«Benachem Begin, antigo líder do grupo radical Irgun, responsável pelo atentado bombista ao Hotel King David (o terrorismo é sempre uma questão de perspetiva), e que viria a ser o líder histórico da direita israelita (e fundador do Likud), visitou Nova Iorque em 1948. Não foi recebido apenas com aplausos. Uma carta assinada por Hannah Arendt, Albert Einstein, Sidney Hook e mais 25 notabilíssimos judeus (lista no fim da carta) era clara na sua avaliação do Herut (Liberdade), partido de Begin que daria origem ao Likud, chamando à atenção para o comportamento desta ala radical para com os árabes, que o massacre de Deir Yassin tão bem ilustrara.
Para quem distingue, e bem, palestinianos moderados e radicais, o Hamas da fragilizada Autoridade Palestiniana e a Fatah, é importante perceber que também o lado israelita não é homogéneo, apesar de já ter sido muito mais pluralista. O sionismo não é todo igual, ao contrário do que muitos indefetíveis e críticos de Israel acreditam, apesar de ser cada vez menos diferente.
O problema não é o sionismo. O sionismo de esquerda foi emancipatório, generoso, progressista, inspirador do espírito dos kibutzim e responsável pela criação das principais instituições que hoje existem em Israel, como as IDF, que começaram como milícias clandestinas para proteger os judeus da Segunda Aliá – a migração para Israel entre 1904 e 1914 –, apesar de rapidamente problemática na relação com os árabes. O problema é esta versão revisionista, por natureza exclusiva e “chauvinista”, para usar um termo da carta que seguidamente transcrevo, em português. Um sionismo que, na altura, ainda era minoritário.
A vitória e radicalização do sionismo revisionista, representada pelo Likud e por todos os herdeiros Begin, determina o impasse neste conflito. Reparem que não digo que este conflito existe por causa deles. Ele é anterior ao nascimento do próprio Estado de Israel – o que torna confrangedoramente ignorante a afirmação de Marques Mendes, que “o que interessa é quem começou a guerra”. A guerra tem mais de 70 anos, teve poucos intervalos e é quotidiana e imparável há bastante tempo.
Foi o Likud de Sharon e Netanyahu, depois da bem-sucedida eliminação de Yitzhak Rabin (que não deixou de ter os seus pecadilhos políticos na relação com os palestinianos), aliado a forças ainda mais extremistas, que acabou por determinar o que Israel é hoje. E é deste Israel que falamos.
Para perceber de onde vêm os que hoje governam Israel, tratados como moderados pelos media, grande parte do meu texto não é de hoje, nem meu. É a reprodução integral da carta de 26 judeus, reagindo à chegada de Menachem Begin a Nova Iorque. Escrita a 2 de dezembro e publicada a 4 do mesmo mês de 1948, no The New York Times (original aqui), com algumas coisas que hoje se podem considerar um excesso de linguagem (como chamar “fascista” a Begin e ao seu partido), sobretudo tendo em conta a proximidade do Holocausto, ela tem muito de premonitório. E vale a pena ser relida. O que está entre parêntesis retos são explicações minhas.
“Aos editores do New York Times:
Entre os mais perturbadores fenóômenos políticos dos nossos tempos está a emersão, no recentemente criado Estado de Israel, do "Partido da Liberdade" (Tnuat Haherut), um partido político muito semelhante na sua forma de organização, métodos, filosofia política e apelo social aos partidos nazis e fascistas. Foi formado a partir dos membros e seguidores do antigo Irgun Zvai Leumi, uma organização terrorista, de direita e chauvinista na Palestina.
A actual visita de Menachem Begin, líder deste partido, aos Estados Unidos é obviamente calculada para dar a sensaçãodo apoio americano ao seu partido nas próximas eleições israelitas, e para fortalecer laços políticos com elementos sionistas conservadores nos Estados Unidos. Vários americanos com reputação nacional emprestaram seus nomes para saudar sua visita. É inconcebível que aqueles que se opõem ao fascismo em todo o mundo, se estiverem correctamente informados sobre o historial político e as perspectivas do Sr. Begin, possam acrescentar os seus nomes e apoio ao movimento que ele representa.
Antes que danos irreparáveis sejam causados através de contribuições financeiras, manifestações públicas em nome de Begin e a criação na Palestina da impressão de que um grande segmento da América apoia elementos fascistas em Israel, o público americano deve ser informado sobre o histórico e os objetivos de Sr. Begin e seu movimento.
As declarações públicas do partido de Begin não são de forma alguma indicadoras do seu verdadeiro carácter. Hoje falam de liberdade, democracia e anti-imperialismo, enquanto recentemente pregavam abertamente a doutrina do estado Fascista. É nas suas acções que o partido terrorista revela o seu verdadeiro carácter; a partir de suas ações passadas, podemos julgar o que podemos esperar que faça no futuro.
