21.10.23

Portas, ainda

 


Porta Arte Nova da Casa Vidor, Budapeste, 1902.
Arquitecto: Vidor Emil.


Daqui.
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José Rodrigues dos Santos

 


Isto não se inventa. Existe e este homem é um dos «nossos» grandes sucessos, aquém e além-mares. Vergonha alheia.
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François Truffaut morreu num 21 de Outubro

 


François Truffaut nasceu em Paris em 1932. Morreu muito cedo, em 21 de Outubro de 1984, mas deixou-nos 26 filmes que o mantêm connosco. Com uma infância atribulada, que acaba por retratar parcialmente em Les quatre cents coups, fundou um cineclube aos 15 anos e foi rapidamente descoberto por André Bazin que viria a ter uma influência decisiva na sua carreira, introduzindo-o junto dos grandes nomes da época e nos celebérrimos «Cahiers du Cinéma». Tornou-se um dos principais representantes da «Nouvelle Vague» francesa.

Quando Paris era a nossa praia de liberdade, vi Baisers Volés três vezes seguidas, sem sair da sala.

Alguns vídeos AQUI.
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Troque o IUC do futuro por um Tesla do presente

 


«No enorme aumento dos impostos indiretos destaca-se o IUC - Imposto Único de Circulação - com um aumento de uma dimensão que revela a total insensibilidade social do governo.

A norma inscrita no Orçamento de Estados para 2024 de aumentar o IUC dos carros e motociclos anteriores a julho de 2007, atinge 3 milhões de automóveis e meio milhão de motas.

Qualquer coisa como cerca de 40% do parque automóvel português. No parque automóvel nacional há 25 % de viaturas com mais de 20 anos e 19,4 % de viaturas com mais de 15 anos. Isto num universo automobilístico bastante envelhecido cuja média de idade se situa nos 13, 5 anos.

Os possuidores destas viaturas são um grupo social, onde está o conjunto dos portugueses com mais baixos rendimentos, pessoas que na fase anterior da sua vida, ou no caso dos reformados na fase da sua vida ativa, compraram uma viatura nova ou quase nova e que, atualmente, não dispõem de rendimentos suficientes para aquisição de uma viatura mais recente, de um carro novo ou de um elétrico.

As recentes declarações de Fernando Medina sobre o tema à saída do Ecofin reconfirmam o total afastamento social que este Governo tem vindo a revelar. Dizer desta medida que ela se traduz num "aumento ponderado, circunscrito e bem moderado" é não olhar aos muitos milhões de portugueses que são possuidores de uma viatura anterior a julho de 2007, que a usam para trabalhar e que os seus fracos rendimentos não lhe concedem a alternativa da aquisição de uma nova viatura.

É uma medida que ignora a situação dos portugueses que vivem nas zonas mais interiores do país e não dispõem de meios alternativos de transporte que não seja a sua viatura. Locais de Portugal onde os comboios não chegam, com linhas férreas destruídas por sucessivos governos e os autocarros não existem ou escasseiam. O Governo mostra-se alheio a todas estas situações e, de uma forma alienada, convida as pessoas a comprarem carros eléctricos.

É uma medida que ignora também os pequenos comerciantes, que dispõem de carros antigos e não têm qualquer possibilidade de os trocar.

Ainda que a medida tenha uma norma travão em 2024 e anos seguintes, limitada a um acréscimo anual de 25 euros no IUC, no fim da linha, ou seja nos próximos 5/6 anos o imposto vai registar subidas que podem atingir os 200 %, 400% e, até, 1000%.

A decisão do Governo suscitou de imediato um assinalável alarido social que se traduziu por uma petição que já vai em cerca de 200 mil assinaturas e que se destina a levar o assunto a debate ao Parlamento.

O aumento do IUC é um exemplo acabado de uma medida que não tem em linha de conta o impacto social da mesma. Na senda do que tem vindo a fazer em casos anteriores este governo toma medidas sem aferir, responsavelmente, o alcance das mesmas. Limita-se a uma análise meramente economicista, crua, totalmente desprovida de preocupações da condição social a quem as medidas atingem. É um total afastamento em relação aos problemas dos portugueses.

O aumento desmesurado do IUC é, igualmente, uma medida que vai afetar a mobilidade. Os cidadãos que, eventualmente, venham a abater as suas viaturas anteriores a julho de 2007, o mais provável é que não tenham alternativa de uma nova aquisição e fiquem, assim, limitados na sua mobilidade.

Os incentivos, conhecidos até ao momento, que o Governo atribui ao abate de viaturas anteriores a julho de 2007 são, francamente, insuficientes (2.900 euros) e não são atrativos quanto baste para desencadear um processo de abate e troca de viaturas.

Este aumento de IUC é de uma tal violência social que, poderá levar o Executivo a ter de recuar ou estender no tempo a aplicação da mesma. Se o não fizer o Governo de António Costa juntará ao descalabro social que já possui no campo da saúde, habitação e educação mais este universo de alguns milhões de portugueses descontentes. E, um dia, o êxito do défice a das contas certas não vai chegar para tudo...»

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E quanto ao SNS

 


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20.10.23

Jóias

 


Caixa para jóias, de vidro, Arte Boémia Moser, com pássaro esmaltado e flores. Cerca de 1880. 
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A UE e a guerra

 

«Neste tabuleiro tão complexo, é triste ver que a UE não é tida como um participante significativo. A intervenção geopolítica, prometida por Ursula von der Leyen no início do seu mandato, parece ser levada a cabo por um gatinho doméstico, anafado, e até sem garras. Depois de várias hesitações e confusas declarações, a Europa conseguiu finalmente adotar uma posição comum, que considero incompleta. Condenou os ataques hediondos do Hamas de 7/10, reconheceu que Israel usufrui do direito de defesa, desde que exercido no quadro da lei internacional, pediu a libertação dos reféns e assegurou-nos que continuará a ajuda humanitária às populações de Gaza. Foi positivo ao lembrar que a solução passa pelo estabelecimento de dois Estados. Mas faltou uma tomada de posição sobre o bloqueio a Gaza imposto à moda medieval, como também não referiu que a crise exige o máximo de contenção. Legítima defesa, um direito incontestável, tem de ser exercida de um modo razoável.»

