a viver num ninho de cucos



 

Moro muito perto dos Pupilos do Exército, em Lisboa, e vejo da janela uns putos a disputar um desafio de futebol. Lá fora, com certeza porque há proibição de público, há vários pequenos grupos de pessoas que espreitam através de uma rede, certamente familiares dos ditos pupilos, alguns até empoleirados em tectos de automóveis.

Claro que não se trata de «Champions» de coisíssima nenhuma e deve estar quase a chegar a PSP para dispersar «o público» que está na rua.
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À espera do Diabo



 

«O conclave que esta semana juntou representantes da quase totalidade das subfamílias da Direita e da extrema-direita tem sido analisado, em vários quadrantes, de forma algo ligeira a partir de um facto incontestado: ali não se discutiram ideias que respondam aos grandes problemas com que se debate a economia e a sociedade portuguesas.

Todavia, puderam observar-se factos que merecem reflexão, não pelo impacto imediato que têm, mas sim pelos quadros perigosos que podem perspetivar.

Uns séculos atrás, num dos contextos políticos mais críticos que Portugal viveu ao longo da sua história, teve força a crença no miraculoso regresso de D. Sebastião. Como Deus não se mete nestas coisas jamais tivemos o Desejado, mas como obra do Diabo talvez a coisa possa acontecer. Neste encontro não faltou um candidato a desejado e não deixou de pairar na sala forte vontade de uma intervenção do mafarrico, que o faça regressar numa manhã de nevoeiro.

Realço cinco factos que nos evidenciam a situação política atual como mais complexa e difícil que aquela que tínhamos em 2015: i) na Direita tradicional uma parte está mais aberta à extrema-direita e outra já a integrou em dinâmicas partilhadas; ii) a evolução da situação política da União Europeia (UE) reforça este processo, e a União tem hoje problemas maiores que tinha naquela altura; iii) à Esquerda existe menos motivação e são menores as predisposições para compromissos entre as suas diferentes componentes; iv) os condicionalismos sociais, económicos, financeiros e orçamentais com que o país se depara são mais pesados; v) em 2015 iniciava-se uma nova governação com objetivos e metas programáticas para uma legislatura (mesmo que posteriormente se tenham mostrado insuficientes), o que criava dinâmica, quando hoje temos um Governo bastante desgastado, com vários membros a confirmarem o princípio de Peter e a confundirem governação com gestão de agendas do dia.

Quem conclui que a Direita não tem programa ou que "a realidade lhe retirou o programa" pode estar a laborar em dois erros convergentes. Primeiro, é mais que evidente a fidelidade programática da Direita às políticas de austeridade impostas na crise anterior e a sua predisposição para uma ofensiva contra os direitos e liberdades democráticas e contra o Estado na sua função de garante dos direitos sociais fundamentais: não o podem expor por agora porque os impactos da pandemia ainda estão muito vivos nas pessoas e mostraram a violência e a injustiça dessas políticas. Segundo, esta evidência pode evaporar-se rapidamente perante a inexistência de respostas do Governo nos planos do trabalho, do emprego, das políticas económicas e sociais, ou face a inversões de sentido súbitas por parte da UE, ou ainda, se houver um acentuar de desentendimentos à Esquerda.

Quase todas as análises concluem que o vazio de propostas que o encontro da Direita e da extrema-direita mostrou se consubstancia numa vitória de António Costa. Poderá ser, desde que o primeiro-ministro não se entregue ao papel de lebre na fábula de Esopo "A lebre e a tartaruga" e tome a sério a possibilidade de surgir uma intervenção do príncipe das trevas.

É indispensável que António Costa coloque o foco de toda a sua capacidade de análise e ação nas respostas aos problemas dos portugueses e não se deixe atrair demasiado por taticismos de gestão política.»

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28.5.21

Futebol e estupefacção



 

Ninguém previu, nenhuma autoridade responsável teve mesmo a certeza de que iríamos ver as imagens das ruas do Porto que as TVs nos mostram desde ontem, com multidões de ingleses que furaram todas as bolhas anunciadas, enchem ruas, esvaziam «finos» e provocam distúrbios? Ou estou enganada e tudo isto foi previsto e desejado para o PIB subir umas milésimas, mesmo que o Rt aumente algumas décimas?

E depois? Faz-se um inquérito para saber de quem foi a culpa.
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Ensino a distância


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Futebol

 

«Um dia, obviamente, os governos na Europa serão extensões dos clubes de futebol, votaremos em clubes, manifestações e conflitos serão em torno de clubes, talvez até paguemos impostos a clubes, haverá quem morra em frentes de guerra em nome de clubes, ruas terão nomes de heróis jogadores e presidentes treinadores, etc., etc.»