Um exemplo chocante foi o seu comportamento na aldeia árabe de Deir Yassin. Esta aldeia, fora das estradas principais e rodeada por terras judaicas, não participou na guerra e até lutou contra bandos árabes que queriam usar a aldeia como sua base. A 9 de abril [de 1948], bandos terroristas atacaram esta pacífica aldeia, que não era um objetivo militar nos combates, mataram a maioria dos seus habitantes (240 homens, mulheres e crianças) e mantiveram alguns deles vivos para desfilarem como prisioneiros pelas ruas de Jerusalém [o massacre teve um forte impacto no êxodo de palestinianos, como se pretendia]. A maioria da comunidade judaica ficou horrorizada com a proeza, e a Agência Judaica enviou um telegrama de desculpas ao rei Abdullah da Transjordânia. Mas os terroristas, longe de se envergonharem do seu acto, orgulharam-se do massacre, divulgaram-no amplamente e convidaram todos os correspondentes estrangeiros presentes no país a verem os cadáveres amontoados e a destruição geral em Deir Yassin. O incidente de Deir Yassin exemplifica o carácter e as acções do Partido da Liberdade.
Na comunidade judaica pregam uma mistura de ultranacionalismo, misticismo religioso e superioridade racial. Tal como outros partidos fascistas, têm sido usados para quebrar greves e pressionado para a destruição de sindicatos livres. No seu lugar, propõem sindicatos corporativos segundo o modelo fascista italiano.
Durante os últimos anos de esporádica violência anti-britânica, os grupos IZL [sigla hebraica do Irgun a que também se chamava Etzel] e Stern [Stern Gang ou Lehi, uma dissidência ainda mais radical do Irgun, por este ter suspendido os ataques aos britânicos durante a II Guerra Mundial, ilegalizado na fundação de Israel, amnistiado pouco tempo depois e com direito a uma condecoração militar para os seus antigos membros desde 1980] inauguraram um reinado de terror na comunidade judaica palestiniana. Professores foram espancados por falarem contra eles, adultos foram baleados por não deixarem que os seus filhos se juntassem a eles. Com métodos de bandidos, espancamentos, quebra de janelas e roubos generalizados, os terroristas intimidaram a população e exigiram um pesado tributo.
A base do Partido da Liberdade não participou nas conquistas para a construção na Palestina. Não recuperaram terras, não construíram colonatos e só prejudicaram a atividade de defesa judaica. Os seus tão divulgados esforços de imigração foram mínimos e sobretudo dedicados a trazer compatriotas fascistas.
As discrepâncias entre as ousadas afirmações que Begin e o seu partido agora fazem e o seu registo do seu passado na Palestina não têm a marca de um partido político comum. Têm o carimbo inconfundível de um partido fascista para quem o terrorismo (contra judeus, árabes e britânicos) e a deturpação são os meios, e um ‘Estado Líder’ é o objectivo.
À luz destas considerações, é imperativo que a verdade sobre o Sr. Begin e o seu movimento seja dada a conhecer a este país. É ainda mais trágico que a liderança superior do sionismo americano se tenha recusado a fazer campanha contra os esforços de Begin, ou a expor aos seus constituintes os perigos para Israel do apoio a Begin.
Os abaixo-assinados, assim, utilizam este meio para apresentar publicamente alguns factos relevantes sobre Begin e o seu partido; e para exortar todos os envolvidos a não apoiarem esta mais recente manifestação do fascismo.
Isidore Abramowitz, Hannah Arendt, Abraham Brick, rabino Jessurun Cardozo, Albert Einstein, Herman Eisen, Hayim Fineman, M. Gallen, H.H. Harris, Zellig S. Harris, Sidney Hook, Fred Karush, Bruria Kaufman, Iirma Lindheim, Nachman Maisel, Seymour Melman, Myer D. Mendellson, Harry M. Oslinsky, Samuel Pitlick, Fritz Rohrlich, Louis P. Rockeer, Ruth Sagis, Itzhak Sankowsky, Isaac Jacob Schoenberg, Samuel Shuman, M. Singer, Irma Wolfe, Stefan Wolfe.
Nova Iorque, 2 de dezembro de 1948”
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PS: Sobre o caminho seguido por Israel, escrevi, em maio de 2018, no 70º aniversário da nação que corporizava o extraordinário sonho de finalmente dar aos judeus uma casa onde tivessem direito à paz, à segurança e à cidadania plena que lhes foram negadas por séculos, um longo texto que pode ser útil para enquadrar a minha posição.»