Victor Ângelo
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António Brito Guterres: o que nos esconde a cidade invisível?

 



Assistente Social com pós-graduação e doutoramento em Estudos Urbanos, António Brito Guterres coordenou projectos com jovens, foi director do Centro de Experimentação Artística do Vale da Amoreira e chefe de Projecto da Iniciativa Bairros Críticos do Vale da Amoreira. Trabalho com a Fundação Aga Khan Portugal, coordenando projectos de desenvolvimento local, de expressão artística e cultural. Foi responsável por políticas públicas em territórios como Pendão, Bairro dos Navegadores, Outurela-Portela, Barronhos, Serra das Minas, Algueirão-Mem Martins, Tabaqueira, Alta de Lisboa, Curraleira, Portugal Novo, Eixo Almirante Reis em Lisboa, Quinta do Loureiro, Cabrinha e Liberdade/Serafina. O seu combate é o fortalecimento das organizações da sociedade civil nestes bairros. Conhece os bairros das periferias da região de Lisboa como as palmas da sua mão. Conhece a cidade invisível, para me socorrer do nome do programa em participa semanalmente na Antena 1, dando a conhecer as pessoas que não vemos em Lisboa. Nunca se acomodando a lugares de poder, é habitual vê-lo juntar a sua voz aos que realmente não têm voz nas nossas cidades. O que faremos hoje é uma curta caminhada numa pequena parte da cidade, para falarmos de casos e episódios que nos permitem falar de cidade, participação e democracia. De passeio, encontraremos, se tudo correr bem, alguns dos protagonistas dessa cidade, que o António nos dará a conhecer. O palco, ou melhor, a rua, é deles.
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Mas onde estão as dúvidas?

 

@Hugo Pinto

«Enquanto vamos vendo desfilar imagens de terror, destruição e sofrimento humano de uma violência inaudita, assistimos aqui, paralelamente, a uma espécie de competição Benfica-Sporting pela primazia do mal ou a prevalência do bem, com cada lado a desafiar o outro a denunciar as vilanias dos seus, enquanto cala as dos próprios. Tal como na Ucrânia, o que interessa é a vitória dos nossos “bons” e a derrota dos “maus” deles, mesmo que no final tudo o que restar seja, como escreveu Eugénio de Andrade, “um horizonte de cidades bombardeadas”, ou “duas nações, a dos vivos e a dos mortos”, como escreveu Mia Couto. Mas eles acreditam que mais vale a sua razão sobre os mortos do que a paz entre os vivos.

Temos assim, de um lado, aqueles que não são capazes de dizer com todas as letras que o ataque do Hamas em Israel representou o ponto extremo da bestialidade humana, um verdadeiro festim da morte, levado a cabo — a palavra custa-lhes a sair da boca — por terroristas (e não me refiro aos jornalistas, que, tal como explica e pratica a BBC, não têm nem devem adjectivar como terroristas ou qualquer outra coisa um dos lados de um confronto). E temos, do outro lado, aqueles para quem o terror é exclusivo de organizações terroristas e os crimes de guerra, de uma crueldade programada, com que Israel se sacia há 10 dias em Gaza, são apenas uma “legítima defesa” e justa retaliação. Não por acaso, são os mesmos que vivem a denunciar os crimes de guerra e os ataques a civis da Rússia na Ucrânia, cuja dimensão e cenário de guerra não tem absolutamente nada a ver com o que está a acontecer em Gaza.

Mas será assim tão complicado tentar ver claro? Condenar, de todas as formas e em todas as circunstâncias, um terror como o de 7 de Outubro e exigir que o Hamas liberte os reféns que fez. Condenar também Benjamin Netanyahu e o seu Governo de extremistas e fanáticos religiosos, que vêm destruindo paulatinamente o Estado de direito em Israel e que, para protegerem os colonatos ilegais da Cisjordânia, deixaram o país indefeso contra o Hamas. Aceitar que Israel tem o direito de perseguir e caçar, um por um, todos os executantes e mandantes do 7 de Outubro, como o fez sempre ao longo da sua História, depois de Munique ou de Entebbe, depois de cada ataque mortífero do terrorismo islâmico, e através do Kidon, a unidade especial de extermínio do Mossad. Perceber que neste caso são muitos os inimigos a perseguir e isso levará muito tempo. Que a sociedade israelita, em estado de choque, exige uma reacção em força, a destruição da raiz do mal em Gaza, a eterna garantia do “nunca mais” e, simultaneamente, a libertação de 150 reféns: uma missão quase impossível e absolutamente impossível sem derramamento de sangue inocente. Mas não aceitar também que isso equivalha à destruição sistemática da cidade, à morte indiscriminada de civis debaixo dos bombardeamentos (que já vai em três mil, dos quais grande parte crianças), não aceitar a desculpa do “escudo humano”, que afinal foi Israel que proporcionou. Indignar-se contra a punição colectiva de todo um povo privado de água, alimentos, energia, intimado a debandar das suas terras e casas para aquilo que o Presidente Herzog garantiu ser uma “zona segura”, no Sul de Gaza, mas onde 600 mil fugitivos continuam privados de tudo, bombardeados na mesma e até impedidos por Israel de receber o auxílio internacional estacionado há dias do outro lado da fronteira egípcia. (Quando oiço o activíssimo embaixador de Israel em Lisboa dizer que “não há um problema humanitário em Gaza”, só posso concluir que ele não considera aquela gente como humana.) Nem tão-pouco se pode aceitar a estratégia, já denunciada por Hussein, da Jordânia, de Israel aproveitar a situação que está a criar em Gaza para “exportar” mais um milhão de refugiados palestinianos para fora do seu território, dando mais um passo em direcção à solução final: na Palestina, um só povo, um só território, uma só nação — a judaica. Por isso, finalmente, a comunidade internacional tem a obrigação de exigir a Israel que desvende os seus planos para quando der por terminado o exercício do seu direito, que será de defesa ou de vingança, conforme a dimensão e duração do mesmo. Porque não é aceitável a declaração do Presidente de Israel à CNN Internacional de que não será mais possível falar de paz ou de dois Estados com os palestinianos.

