«No livro “como morrem as democracias”, de Steven Levisky e Daniel Ziblatt, explica-se que há uma forma menos dramática do que a usual, mas igualmente destrutiva, de destruir as democracias: às mãos dos líderes políticos eleitos. As democracias vão sendo erodidas aos poucos, em passos pouco visíveis.
Vem isto a propósito do que já se instalou em Portugal e que se refletiu nas eleições autárquicas. Desde a vitória de Luís Montenegro, com o país traumatizado pelo ignóbil parágrafo que levou Marcelo a destruir uma maioria absoluta, passou a vingar esta tese: a eleição legitima a ação e até sana eventuais ilicitudes. A este desvio democrático juntou-se a opção claríssima da direita democrática de se travestir noutra coisa, numa cedência aos ares nacionais e internacionais favoráveis à extrema-direita. A cedência é em si mesma uma erosão da democracia. A palavra “ideologia” foi demonizada e a estratégia de deitar no lixo a social-democracia e a democracia-cristã, somada à força endinheirada e de efeito “desastre na estrada” para a comunicação social, mudou a racionalidade coletiva.
Contra todos os dados oficiais, contra o seu programa eleitoral, surgiu um Governo monotemático, falsamente alarmado com a imigração, anunciando na AR operações humilhantes contra imigrantes específicos, trazendo para debate sumário e simultâneo imigração e nacionalidade, contribuindo para a insegurança, para o ódio, para a angústia dos que menos têm. O CDS assume que não reconhece o país, assume o critério cromático como presunção de nacionalidade. O Chega aplaude a fraqueza da AD e as televisões passam milhares de horas a debater crime, imigração, nacionalidade, casas de banho e agora burcas: isto é, moinhos, quando um em cada cinco idosos vive em pobreza, quando a habitação é um drama coletivo, quando há problemas dramáticos no SNS. Os tais dos moinhos engolidos pela direita democrática dão lucro, pelo que Ventura, derrotado nas autárquicas, volta a ser o primeiro no ecrã em modo “grande entrevista” e os inventados causadores dos problemas nacionais perdem a voz e veem-se retratados como “invasores”, “parasitas” e até, em horário nobre, por uma deputada, como “ratos”.
Nada disto, nada do que aqui vai descrito, isto é, a cedência da direita toda a este horror, é tido por “radical”. O Chega e os seus cúmplices mudaram os significantes das palavras, pelo que Passos Coelho pode aparecer a fazer um discurso em tom 1936, Montenegro pode defender nacionalidades de primeira e de segunda, Moedas pode inventar violações e dizer que Alexandra Leitão mudaria o “nosso modo de vida”, o PSD e o CDS podem defender, como no Porto, que perceção vale mais do que realidade, mas a palavra “frentismo” aplica-se à esquerda que se alia e “radicais” são sobretudo mulheres, como a social-democrata Alexandra Leitão, com programa e CV de fazer corar meio mundo e a direita unida chama-se “aliança” (não há frentismo de direita). Há uns anos, não muitos, toda a deriva populista e mentirosa e antiliberal aqui descrita seria apelidada de radical, inaceitável e faria correr gente às ruas.
Acontece que o tempo histórico é favorável ao incumprimento das regras elementares do jogo democrático: (1) mentir: não prestar contas, assumir que o voto é legitimador de tudo; (2) descredibilizar os adversários políticos: fake news, misogenia, difamações; (3) quebrar o tecido nacional: incitamento ao ódio e apego a propostas legislativas restritivas do vínculo de pertença à comunidade.
Nas autárquicas, o Chega queria 30 câmaras nucicipais e ganhou três. Mas desengane-se quem pensa que não teve uma grande implantação. Teve e já foi explicada. A pior delas todas foi a vitória do PSD travestido, o tal PSD que ganha em Lisboa mentindo e inventando números sobre o crime de violação. Repito: Alexandra Leitão, a social-democrata com um programa que desafia qualquer epíteto ilógico é a “radical”, a sua aliança alargada que no tempo de Sampaio fazia dele um “Senhor” é “frentismo de esquerda”. No contexto nacional e mundial que vivemos, a Alexandra Leitão foi o exemplo da não transigência. Foi fiel a um projeto essencialmente social-democrata e neste contexto teve um resultado forte que a fará escrever as páginas futuras que entender.
O PS teve vitórias marcantes, como Bragança e Viseu sem cedências a agendas reacionárias.
A vitória assustadora desta direita cola-nos o desafio de não ceder. De perceber que vitórias inspiradas na receita do Chega não são escola. Temos de pensar e de agir, porque estamos a perder eleitorado. As contas estão feitas. Temos de pensar e agir com olhos no longo prazo. Não podemos cair nos discursos fáceis e póstumos. As coligações à esquerda são más? Quem disse? Fomos coligados em oito municípios em 308. Talvez pensar mais e fazer menos favores à direita que se entretém a dar cabo da habitação e do mundo laboral, enquanto enche as tardes parlamentares com os temas do Chega.
Temos de nos reorganizar sem deixarmos por um dia de ser quem somos. Mesmo que por um dia fiquemos mais fracos. A nossa diluição será a nossa morte.
Uma coisa tenho por certa. Não é caminho a seguir o que aqui e ali obteve vitória. Porque a vitória do Leviatã, isto é, a vitória da “eterna luta de todos contra todos” tem um fim, e esse fim não é certamente a democracia como a conhecemos.
A nossa hora decisiva já começou.»