Miguel Vale de Almeida no Facebook
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28 de Maio de 1926 – Data a não ser esquecida

 


Recordo a data quase todos os anos, não só para preservar a memória, mas porque ela deixou marcas – talvez mais visíveis hoje do que há alguns anos.

Em 1926, um dia terrível e decisivo na nossa História marcou o fim da 1ª República e esteve na origem do Estado Novo. Todos os anos havia comemorações, mas duas ficaram na memória.

Foi num outro 28 de Maio, mais concretamente em 1936, no 10º aniversário da «Revolução Nacional», que Salazar proferiu um discurso que viria a ficar tristemente célebre: «Não discutimos a pátria...»





Ainda num outro aniversário – no 40º, em 1966 – o chefe do governo, então com 77 anos, viajou pela primeira vez de avião até ao Porto (entre os outros passageiros, acompanhado pela governanta) para assistir às celebrações que tiveram lugar em Braga.

Fez então um discurso que ficou célebre sobretudo pela expectativa que criou e que deixou o país suspenso - lembro-me como se fosse hoje!. Vale a pena ver a partir do minuto 30:44:

«Neste lindo dia de Maio, na velha cidade de Braga (…), ao celebrar-se o 40º ano do 28 de Maio (…), eis um belo momento para pôr ponto nos trinta e oito anos que levo feitos de amargurado Governo.» Depois de uma interrupção provocada por muitos gritos de protesto da assistência, continuou: «Só não me permito a mim próprio nem o gesto nem o propósito, porque, no estado de desvairo em que se encontra o mundo, tal acto seria tido como seguro sinal de alteração da política seguida em defesa da integridade pátria e arriscar-se-ia a prejudicar a situação definitivamente conquistada além-mar pelos muito milhares de heróis anónimos que ali se batem. É então mais que justo que os recordemos e saudemos daqui».





E ficou – até que uma cadeira cumpriu a sua missão histórica.
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Multitasking? Limitem-se a sorrir e acenar

 


«Sempre que uma característica intrinsecamente feminina começa a ter muita publicidade, já sei que, algures, vai acabar mal para mim. À conta da aparente superior capacidade das mulheres para suportar a dor, há muito desmentida, negaram-me o exercício do meu direito fundamental a um parto sem sofrimento. Esqueci-me do primeiro mandamento na administração da epidural: contorcer-se de dores logo à entrada da maternidade, com um ar de ataque de histerismo iminente se não nos derem algo nos próximos segundos. Em pleno século XXI, aterrei no século XIX — porque, lá está, temos todas uma experiência milenar do programa.

Há agora quem nos queira impingir o multitasking — uma competência inata para realizar diferentes atividades em simultâneo. Os homens, coitados, devido ao seu passado de caçadores e guerreiros, lá vão desempenhando uma série de tarefas ao longo do dia, mas só uma de cada vez. Em contrapartida, as mulheres, que ficavam na aldeia com um bebé em cada braço, desenvolveram uma aptidão natural para prestar atenção a várias coisas ao mesmo tempo. Talento que, afiançam-nos, herdamos todas à nascença.

Os estudiosos do evolucionismo garantem não se tratar de um mito, apesar de reconhecerem o condão da sociedade em aproveitar as qualidades femininas para nos esmifrar. Talvez esteja na hora de tirar as devidas ilações e agradecer bem-educadamente, mas declinar firmemente o elogio. Sabendo que vai acabar connosco a dar a sopa com uma mão, enviar um e-mail com a outra e balançar um bebé a chorar com o pé direito enquanto recitamos a tabuada com o mais velho, mais vale prevenir do que remediar — ao reparar no nosso pé esquerdo livre, alguém ainda se vai lembrar de o aproveitar para nos pedir a confeção de uma deliciosa e nutritiva refeição.

Não estou a denunciar um necessário complô do heteropatriarcado contra as mulheres. Antes do advento do GPS, quantos homens acabaram perdidos à custa do seu inato sentido de orientação? Um digno herdeiro dos caçadores e guerreiros só precisa do mapa para ir do ponto A ao ponto B. Jamais abrirá a janela para pedir ajuda, mesmo que acabe em Espanha a encher o depósito. Quantos têm em casa uma estante da IKEA torta por abandono das instruções a meio? Quando se trata, na realidade, de uma questão de geografia: só os portadores de genes escandinavos estão em situação de arriscar a montagem de um carrinho Råskog sem seguir todos os passos preestabelecidos — sim, há estudos a suportar esta afirmação.