Mas essa é, sempre foi e continuará a ser a questão central: quando foi a última vez, desde a cimeira falhada de Camp David, em 2000, com Clinton, Ehud Barak e Yasser Arafat, que Israel quis falar de paz com os palestinianos? O que fez Israel desde então a não ser precisamente promover a emergência do fanatismo religioso dos islamistas do Hamas em Gaza para assim dividir os palestinianos e enfraquecer a OLP, o único interlocutor com quem poderia discutir? Foi uma brilhante jogada de estratégia política, que 20 anos depois — 20 anos de Sharon e Bibi — acaba agora de mostrar os seus resultados.

Ultimamente, e com o pretexto justamente de não ter interlocutor com quem negociar, Israel conseguiu, com sucesso, tirar partido do cansaço geral em todo o Médio Oriente de uma questão que parecia adormecida num impasse definitivo e experimentou a tentação de negociar a paz separadamente com vários países árabes, começando por Marrocos, a quem cedeu o seu sofisticado sistema de escutas em troca do reconhecimento diplomático. Daí até aos Acordos de Abraão, negociados sob a égide dos Estados Unidos, com vários países outrora inimigos, foi um passo — não pequeno, mas de gigante. Faltava a Arábia Saudita, o país do príncipe “assassino”, como lhe chamou Biden, antes de a necessidade política o ter obrigado a visitá-lo e a curvar-se diante dele. Mas faltava também outro dado essencial: em nenhum desses acordos bilaterais, incluindo o iminente acordo com os sauditas, estava presente qualquer cláusula sobre o destino dos palestinia¬nos e muito menos sobre a criação do Estado Palestiniano, há tanto tempo reclamado pela comunidade internacional: era como se o problema não existisse, eles não existissem. Foi fácil ao Hamas explorar o sentimento de abandono que, a seguir à comunidade internacional, os palestinianos sentiram por parte do próprio mundo árabe. O 7 de Outubro do Hamas teve como objectivo político impedir, desde logo, o acordo com a Arábia Saudita e, antevendo e provocando a resposta sangrenta de Israel, levantar a rua árabe contra os acordos de paz negociados pelos líderes no silêncio dos seus palácios. E por mais selvática que tenha sido a acção desse sábado sangrento, aos olhos populares foi também a primeira vitória árabe contra Israel em muitos anos: morreram mil civis desarmados, mas morreram também 300 soldados israe¬litas, cujas sofisticadas barreiras defensivas foram ultrapassadas. Desde o Yom Kippur, quando Israel foi atacado simultaneamente pelos exércitos de dois países, que não se via nada assim. Mas agora os atacantes que apanharam Israel de surpresa eram um exército de guerrilha, armado de AK-47 e granadas de mão fabricadas em casa. Chamem-lhes assassinos ou combatentes, eles mudaram todo o panorama estabelecido.

Agora seria altura para respirar fundo e pensar — um luxo que parece antes um milagre impossível de alcançar entre dois opositores que só pensam no extermínio mútuo. Mas deve saudar-se o extraordinário esforço diplomático que os Estados Unidos e o Presidente Biden têm estado a fazer para segurar a mão vingadora de Is-rael e obrigá-los a pensar. Fosse Trump o Presidente, e já tudo teria ido pelos ares. Fosse a UE a gerir a crise, e a sua gestão seria uma anedota dentro da tragédia. Mas o que aí vem, por mais esforços diplomáticos americanos — os únicos viáveis —, não será nada de bom. Ou será mau ou será catastrófico. Para que fique de lição, convém não esquecer que tanto o Hamas como o actual Governo de Israel chegaram ao poder por voto do povo em eleições livres. Não há mesmo inocentes ali.»

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19.10.23

Porta Girassol

 


«Porta Girassol em Praga», 1900.
Arquitectos: Osvald Polivka e Vaclav Haver.


Daqui.
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Banksy, o desconhecido da «street art»

 


Há quase vinte anos que o mistério em torno da identidade de Banksy alimenta a lenda.
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Manuel António Pina

 


Onze anos sem ele.
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Todos vimos, todos sabemos. Travar a morte em Gaza é honrar enfim a memória do Holocausto

 


«1. A Europa está refém da culpa do Holocausto desde a II Guerra Mundial. Mas honrar a memória do Holocausto será travar a mortandade em Gaza agora. E honrá-la enfim, porque essa memória foi traída até chegarmos a isto: 2,3 milhões de pessoas trancadas num gueto, bombardeadas dia e noite, metade das quais deslocadas, sem água, comida, assistência.

E foi traída também no gueto-arquipélago da Cisjordânia, onde quase três milhões de palestinianos enfrentam a violência de colonos cada vez mais radicais. Os hoje 700 mil colonos que Israel foi plantando com betão e alcatrão, bem agarrados ao chão, tanto na Cisjordânia como em Jerusalém Oriental, todos ilegais à luz do que a Europa assinou. E que assim impedem a “Solução Dois Estados”, como os líderes mundiais — todos eles — estão cansados de saber.

2. O mundo está cansado de saber. Não há guerra mais mediatizada. Nenhum outro lugar está incrustado em tantos humanos, pela fé, pela história, pelo pensamento. Ao mesmo tempo, é como se o mundo de cada vez não soubesse. Há quem fosse criança na Primeira ou na Segunda Intifada, ainda há pouco, agora. Haverá sempre quem esteja a acordar, e quem possa acordar ainda. Como haverá sempre quem não pense.

Não pensar é muito perigoso. No epílogo de Eichmann em Jerusalém — um livro sobre o julgamento do nazi responsável pelo transporte de milhões de judeus para o extermínio —, a judia Hannah Arendt fala do não-pensamento que viabiliza o crime.

Escrevemos muito depois de Auschwitz, apesar do buraco que parecia ter engolido a poesia. Temos ecos de muitas canções, muitos filmes. Depois de Auschwitz houve Hiroxima, e de cada vez nada vimos: nada vimos que nos faça melhores.

A prova é estarmos aqui. É o Estado de Israel — fundado para que nunca mais o Holocausto acontecesse, e à custa de muito combate, incluindo ataques terroristas sionistas — ter erguido um muro em torno de cinco milhões de pessoas, e essas vidas desaparecerem do lado de lá.

Valiam menos que as dos israelitas? Valem menos que a nossa, cada uma, agora? Valem menos porque em Telavive a vida é uma festa de gente branca e bonita onde o Ocidente se imagina melhor? Cinco milhões é metade de Portugal. E metade desses cinco milhões são crianças. Desapareceram da nossa vista, mas perante a nossa vista, no lugar mais televisionado do mundo.


18.10.23

Tribunais

 


Interior do tribunal distrital (Landgericht) em Halle (Saale), Alemanha, 1905.
Paul Thoemer e Karl Illert.

Daqui.
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Veto dos EUA no Conselho de Segurança

 



«O texto condenava toda a violência e hostilidades contra civis e todos os atos de terrorismo e apelava à libertação imediata e incondicional de todos os reféns. A resolução proposta pelo Brasil pedia ainda pausas no conflito que permitissem o acesso de ajuda humanitária à Faixa de Gaza, região onde a guerra está concentrada.»

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18.10.1936 - A viagem dos primeiros presos para o Tarrafal

 


Foi há 85 anos que os primeiros presos saíram de Lisboa, no paquete Luanda, com destino ao que viria a ser o «Campo da Morte Lenta», na ilha de Santiago, em Cabo Verde. O Luanda era normalmente usado para transporte de gado proveniente das colónias e os porões habitualmente utilizados para esse efeito foram transformados em camaratas.

Depois de uma escala no Funchal e de uma outra em Angra do Heroísmo, para recolher mais alguns detidos e / ou largar os menos perigosos, e no fim de uma viagem em condições degradantes, foram 152 os que desembarcaram, no dia 29, em fila indiana, antes de percorrerem os 2,5 quilómetros que os separavam do destino final.

No primeiro volume das suas Memórias, Edmundo Pedro dedica longas páginas à descrição do que foi essa terrível viagem que durou onze dias. (*) O início e o fim:
«E na noite de 18 de Outubro, de madrugada, reuniram-nos em camionetes da GNR. Estas dirigiram-se para o cais de embarque, em Alcântara... No caminho, apesar das ameaças dos soldados, demos largas ao nosso protesto. O nosso vibrante grito de revolta ecoou, ao longo de todo o percurso, nas ruas, desertas, daquela madrugada lisboeta. Cantámos, a plenos pulmões, todas as canções do nosso vasto cancioneiro revolucionário... (...)
A 29 de Outubro de 1936, onze dias depois de termos partido de Lisboa, o velho Luanda fundeou, ao princípio da tarde, na pequena e aprazível baía do Tarrafal. Pouco depois, começou a descarregar a "mercadoria" que transportava nos seus porões... Alguns prisioneiros tinham chegado a um tal estado de fraqueza que só puderam abandonar o barco apoiados nos seus camaradas...»
Depois, foi o que se sabe: histórias de terror, 32 pessoas por lá morreram e o Campo durou até 1954. Foi reactivado em 1961, como «Campo de Trabalho do Chão Bom», para receber prisioneiros oriundos das colónias portuguesas (o ministro do Ultramar era então Adriano Moreira e foi ele que assinou a respectiva portaria) e durou até 1974.

(*) Edmundo Pedro, Memórias, Um Combate pela Liberdade, Âncora Editora, 2007, pp. 350-359.
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Os avisos de Arendt e Einstein sobre os que hoje governam Israel

 


«Benachem Begin, antigo líder do grupo radical Irgun, responsável pelo atentado bombista ao Hotel King David (o terrorismo é sempre uma questão de perspetiva), e que viria a ser o líder histórico da direita israelita (e fundador do Likud), visitou Nova Iorque em 1948. Não foi recebido apenas com aplausos. Uma carta assinada por Hannah Arendt, Albert Einstein, Sidney Hook e mais 25 notabilíssimos judeus (lista no fim da carta) era clara na sua avaliação do Herut (Liberdade), partido de Begin que daria origem ao Likud, chamando à atenção para o comportamento desta ala radical para com os árabes, que o massacre de Deir Yassin tão bem ilustrara.

Para quem distingue, e bem, palestinianos moderados e radicais, o Hamas da fragilizada Autoridade Palestiniana e a Fatah, é importante perceber que também o lado israelita não é homogéneo, apesar de já ter sido muito mais pluralista. O sionismo não é todo igual, ao contrário do que muitos indefetíveis e críticos de Israel acreditam, apesar de ser cada vez menos diferente.

O problema não é o sionismo. O sionismo de esquerda foi emancipatório, generoso, progressista, inspirador do espírito dos kibutzim e responsável pela criação das principais instituições que hoje existem em Israel, como as IDF, que começaram como milícias clandestinas para proteger os judeus da Segunda Aliá – a migração para Israel entre 1904 e 1914 –, apesar de rapidamente problemática na relação com os árabes. O problema é esta versão revisionista, por natureza exclusiva e “chauvinista”, para usar um termo da carta que seguidamente transcrevo, em português. Um sionismo que, na altura, ainda era minoritário.

A vitória e radicalização do sionismo revisionista, representada pelo Likud e por todos os herdeiros Begin, determina o impasse neste conflito. Reparem que não digo que este conflito existe por causa deles. Ele é anterior ao nascimento do próprio Estado de Israel – o que torna confrangedoramente ignorante a afirmação de Marques Mendes, que “o que interessa é quem começou a guerra”. A guerra tem mais de 70 anos, teve poucos intervalos e é quotidiana e imparável há bastante tempo.

Foi o Likud de Sharon e Netanyahu, depois da bem-sucedida eliminação de Yitzhak Rabin (que não deixou de ter os seus pecadilhos políticos na relação com os palestinianos), aliado a forças ainda mais extremistas, que acabou por determinar o que Israel é hoje. E é deste Israel que falamos.