Ao ouvir muito barulho a propósito de uma competência inerente ao género feminino, aconselha-se imediato ceticismo. Podem louvar à vontade a minha vocação para fazer tudo ao mesmo tempo, vou manter que só dou conta de um recado de cada vez — e com dificuldade. Caso insistam, estou em posse de vários estudos a demonstrar como homens e mulheres são igualmente improdutivos quando obrigados ao multitasking.

O mito pode, inclusive, pôr em risco a vida em sentido literal — e também tenho estudos a comprová-lo. Como a obstetra que assistiu ao parto acima descrito só acalmou com a chegada de uma parteira, cheguei a duvidar se não seria ortopedista. Perante a minha perplexidade, explicou que, sozinha, não conseguia concentrar-se devidamente na sua função principal e verificar se era necessário realizar um ato médico. Tivesse ela acreditado piamente que era capaz de fazer um parto enquanto mantinha um olho no monitor cardíaco fetal e algo podia, de facto, acabar a correr mal.»

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27.5.21

Holigans: o Porto já está assim


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Mia Couto

 

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Ainda sobre a MEL

 


«A terceira convenção do Movimento Europa e Liberdade que se realizou nos últimos dias foi excelente para separar o essencial do acessório. À primeira vista, estiveram lá representados projetos políticos com diferenças importantes entre si: do liberalismo na economia e nos costumes ao reacionarismo saudosista do Estado Novo e do passado colonial, da democracia cristã ao novo radicalismo trauliteiro. Na prática, porém, uma e só uma preocupação animou esta convenção: o regresso da direita ao poder. (...) Que não haja dúvidas: independentemente das diferenças mais ou menos superficiais em torno de outras questões, é mais o que une do que o que separa. E o que une é a sua natureza de classe: menos redistribuição do rendimento e mais abertura de mais esferas da vida social (saúde, educação, pensões,…) à rendibilidade privada. (...) Acima de tudo o facto de, sempre que necessário, a direita tirar as luvas e unir-se em torno da sua matriz fundamental: a salvaguarda e aprofundamento do privilégio.»
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Por este Rio abaixo



 

«Há qualquer coisa de trágico – e ao mesmo tempo de quase comovente — em Rui Rio. Aceita aparecer no chamado “congresso das direitas” contente por não haver uma tabuleta a dizer “congresso das direitas”, porque como não é de direita não iria conseguir entrar; repete o mesmo discurso sobre dívida, défice, crescimento e exportações que tem há anos (recusando sugestões para que o discurso do PSD deixe de estar centrado nas finanças); anuncia que o seu programa para salvar Portugal passa por um acordo com o PS e que o tal programa — que é o de sempre, reforma do sistema político e do sistema da justiça — é impossível. “O PS não quer reformar nada”: foi o único momento, o das críticas ao PS e não o enunciado do programa, em que o congresso das direitas acedeu a aplaudi-lo. Depois, diz que já tomou a vacina da Astrazeneca, está muito bem e vai-se embora. Passos Coelho, o fantasma presente na sala, acompanha com carinho o sucessor à saída, numa quase metáfora do que pode ser o futuro do PSD, a avaliar pelo saudosismo passista presente na velha FIL.

Sentado na primeira fila, para onde saltou rapidamente depois de na terça-feira ter começado por sentar-se cá mais atrás, Passos Coelho foi um catalisador do sentimento de orfandade existente no PSD, expresso em aplausos e homenagens ao antigo líder enquanto o nome de Rui Rio ou era omitido ou atacado.

No fim de contas, a convenção serviu para sinalizar que Passos Coelho é um unificador das várias direitas na órbita do PSD — e a sua disciplinada presença dentro da sala quase do princípio ao fim funcionou como um cartaz. A reunião serviu também para institucionalizar o partido da extrema-direita, o Chega, e ajudar a Iniciativa Liberal a percorrer o seu caminho — pelo menos enquanto D. Sebastião não se levantar da primeira fila da assistência e decidir subir ao palco. Com André Ventura a declarar querer ser “Governo” e a ameaçar que a direita não voltaria ao poder sem o Chega (e assinava também o seguro de vida do PS e de António Costa) os presentes entusiasmavam-se e aplaudiam.