Para perceber de onde vêm os que hoje governam Israel, tratados como moderados pelos media, grande parte do meu texto não é de hoje, nem meu. É a reprodução integral da carta de 26 judeus, reagindo à chegada de Menachem Begin a Nova Iorque. Escrita a 2 de dezembro e publicada a 4 do mesmo mês de 1948, no The New York Times (original aqui), com algumas coisas que hoje se podem considerar um excesso de linguagem (como chamar “fascista” a Begin e ao seu partido), sobretudo tendo em conta a proximidade do Holocausto, ela tem muito de premonitório. E vale a pena ser relida. O que está entre parêntesis retos são explicações minhas.

“Aos editores do New York Times:

Entre os mais perturbadores fenóômenos políticos dos nossos tempos está a emersão, no recentemente criado Estado de Israel, do "Partido da Liberdade" (Tnuat Haherut), um partido político muito semelhante na sua forma de organização, métodos, filosofia política e apelo social aos partidos nazis e fascistas. Foi formado a partir dos membros e seguidores do antigo Irgun Zvai Leumi, uma organização terrorista, de direita e chauvinista na Palestina.

A actual visita de Menachem Begin, líder deste partido, aos Estados Unidos é obviamente calculada para dar a sensaçãodo apoio americano ao seu partido nas próximas eleições israelitas, e para fortalecer laços políticos com elementos sionistas conservadores nos Estados Unidos. Vários americanos com reputação nacional emprestaram seus nomes para saudar sua visita. É inconcebível que aqueles que se opõem ao fascismo em todo o mundo, se estiverem correctamente informados sobre o historial político e as perspectivas do Sr. Begin, possam acrescentar os seus nomes e apoio ao movimento que ele representa.

Antes que danos irreparáveis sejam causados através de contribuições financeiras, manifestações públicas em nome de Begin e a criação na Palestina da impressão de que um grande segmento da América apoia elementos fascistas em Israel, o público americano deve ser informado sobre o histórico e os objetivos de Sr. Begin e seu movimento.

As declarações públicas do partido de Begin não são de forma alguma indicadoras do seu verdadeiro carácter. Hoje falam de liberdade, democracia e anti-imperialismo, enquanto recentemente pregavam abertamente a doutrina do estado Fascista. É nas suas acções que o partido terrorista revela o seu verdadeiro carácter; a partir de suas ações passadas, podemos julgar o que podemos esperar que faça no futuro.

Um exemplo chocante foi o seu comportamento na aldeia árabe de Deir Yassin. Esta aldeia, fora das estradas principais e rodeada por terras judaicas, não participou na guerra e até lutou contra bandos árabes que queriam usar a aldeia como sua base. A 9 de abril [de 1948], bandos terroristas atacaram esta pacífica aldeia, que não era um objetivo militar nos combates, mataram a maioria dos seus habitantes (240 homens, mulheres e crianças) e mantiveram alguns deles vivos para desfilarem como prisioneiros pelas ruas de Jerusalém [o massacre teve um forte impacto no êxodo de palestinianos, como se pretendia]. A maioria da comunidade judaica ficou horrorizada com a proeza, e a Agência Judaica enviou um telegrama de desculpas ao rei Abdullah da Transjordânia. Mas os terroristas, longe de se envergonharem do seu acto, orgulharam-se do massacre, divulgaram-no amplamente e convidaram todos os correspondentes estrangeiros presentes no país a verem os cadáveres amontoados e a destruição geral em Deir Yassin. O incidente de Deir Yassin exemplifica o carácter e as acções do Partido da Liberdade.

Na comunidade judaica pregam uma mistura de ultranacionalismo, misticismo religioso e superioridade racial. Tal como outros partidos fascistas, têm sido usados para quebrar greves e pressionado para a destruição de sindicatos livres. No seu lugar, propõem sindicatos corporativos segundo o modelo fascista italiano.

Durante os últimos anos de esporádica violência anti-britânica, os grupos IZL [sigla hebraica do Irgun a que também se chamava Etzel] e Stern [Stern Gang ou Lehi, uma dissidência ainda mais radical do Irgun, por este ter suspendido os ataques aos britânicos durante a II Guerra Mundial, ilegalizado na fundação de Israel, amnistiado pouco tempo depois e com direito a uma condecoração militar para os seus antigos membros desde 1980] inauguraram um reinado de terror na comunidade judaica palestiniana. Professores foram espancados por falarem contra eles, adultos foram baleados por não deixarem que os seus filhos se juntassem a eles. Com métodos de bandidos, espancamentos, quebra de janelas e roubos generalizados, os terroristas intimidaram a população e exigiram um pesado tributo.

A base do Partido da Liberdade não participou nas conquistas para a construção na Palestina. Não recuperaram terras, não construíram colonatos e só prejudicaram a atividade de defesa judaica. Os seus tão divulgados esforços de imigração foram mínimos e sobretudo dedicados a trazer compatriotas fascistas.

As discrepâncias entre as ousadas afirmações que Begin e o seu partido agora fazem e o seu registo do seu passado na Palestina não têm a marca de um partido político comum. Têm o carimbo inconfundível de um partido fascista para quem o terrorismo (contra judeus, árabes e britânicos) e a deturpação são os meios, e um ‘Estado Líder’ é o objectivo.

À luz destas considerações, é imperativo que a verdade sobre o Sr. Begin e o seu movimento seja dada a conhecer a este país. É ainda mais trágico que a liderança superior do sionismo americano se tenha recusado a fazer campanha contra os esforços de Begin, ou a expor aos seus constituintes os perigos para Israel do apoio a Begin.

Os abaixo-assinados, assim, utilizam este meio para apresentar publicamente alguns factos relevantes sobre Begin e o seu partido; e para exortar todos os envolvidos a não apoiarem esta mais recente manifestação do fascismo.