Foi também um palco excelente para mostrar um Paulo Portas moderadíssimo, candidatável a Belém e contra a democracia transformada em “gritaria" (longe vão os tempos do CDS do triunvirato Manuel Monteiro/Paulo Portas/O Independente e a sua específica gritaria numa época sem redes sociais). Da presença obnóxia de militantes do PS num encontro para discutir a reconfiguração das direitas, útil só o conselho de Henrique Neto: “Esta reunião tem por trás de si o desejo de substituir um Governo de esquerda por um Governo de centro-direita. É preciso ver quem está em condições de liderar. Eu, se fosse ao dr. Rui Rio, limitava-me a pôr numa folha de papel dez causas e propunha-as ao centro-direita do país”. Até há causas, mas são impossíveis.

Discurso inteligente e a sair da estranha amálgama que pairou na “reconfiguração das direitas" foi o de Miguel Poiares Maduro a estabelecer as fronteiras que Rui Rio não quis fazer, contra os que “entendem que a necessidade de oferecer uma alternativa se sobrepõe à qualidade dessa alternativa”. Não é o seu caso: “De pouco serve unir todo o espaço não socialista se as diferenças no seu seio forem tão ou mais graves do que as que o separam do outro lado”.

Quanto ao resto, é de lembrar o papel patriótico dos “founding fathers” da direita portuguesa quando integraram os saudosistas do Estado Novo nos seus partidos — o PSD “socialista” de Sá Carneiro e o CDS centrista de Freitas do Amaral. A adesão ao regime deposto sempre existiu — “O que era preciso era outro Salazar” sempre foi um elemento do vox populi — e continua a aparecer em eventos da direita, mesmo que poeticamente. A historiadora Fátima Bonifácio encerrou a sua intervenção a citar Fernando Pessoa sobre o ditador: “A sua simplicidade dura e fria pareceu qualquer coisa de bronze e fundamental”. Tinha dito.»

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26.5.21

Sobre Fátima Bonifácio: «Tenho dito»



 

Até agora, da reunião do MEL, foi isto, e apenas isto, que ouvi e que repesquei no Twitter: o encerramento do discurso de Fátima Bonifácio que termina a falar de Salazar. Também «Tenho dito!»: onde ela já vai!
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Enfrentar de costas?

 


Num jornal de referência (nem digo qual porque não interessa) esbarro com este título. Será que nem quem escreveu o texto, nem e sobretudo o editor do jornal, sabem que é difícil «enfrentar» o que quer que seja «de costas»?

Este tipo de coisas tiram-me a fé, a esperança e não me inspiram quaisquer sentimentos de caridade. A sério.
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A lição de dignidade da família Coxi



 

«A dignidade, quando nasceu, não era para todos. Durante séculos, o conceito de dignidade aplicava-se apenas a uns poucos, a que hoje chamamos — num vestígio da antiga acepção restrita da palavra — os dignitários. Um cardeal tinha dignidade de cardeal, um duque de duque. Quanto aos outros, que dignidade lhes era reconhecida ou atribuída? Nenhuma.

Demorou muito tempo até que a palavra dignidade ampliasse o seu sentido para abarcar toda a gente. Um primeiro exemplo será certamente o da Oração sobre a dignidade do homem, do renascentista Giovanni Pico della Mirandola, que nasceu em 1463 e foi assassinado em 1494. Começou aí a fazer caminho — um caminho longo e cheio de contra-curvas — a ideia de que todos os humanos têm uma dignidade que lhes advém do mero facto de serem humanos, e não de nenhum privilégio, herança ou cargo. Hoje esta ideia está logo no primeiro artigo da Declaração Universal de Direitos Humanos. Ocupa um lugar central em constituições do pós-guerra como a da República Federal da Alemanha, que declara que “a dignidade humana é inviolável” — não por acaso, porque se entende que os grandes crimes contra a humanidade do século XX foram, desde logo, violações do princípio de que todos os humanos têm dignidade. E está também na nossa Constituição, onde logo no Artigo 1.º se pode ler que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana”.

E assim não foi coisa pouca o que se decidiu esta semana num tribunal português, no qual se lavrou uma sentença num caso opondo uma família, de nome Coxi, ao partido de extrema-direita Chega e ao seu líder André Ventura. Recapitulemos os factos. Os Coxi são uma família de moradores no Bairro da Jamaica que tirou no início de 2019 uma fotografia com o presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Na recente campanha eleitoral para as presidenciais, no debate entre o recandidato Marcelo Rebelo de Sousa e o candidato da extrema-direita, este brandiu essa foto — de uma família de gente negra morando num bairro pobre — acusando Marcelo Rebelo de Sousa de se ter feito retratar com “bandidos” e a “bandidagem”. Os Coxi foram assim sujeitos, em pleno debate das presidenciais visto por milhões de pessoas em canal aberto de televisão, a um ataque às suas honras e reputações. Não porque houvesse qualquer indicação de que fossem “bandidos” ou “bandidagem”, mas porque o candidato da extrema-direita terá achado que, sendo os Coxi negros e morando num bairro pobre, não precisariam de ser tratados com a dignidade que têm e merecem.