Isidore Abramowitz, Hannah Arendt, Abraham Brick, rabino Jessurun Cardozo, Albert Einstein, Herman Eisen, Hayim Fineman, M. Gallen, H.H. Harris, Zellig S. Harris, Sidney Hook, Fred Karush, Bruria Kaufman, Iirma Lindheim, Nachman Maisel, Seymour Melman, Myer D. Mendellson, Harry M. Oslinsky, Samuel Pitlick, Fritz Rohrlich, Louis P. Rockeer, Ruth Sagis, Itzhak Sankowsky, Isaac Jacob Schoenberg, Samuel Shuman, M. Singer, Irma Wolfe, Stefan Wolfe.

Nova Iorque, 2 de dezembro de 1948”

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PS: Sobre o caminho seguido por Israel, escrevi, em maio de 2018, no 70º aniversário da nação que corporizava o extraordinário sonho de finalmente dar aos judeus uma casa onde tivessem direito à paz, à segurança e à cidadania plena que lhes foram negadas por séculos, um longo texto que pode ser útil para enquadrar a minha posição.»

17.10.23

Lustres

 


Lustre raro e excepcional em bronze dourado, com cinco braços de luz que formam caules de plantas e que envolvem túlipas de vidro acetinado. Cerca de 1902.
Tony Selmersheim.

Daqui.
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Banksy em Gaza

 




Mais AQUI.
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Lá vamos

 

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Uma questão de princípio

 


«Um professor em protesto, que decidiu viver numa carrinha para solucionar o problema da habitação, estacionou à porta do Palácio de Belém. O objetivo era denunciar as dificuldades por que muitos professores passam quando são colocados longe de casa. É um protesto justo, concorde-se ou não com a forma, mas todo o fundamento ficou reduzido a nada quando o professor fez saber que o presidente da República lhe pagou, e ele aceitou, uma noite numa pensão onde pôde tomar o seu “banhinho”.

Se não fosse burlesco seria, no mínimo, estranho. Primeiro, Marcelo Rebelo de Sousa, mesmo enquanto cidadão, deveria evitar essa postura e o próprio professor tinha a obrigação de rejeitar uma ajuda completamente inútil. Por uma questão de princípio.

Assim, caiu por terra todo o fundamento de uma ação que pretendia usar um caso limite para ilustrar as dificuldades de muitos professores.

A tal oferta de uma noite de estadia na pensão da zona é a prova de que o presidente da República ou não percebeu o alcance da questão - e isso é muito improvável - ou acha que, mais do que resolver problemas, é importante aproveitar a oportunidade de se mostrar próximo das pessoas, mesmo que com atos inúteis na sua essência.

Ao aceitar a ajuda, o professor que se manifestava prestou um mau serviço aos colegas, mesmo que alguns que se juntaram ao seu protesto tenham aplaudido a iniciativa individual de Marcelo Rebelo de Sousa.

“O senhor presidente, pago do seu bolso, tomou a iniciativa de alugar-me um quarto, aqui na pensão Setubalense, onde eu posso tomar o meu banhinho e fazer a minha dormida. Posso pernoitar hoje e fico muito agradecido ao senhor presidente.” Com esta frase, conseguiu arruinar todo o capital que possa ter acumulado com o seu caso.

A classe docente deve também pensar na forma como o presidente da República, com uma suposta ação de boa vontade, conseguiu dar uma machadada numa luta cuja origem está longe de ser resolvida.»

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16.10.23

Há sempre mais uma bela porta

 


Porta da Casa Joan Barata, Tarrasa, Catalunha, Espanha, 1905.
Arquitecto: Lluís Muncunill i Parellada.


Daqui.
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16.10.1968 - Jogos Olímpicos do México

 




Ler: As luvas pretas que ajudaram a mudar o mundo
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Ana Gomes sobre a guerra

 




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16.10.1982 – 41 anos sem Adriano

 


Adriano Correia de Oliveira tinha apenas 40 anos quando morreu. Estudante de Direito em Coimbra, aderiu ao PCP na década de 60, foi activista na crise académica de 1962 e participou num elevado número de actividades culturais, sobretudo naquela cidade universitária.

«Trova do vento que passa», com poema de Manuel Alegre, gravado em 196, viria a tornar-se uma espécie de hino da resistência dos estudantes à ditadura. 





Muitos outros temas se juntaram, de um dos nossos mais célebres cantores de intervenção, antes e depois do 25 de Abril.






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Como criminalizar o apoio a 140 resoluções da ONU

 


«Um vídeo com mais de 230 mil visualizações, no próprio dia em que foi publicado no Twitter, mostra um membro do Hamas a abater um helicóptero israelita. Outro, com mais de 3 milhões, exibe um edifício a ruir em Israel depois de um ataque do Hamas. Têm em comum serem falsos. O primeiro é retirado de um jogo de computador, Arma 3, o segundo mostra o resultado do ataque aéreo israelita à Torre Palestina, em Gaza. Não são casos isolados. Shayan Sardarizadeh, o jornalista do programa de verificação de conteúdos falsos da BBC, garante nunca ter visto tanto conteúdo falso a circular no Twitter ou no Tik Tok.

Nunca tivemos acesso a tantas imagens dos conflitos que mais ocupam o espaço público como na última década e meia – Síria, Ucrânia e Israel e Gaza. Com a viralidade das redes sociais, o seu alcance é instantâneo e quanto mais brutal mais longe e depressa chega. As partes beligerantes sabem-no. A Ucrânia revelou-se exímia no aproveitamento mediático das redes sociais, com uma gestão hiperprofissional da atenção e simpatia das opiniões públicas. O Hamas filmou e divulgou a barbárie do dia 7 de outubro como ponto central da campanha de choque e terror para forçar uma violentíssima reação israelita.

Gerou polémica, em 1991, a presença de jornalistas nas colunas militares norte-americanas na guerra do Iraque. Onde esse tempo já vai. Se a objetividade jornalística era vítima da voracidade dos ciclos noticiosos cada vez mais curtos da televisão por cabo, o aparecimento das redes sociais deixou o jornalismo para trás.

Grande parte das imagens que vemos nas televisões mundiais são fornecidas, direta ou indiretamente, pelas forças em conflito. Sejam soldados nas trincheiras do sul da Ucrânia, a filmar a dureza dos combates com câmaras no capacete, seja a violência indizível do assassinato de civis a sangue pelo Hamas, sejam os ataques aéreos a Gaza, demasiado parecidos com um jogo de vídeo. Cada uma serve um propósito diferente, consoante a estratégia de cada força, mas o objetivo é sempre o mesmo: transmitir a sua versão do conflito.

Não é por acaso que Israel condicionou o acesso à internet na faixa de Gaza. As razões são as mesmas que levaram a impedir o acesso da imprensa a Gaza, em 2008, numa das expedições punitivas que ciclicamente travam nesta pequena faixa. É assim que não vemos tantas imagens, nos media ocidentais, das vítimas em Gaza. Felizmente existe a Al-Jazeera (e mais algumas cadeias internacionais com meios para estar no terreno perigoso), o que até levaria a um debate interessante sobre a importância do peso económico de cada lado para contar uma versão de uma história.

Sem Internet e com condicionamento jornalístico, ficam são os vídeos que o exército israelita vai produzindo para canais como o Tik Tok. Neles vemos prédios em ruínas, esfumaçando depois das explosões, mas não há grandes planos das vítimas ou da dor e sofrimentos das suas famílias. Isto quando sabemos que na última semana já foram mortos mais palestinianos do que israelitas.

Quem controla as imagens que circulam no gigantesco mercado de difusão narrativa em que se tornaram as redes sociais controla não apenas a informação, mas a perceção pública. E quem controla a perceção controla quase tudo. As imagens moldam e deformam a visão que temos dos conflitos. Que, nesta permanente sucessão de imagens choque é visto como se tivesse começado na semana passada. Na Internet nada se perde, a não ser o contexto. Nada existe para lá do presente. Veja-se como, num conflito com dezenas de anos de amargurada história de ressentimentos, violência sectária e humilhação, a discussão é sempre feita como se tudo tivesse começado com a barbárie de 7 de outubro. Sem passado ou contexto.

Em Israel, a comparação com o Holocausto criou uma tal pressão política que a simples referência às vítimas civis em Gaza é tratada como uma traição abjeta. Ainda assim, é natural, num país que passou por um trauma. Mas não é só em Israel. A comparação com o ISIS espalhou-se como um vírus, apesar de qualquer pessoa que saiba alguma coisa sobre aquele conflito perceber que é falha em quase todas as condicionantes políticas, históricas e geográficas. A interdição do "mas", mesmo que esse "mas" se resuma a informação útil para a compreensão de um conflito com 70 anos, e não com uma semana, é o retrato perfeito da confusão entre firmeza moral e simplificação extrema de um conflito, como cada parte beligerante deseja sempre que seja. E acaba onde acabou sempre: na terraplanagem do pluralismo, na polarização perigosa e na porta aberta para a conivência com o abuso de um dos lados e com a limitação da liberdade.

Vale a pena ler o notável artigo em que o editor internacional da BBC explica por que razão o canal público britânico não chama “terroristas” ao Hamas. Pela mesma razão, adianta, que na Segunda Guerra Mundial, mesmo quando o país estava a ser bombardeado, nunca chamaram outra coisa aos alemães que não fosse “o”, evitando termos pejorativos. Porque a tarefa dos jornalistas é fornecer dados e factos e cada pessoa fazer a sua leitura. “Acima de tudo, dizia um documento da BBC sobre tudo isto, não deve haver lugar a discursos demagógicos. O nosso tom tinha de ser calmo e controlado”.

Concorde-se ou não com o caminho seguido pela BBC, ele nasce de uma discussão interna sobre a consequência e o poder das palavras e imagens que parece ter sido completamente eclipsado da maioria dos canais noticiosos. Numa luta com a velocidade, alcance e impacto, o jornalismo aproximou-se dos códigos das redes em vez do oposto. A exploração da emoção substituiu a escolha do que é relevante, a “folhetinização” o contexto. A emoção pode gerar boas novelas, não nos dá boa informação.

A forma como a história das crianças decapitadas ocupou o espaço comunicacional de meio mundo é reveladora desta pressão para a publicação imediata do mais chocante. Matar uma criança, seja de que forma for, é um ato de grotesca desumanidade e a decapitação é um acrescento macabro, mas não o mais relevante do ponto de vista moral. Mas a forma como foi comunicada interessa do ponto de vista jornalístico. Porque nos diz como a desinformação circula.

O que ficámos a saber é que tudo nasceu de um relato indireto, contado por um soldado, a um jornalista israelita, que mais nenhum colega internacional ouviu ou corroborou. O próprio exército israelita não confirmou, mas a história seguiu o seu caminho até ao próprio Biden, desmentido depois pela Casa Branca. A história está cheia de confirmações e desmentidose até apareceram outras fotos grutescas. Mas a generalidade da comunicação social divulgou uma informação sem fonte clara e verificação. Isto não torna os atos do Hamas menos horrendos. Apenas mostra os riscos de um jornalismo que funciona como caixa de ressonância da desinformação do lado que está, a cada momento, mais disposto a ouvir.

Doses massivas de emoção prendem as pessoas ao ecrã, mas minam o espírito crítico e diminuem o espaço para a dúvida. E sem dúvida não há contraditório. Não há o imprescindível “mas”, a mais importante conjunção para a democracia. A emoção alimenta maniqueísmo em vez da divergência racional, tantas vezes fundada no contexto e na história. E se há conflito que tem contexto e história é este.

É este ambiente mais uma vez emocional nos encaminha para a tentativa moralmente aberrante de criminalizar o apoio à causa palestiniana. Isto aconteceu com a guerra na Ucrânia, mas neste caso é muito mais perverso, porque o apoio à causa palestiniana (não ao Hamas) é o apoio às vitimas de uma continuada violação do direito internacional.

A Feira do Livro de Frankfurt cancelou o prémio literário que tinha previsto entregar a Adania Shibli, porque o tema do seu livro é o assassinato de uma jovem palestiniana pelo exercito israelita em 1949. França e Alemanha proibiram manifestações de apoio à Palestina, com vários manifestantes que empunhavam a bandeira desta nação a serem detidos. O governo do Reino Unido dá ordens à polícia para intervir no mesmo sentido.