Os Coxi poderiam ter encolhido os ombros e deixado passar aquele ataque humilhante, atribuindo-o ao triste estado da política e do espaço público na nossa época. Também poderiam ter escolhido ter pedido uma indemnização pecuniária — a que teriam todo o direito — pelos danos aos seus bons nomes e reputação. O caminho que escolheram não foi um, nem o outro, mas o mais trabalhoso: os Coxi foram a tribunal exigir, não dinheiro nem uma indemnização material, mas um pedido de desculpas e uma retractação pública ao político da extrema-direita e ao seu partido. Não quiseram nada de material para eles, mas apenas a garantia de que a justiça defenderia os seus direitos individuais e coletivos à dignidade. Ao fazê-lo (com o apoio voluntário e não-remunerado da sua advogada Leonor Caldeira) os Coxi estiveram a trabalhar por nós todos — pelo nosso direito a um espaço público um pouco mais salubre, menos infetado pelo racismo e pelo oportunismo de vigaristas políticos.

Chegados aqui, o tribunal poderia ter feito o que muitos defendem que se faça com o partido da extrema-direita e com o seu líder — dar-lhe tratamento especial, com o argumento de que se for condenado o senhor se vitimizará. Mas isso significaria o mesmo que dizer que a Lei e a Constituição existem, mas não se devem aplicar por conveniência política, o que daria aos Coxi menos proteção jurídica do que aquela que todos os cidadãos merecem.

Felizmente, não foi este o caminho seguido. A juíza que julgou o caso deu como provada a violação dos direitos de personalidade dos Coxi e condenou o político de extrema-direita e o seu partido a publicar pedidos de desculpas e retractações públicas nos mesmos canais onde as declarações ofensivas foram produzidas. Se não o fizerem no prazo de trinta dias, o partido e o político pagarão cada um setecentos e cinquenta euros de multa por cada dia de atraso. Se repetirem as declarações ofensivas, pagarão cinco mil euros por cada vez que o fizerem.

E assim, graças aos Coxi, o nosso ambiente fica um pouco mais saudável e a nossa política menos indigna. Caros Aurora, Fernando, Higina, Hortencio, James, Julieta e Vanusa Coxi, queiram por favor aceitar deste vosso concidadão o meu muito obrigado.»

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25.5.21

O cão vai buscar um livro

 

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O Bloco só é relevante se for irrelevante, percebem?



 

«Em 2015, o PS conseguiu um acordo com a Esquerda parlamentar. A sua estabilidade deveu-se à existência de um compromisso escrito com medidas exigentes que foram cumpridas na legislatura. Então, fruto da absoluta necessidade de conseguir o apoio da Esquerda parlamentar para formar Governo, o PS admitiu ceder no seu programa e aceitou medidas novas, até aí impensáveis. (…)

Mesmo sem acordo, o Bloco viabilizou o Orçamento de 2020, bem como o retificativo do mesmo ano. As medidas acordadas não foram, na sua maioria, cumpridas. No final de 2020, ano de pandemia, o Governo tinha deixado por executar 7000 milhões de euros dos orçamentos do ano.

Apesar disto, o Bloco procurou um novo entendimento para o Orçamento de 2021, centrado em quatro eixos: eliminação das leis laborais deixadas pela troika (contra as quais o PS tinha estado), um novo apoio social que protegesse quem não tem subsídio de desemprego, um regime de exclusividade para fixar profissionais no SNS e a eliminação do OE da transferência para o Novo Banco. O Governo rejeitou estas medidas. Elaborou um Orçamento fraco, que coloca Portugal na lista de países que pior responderam à crise, mas, ainda assim, exigiu o voto obediente do Bloco. (…)

A relevância do Bloco está em não ceder a chantagens e não transigir no que conta. (…) Entendo que o PS chame protesto ao que não seja vassalagem. Eu chamo-lhe exigência. É com ela, mas também com vontade de entendimentos sérios, que podem contar sempre. Afinal, é esse o nosso mandato.»

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José Mário Branco

 



Seriam 79. 
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A direita na sua bolha



 

«Começa esta terça-feira mais uma sessão da “Aula Magna das Direitas”, como lhe chama a comunicação social. O encontro do Movimento Europa e Liberdade, que não conta com a “direita fofinha” mas terá a “esquerda corajosa” – linguagem de grande parte dos promotores, que só apreciam a heterodoxia do lado de lá da barricada – tem apenas um significado: consequente com o seu discurso e várias decisões recentes, Rui Rio coloca-se no mesmo campo político de André Ventura. “Aula Magna das Direitas” é uma imagem que os jornalistas foram buscar às sessões que, à esquerda, se realizaram da Reitoria da Universidade de Lisboa, nos anos duros da crise económica. O paralelo não é fácil, porque a esquerda estava em crescendo na sua capacidade de fazer oposição e o Governo vivia uma grande impopularidade. Agora, a oposição de direita está em crise e António Costa é um primeiro-ministro popular.

De tanto ver subidas e descidas de cada partido de direita pouca gente presta atenção a um facto: com uma pandemia e uma crise económica, a direita parlamentar totaliza, segundo a última sondagem da Intercampus, 37,1% dos votos. Se é relevante que o PSD, com 21,7%, perca votos para a extrema-direita (com 8,3%), é bem mais relevante que não consiga sequer beliscar o centro. A crítica que se faz a Rui Rio é a de que é pouco firme e por isso não segura o voto da direita que está irritada com António Costa. O que devemos perguntar é porque é que não consegue que o centro se irrite com a esquerda.

Já escrevi várias vezes sobre o disparate estratégico e tático de Rui Rio ir abrindo cada vez mais as portas a entendimentos com o Chega. Esse discurso garante-lhe perdas para os dois lados. Os que querem uma direita mais dura, mas capaz de governar, percebem que o voto no Chega não é perdido e rumam para ele. Os que, querendo uma alternativa ao PS, não querem um governo que dependa de Ventura, percebem que o PSD não lhes dá essa garantia. Rui Rio perde a direita para o Chega e o centro para o PS.

Mas há uma coisa um pouco mais profunda do que isso. A direita está cada vez mais tribal no seu discurso. Parece exuberante e forte nas redes sociais, onde o exagero se dá bem. Mas o país é outra coisa. Metida numa bolha onde se ouvem uns aos outros numa espiral de indignação que não é acompanhada pela maioria dos portugueses, quase todos os seus protagonistas falam em modo histriónico.

Só nas últimas semanas, Rui Rio elogiou um discurso de Alberto João Jardim em que o ex-presidente do governo regional da Madeira comparou António Costa a Nicolas Maduro (na verdade, gostou no discurso porque batia nos seus opositores internos, únicos que realmente lhe interessam). João Cotrim Figueiredo deu a entender que achava que o Papa Francisco é socialista, no que foi acompanhado por Ventura. Carlos Moedas falou de “medo” em Lisboa e disse que a esquerda o odiava. Até Duarte Pacheco, candidato a Torres Vedras, disse que ali se vivia uma ditadura socialista para depois da morte do “ditador” lhe tecer rasgados elogios, mostrando que a palavra “ditadura”, que em tempos era utilizada com gravidade, não tem grande significado nos discursos de campanha. E já nem falo da candidata para a Amadora, que há quatro anos seria considerada inaceitável por todos os partidos parlamentares, a começar pelo CDS (que retirou o apoio a André Ventura, em Loures).

A direita vive o seu PREC e, como Vasco Gonçalves em Almada, parece acreditar que este é o tempo em que o processo revolucionário depende de uma minoria e deve radicalizar-se. Vemos todos os sinais: a grupusculização que outrora foi apanágio da esquerda, a divisão entre a direita a sério e a direita “fofinha”, a substituição do programa pelo panfleto ideológico (de que a Iniciativa Liberal é um bom exemplo), a hiperbolização do discurso, de que a banalização de termos como “ditadura” ou “censura” são exemplos. Mas a esmagadora maioria dos portugueses não vive no Twitter e não se sente a caminho da Venezuela.

Ao contrário do que os mais excitados pensam, isto não é a direita a reerguer-se, é um beco sem saída, que a afasta, no discurso e nos resultados, da maioria do país. Quando Rui Rio faz ironia com as suas quedas nas sondagens, apesar do Novo Banco e de Odemira, apenas demonstra não perceber os efeitos do caminho que está a percorrer. O problema não é o PSD ter 22%, é toda a direita ter 37%. A radicalização está a fazer crescer o extremo, mas a encurtar o conjunto da direita. E ao ouvir os vários candidatos autárquicos do PSD parece ser uma corrida para o abismo.»