A instauração do delito de opinião será sempre inaceitável e um perigoso sinal dos tempos que vivemos na Europa. Mas é ainda mais inacreditável quando estamos a falar de uma causa que tem o direito internacional do seu lado – desde 2015, a Assembleia Geral da ONU aprovou 140 resoluções criticando Israel. Durante o mesmo período, aprovou 68 resoluções contra todos os outros países, de acordo com o relatório da ONU Watch. É ainda mais incrível quando todo o mundo assiste à violação concreta, clara e indesmentível das leis da guerra, neste preciso momento, cometidas aproveitando a anestesia moral da emoção. Ao fim de quantos milhares de palestinianos mortos podemos ser solidários?

O jornalismo emocional não se limita a acordar consciências. Também as anestesia. O papel do jornalismo é acrescentar contexto e razão ao que é paixão e emoção. Por isso a BBC é tão exigente nos termos que usa. Infelizmente, disputando o mercado da atenção e não o da credibilidade, as televisões vão esmagando o pensamento crítico, a dúvida, a saudável adversativa, o contexto e a memória com uma enxurrada de imagens e lágrima e gritos e gestos de solidariedade... E nada é mais fácil de manipular do que a dor.»

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15.10.23

Camisarias

 


Camisaria Niguet, Bruxelas, 1896.
Arquitecto: Paul Hankar.


Daqui.
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É mais ou menos isto

 

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Palestina

 


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Os “anti-semitas” e a honra perdida de Ursula von der Leyen

 


«Ursula von der Leyen foi a Israel na sexta-feira, com Roberta Metsola, a presidente do Parlamento Europeu, e disse a Israel para fazer o que quisesse aos palestinianos, que a Europa apoiava cegamente.

A única versão benévola das inacreditáveis declarações de Von der Leyen, ao lado de Benjamin Netanyahu, é o facto de, enquanto cidadã da Alemanha, lhe ter assaltado a culpa do Holocausto, levado a cabo pelos seus antepassados.

Percebo o sentimento de culpa transgeracional, também me sinto culpada pelos crimes do colonialismo e, tal como Ursula com o Holocausto, só soube a posteriori.

A questão é que a quantidade de sentimento de culpa e remorso que um europeu consegue abraçar é finita e no nosso arsenal de culpa colectiva só cabe uma vítima – os judeus, perseguidos durante séculos por motivos religiosos e de racismo, que culminaram nos horrores do Holocausto.

Esta é a versão benévola: a outra é que Ursula von der Leyen prepara-se, à semelhança de muitos na Europa, no Reino Unido e nos Estados Unidos, para ignorarem tudo o que se passou antes do ataque carniceiro do Hamas a Israel há uma semana. E não estão muito preocupados com o que se passou entretanto e se vai passar depois.

Até Anthony Blinken, o secretário de Estado do país cujo apoio à vingança de Israel seria automático, conseguiu lá pôr um “mas” que Ursula von der Leyen decidiu não colocar: “A nossa humanidade – o valor que atribuímos à vida humana e à dignidade humana – é o que nos torna quem somos. E é um dos nossos maiores pontos fortes. É por isso que é tão importante tomar todas as precauções possíveis para evitar ferir civis. Por isso lamentamos a perda de todas as vidas inocentes, de civis de todas as religiões, de todas as nacionalidades, que foram mortos.”

É uma citação comprida que pelo menos afirma algo que Ursula podia escolher dizer – no mínimo, cumprir a decisão que tinha saído da reunião dos ministros europeus de terça-feira – e que preferiu não fazer e envergonhou profundamente a União Europeia.

Neste dia em que escrevo, a UE prepara-se para apoiar toda a selvajaria prevista na contra-ofensiva que Israel prepara, ainda que Josep Borrel tenha vindo amaciar as declarações de Ursula von der Leyen.

O Hamas procedeu a uma acção terrorista criminosa, Netanyahu – a praticar terrorismo de Estado há muito tempo e a liderar um país onde vigora o apartheid – vai responder até conseguir exterminar os árabes da Palestina (não vai ser só o Hamas). E que, como Jorge Almeida Fernandes aqui bem lembrou, nasceu com o apoio de Israel para debilitar a OLP – Organização para a Libertação da Palestina.

Se Ursula ainda pode ter o “benefício da dúvida” da culpa transgeracional, Rishi Sunak, o primeiro-ministro britânico, está agora a aproveitar o ataque do Hamas a Israel por razões estritamente políticas: este sábado fez um comunicado em que ignorou os civis palestinianos e as resoluções da ONU continuamente violadas por Israel. Segundo o Guardian, os trabalhistas estão apreensivos com o risco de que Sunak lhes cole o rótulo de “anti-semitas”, o que pode ser prejudicial nas próximas eleições. Keir Starmer, que afastou o anterior líder Jeremy Corbyn por alegado “anti-semitismo” e agora o proibiu de se recandidatar sob a bandeira do Labour, está a provar do seu próprio veneno.

O apelo a que não se politize a guerra já está perdido. “Don’t”, disseram Biden e Blinken obviamente com outros objectivos. Mas aqui na Europa, “they do”.

O nosso “doer” – fazedor – da política de usar a guerra para obter ganhos políticos é Carlos Moedas, o presidente da Câmara de Lisboa, que esta semana acusou “a extrema-esquerda” de “conivência com terroristas”, com discurso que “roçou o anti-semitismo, a pior forma de racismo”. A acusação de anti-semitismo está a começar a vulgarizar-se e é o pior serviço a Israel que qualquer pessoa com responsabilidades políticas pode fazer. Antes fôssemos todos animais: haveria mais empatia, se tivessem sido 3000 gatinhos mortos em Israel e na Palestina e não o número de pessoas de carne e osso que já foram mortas dos dois lados.

Os termos da discussão pública – mesmo nas mais altas instâncias, a começar pela presidente da Comissão – são indignos e limitam-se à desumanidade que é a de cada um escolher o seu morto. Isto é a barbárie.»

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