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24.5.21

Bielorrússia

 

E não é que já li nas redes sociais mais do que um texto, e respectivos comentários, de gente encartada que defende, ou pelo menos justifica, o que foi feito em Minsk com a aterrissagem e captura de Protasevich? Passei de mansinho e calada, que eu não ando aqui para aturar extraterrestres ou recém chegados de uma Terra plana.
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Bob Dylan octogenário?

 


É reviver o mundo ao contrário.
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Explique-me lá este terrorismo de Estado, se não for incómodo

 


«O título do PÚBLICO, na sua secura jornalística, dizia tudo: “Jornalista bielorrusso detido após desvio de avião para Minsk, Europa pede explicações.”

Explicações para quê? Um avião de uma companhia com sede na União Europeia, a Ryanair, parte de uma capital da UE, Atenas, para aterrar noutra capital da UE, Vilnius, na Lituânia. A bordo vai Roman Protasevich, um jovem de 26 anos que fundou um canal de notícias dedicado a apoiar o movimento pró-democracia no seu país, a Bielorrússia — cujo espaço aéreo o avião da Ryanair estava a sobrevoar quando foi intercetado por um caça das Forças Aéreas da Bielorrússia e forçado a aterrar em Minsk, capital da Bielorrússia, sob o pretexto de um falso alarme de bomba. A operação tem todas as marcas da polícia política da Bielorrússia, que ainda tem as iniciais KGB, e com toda a probabilidade terá sido ordenada diretamente pelo ditador Alexander Lukashenko. À hora a que escrevo esta crónica, a informação é a de que o avião aterrou finalmente em Vilnius — mas sem Roman Protasevich a bordo. O jovem ativista irá provavelmente ser sujeito a tortura, como foram milhares de outros bielorrussos nos últimos meses, e depois será “julgado” pelos “crimes” de terrorismo e traição, que podem levar à pena de morte, se sobreviver à detenção.

Temos, portanto, um ato de terrorismo e pirataria de Estado, com o sequestro de um cidadão que confiou na segurança dos transportes sob jurisdição da UE. Não há aqui nada que precise de ser explicado. O que há é um ato de uma ilegalidade clara que precisa de ser revertido, sob pena de sanções imediatas. Esta é a escala de instrumentos diplomáticos, legais e políticos a serem usados gradualmente até uma situação destas estar resolvida: chamada de todos os embaixadores da UE às suas capitais; alargamento da lista de sanções económicas a Lukashenko e aos seus aliados, que ainda não voltaram a ter as suas contas bancárias congeladas; início de procedimentos criminais contra Lukashenko, os seus aliados e os agentes da KGB em tribunais europeus; emissão de mandados de captura internacionais; bloqueio do sistema de transferências interbancárias SWIFT, que está sob jurisdição da UE, e que deixaria o governo bielorrusso fora das redes financeiras internacionais; e por aí adiante, até à retirada do reconhecimento formal de Lukashenko como presidente da Bielorrússia. Tudo isso poderia ser decidido já hoje, na reunião do Conselho Europeu que terá início em Bruxelas.

Mas Lukashenko pode dormir descansado. Da reunião do Conselho Europeu pode até nem sair um comunicado conjunto, mesmo quando Roman Protasevich pode estar já a ser torturado ou ter a sua vida em perigo iminente. Tal como na semana passada não saiu um comunicado conjunto da reunião de ministros de Negócios Estrangeiros da UE, quando dezenas de palestinianos morriam sob os bombardeamentos do Exército israelita. E pela mesma razão: porque as reuniões do Conselho têm infiltrado um cavalo de Tróia que é mais aliado de Putin, Lukashenko e qualquer ditador do que da própria UE de que faz parte. Foi Viktor Orbán da Hungria que vetou o comunicado da semana passada; é Viktor Orbán da Hungria que, se não puder vetar, diluirá em muito a reação da UE ao que se passou ontem com o voo Atenas-Vilnius; é Viktor Orbán da Hungria que está agora a ameaçar vetar até a renovação do acordo internacional da UE com mais de oitenta países da África, Caraíbas e Pacífico, sem qualquer interesse nacional evidente que não seja bloquear a Europa para beneficiar a China. Os outros governos no Conselho mimaram Orbán durante anos, fecharam os olhos à sua deriva autoritária e à sua ostensiva corrupção, e agora não se podem queixar. Não foi por falta de terem sido avisados.

Assim, sem a necessária unanimidade para tomar decisões de política externa com impacto real em casos destes, a diplomacia da União Europeia fica reduzida a tweets e posts censurando os acontecimentos. É uma diplomacia de redes sociais, e nem nisso é competente: ainda ontem a comissária europeia com a pasta dos Transportes, a romena Adina Valean, publicou um tweet regozijando-se pela “grande notícia para toda a gente” que era o avião ter levantado de novo voo para Vilnius — sem sequer se lembrar que para Roman Protasevich e as outras cinco pessoas, aparentemente incluindo a sua namorada, sequestradas em Minsk as notícias podem ser consideradas tudo menos boas.

O problema é que os ditadores não ligam a diplomacia de tweets — e até falam com Orbán diretamente. Sabem que a UE está bloqueada, e agem em conformidade. E se, por uma vez, o Conselho Europeu agisse também — dando seguimento ao artigo 7.º contra o governo húngaro pelas suas violações do Estado de direito democrático? Aí está a mensagem mais forte que poderia ser ouvida não só em Budapeste, mas em Minsk e Moscovo também. Nem seriam precisas explicações.»

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23.5.21

Georges Moustaki calou-se há oito anos

 


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Pergunta incómoda

 

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Há uma emergência em Lisboa. Há mesmo?

 


«Lisboa é a minha segunda cidade - tenho família, amigos, trabalhei alguns anos na capital. Por isso as três situações covid que me reportaram esta semana fazem recordar janeiro: problemas covid numas filmagens; turma enviada para casa com casos covid; problemas na organização de um jogo de futebol distrital este domingo porque foram detetados jogadores com covid. Serve de amostra? Não. Mas ao ler a notícia TSF de que a Administração Regional de Saúde de Lisboa ainda só tomou conhecimento de um caso na qual que é admitido como provável os festejos do Sporting, julgo que fica demonstrado como é impossível o trabalho dos rastreadores em circunstâncias destas. Ao mesmo tempo, torna-se evidente a culpa de se participar num evento assim e admiti-lo a seguir.

Esta loucura podia estar pintada de verde ou azul - ou até de vermelho (veremos o que sucede logo à noite). Haveria, erradamente, sempre alguns milhares na rua. Mas regresso a ela porque ela reflete mais do que futebol: a desigualdade social e regional da pandemia.

Três dados enquadram o que se passou: Lisboa é de longe a cidade com mais teletrabalho (calcula-se que 60% do total do emprego). Isso ajuda muito a evitar a propagação da doença e aumenta a sensação de segurança. Não fosse o absurdo natalício e Lisboa e Vale do Tejo nunca teria ultrapassado o Norte - onde o teletrabalho vale menos do que a ida para as fábricas e construção.

Em segundo lugar, a enorme presença de emprego ligado ao Estado, com rendimento assegurado, ou emprego em grandes empresas, diminui significativamente o stress de quem está a viver a pandemia - e isso permite ir para a rua festejar títulos porque o emprego não está em causa, mesmo que se fique duas semanas de baixa covid.

Por fim, os dois primeiros pontos traduzem-se num rendimento per capita na Área Metropolitana de Lisboa de 30 por cento acima da média europeia. Todas as outras regiões portuguesas estão abaixo, com o Norte em último lugar - 25 por cento abaixo da média europeia. Uma loucura assim é mais fácil quando o rendimento não é um problema na agenda. Ou não - e Portugal é um caso de insanidade de Norte a Sul. Falta provar.

Na ressaca da festa ficam em causa, em Lisboa, os trabalhadores que estão nas obras e fábricas, os que vivem do comércio e dos shoppings, do turismo, etc. Todos a um passo de sofrerem consequências muito graves se o alastramento da doença não for estancado de imediato como uma emergência.

Uma vez mais será despejado dinheiro num incêndio totalmente previsível, negligenciado no topo da pirâmide pela ministra adjunta Mariana Vieira da Silva (que substitui António Costa na covid), pelo inevitável ministro Cabrita e, claro, pelo presidente da Câmara de Lisboa - que não quis enfrentar sozinho a omissão do Governo ao "não" ao Marquês. Quanto ao Sporting, como ouvimos esta semana, fez tudo bem...

Que os infetados covid da festa fiquem em casa a receber 100% do salário, apesar da sua loucura, nada a dizer, é Portugal. Mas os números de contágio são "apenas" estes? O Governo quer mesmo saber o que se passa? Há realmente uma diminuição de testagem, apesar de um evento daquela magnitude? É desesperante darmo-nos ao luxo de falhar no mais fácil. Imaginem o impacto em Lisboa (e na imagem do país) de um recuo do confinamento na capital portuguesa. É de fugir.»

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