«No dia 21 de fevereiro, que parece ter sido há uma eternidade, Vladimir Putin renuiu o seu Conselho de Segurança para dar o último passo para o reconhecimento formal das repúblicas populares de Luhansk e Donetsk. A reunião foi transmitida na televisão. Muitos têm presente a imagem do chefe dos serviços de inteligência, Sergei Naryshkin, a saltar o guião e a dizer que o objetivo era a integração das repúblicas na Federação Russa. E lembrar-se-ão da forma humilhante como foi repreendido e corrigido em frente ao mundo inteiro. Cada um dos membros daquele conselho, que representa o topo da elite política, comprometeu-se, em público, com o caminho que Putin determinou para a Rússia.
No dia seguinte ao começo da ocupação, Putin juntou os principais empresários para discutir os impactos da guerra e das sanções. E para deixar claro que também eles estavam amarrados à sorte da aventura ucraniana. Com o isolamento económico da Rússia e as sanções, também eles estão cada mais distantes do Ocidente e cada vez ainda mais dependentes do regime, trancados com Putin e a sua loucura. Como conta Andei Kolesnikov, do Carnegie Moscow Center, num artigo interessante na “Foreign Afaires”, há um provérbio russo que pergunta para onde se vai quando se está num submarino. Vai-se para onde ele for. O submarino russo “está cercado por águas profundas e ninguém pode sair”.
Claro que isto tem um limite. À medida que as coisas começarem a apertar a oligarquia russa e, até mais do que ela, a elite que rodeia Putin, pode não querer mesmo afundar-se com ele. Como escreveram, também na “Foreign Afaires”, Andrea Kendall-Taylor, do Center for a New American Security, e Erica Frantz, da Universidade de Michigan (dois artigos onde pude ir buscar parte da informação que uso neste texto e que confirma o que é escrito por quem conhece a política russa), “as sanções tendem a ser mais eficazes contra regimes autoritários personalistas do que contra outros tipos de autocracias, porque os ditadores personalistas são os mais dependentes do clientelismo para manter o poder”. E explicam: pela primeira vez, a elite russa pode ter de escolher o seu estilo de vida e Putin. Se ele não lhes garantir um futuro próspero, podem tentar substituí-lo. A questão é se a própria cadeia de comando militar começa a sentir essa necessidade, digo eu. E se há, dentro do regime, alguma alternativa.
Censura e repressão
Depois, há o povo. Não devemos ter grande ilusões neste momento. Apesar de manifestações em dezenas cidades e de uma petição contra a guerra assinada por um milhão de russos, são os corajosos “suspeitos do costume”. A imagem de Yelena Osipova, uma sobrevivente do cerco de Leninegrado, a ser detida é comovente pela coragem e desconcertante pela fragilidade de um regime que teme uma mulher quase centenária. Mas Yelena é uma ativista de longa data. Daquelas pessoas que se mantêm nas lutas quando os outros já ou ainda estão acomodados à situação. Ainda não há um movimento popular contra a guerra.
Antes da Rússia invadir a Ucrânia, a maioria dos russos apoiava o reconhecimento das regiões separatistas e culpava a Ucrânia e a NATO pelo conflito iminente. E o índice de aprovação de Putin cresceu entre novembro (63%) e fevereiro (71%), atingindo os melhores números dos últimos anos. Mas uma guerra longa, sangrenta e destrutiva, assim como uma crise económica profunda, causada pela queda do rublo, pode mudar as coisas.
Até lá, o regime tem sabido defender-se.
Pela censura, antes de tudo. Os russos não estão a ver o mesmo que nós – e mesmo nós estamos muito longe de ver tudo, como se percebe pela divulgação de alguma propaganda ucraniana sem grande escrutínio prévio, mas isso deixo para outro texto. Ouvem a repetição da narrativa de Putin, tratando esta “operação militar” como uma reação à intimidação do povo do Donbasse e a um golpe apoiado orquestrado pelo Ocidente, em 2014 (tudo coisas em que os russos querem acreditar).
Palavras como “invasão”, “ataque” ou “guerra” foram banidas da comunicação social. O acesso ao Facebook e ao Twitter foi bloqueado. A Procuradoria-Geral impôs a proibição dos sites dos meios de comunicação independentes mais populares, como a TV Rain. A 2 março, a estação de rádio independente que transmite na Rússia desde 1990 Echo Moskvy foi encerrada. O acesso a sites de informação internacionais, como a BBC ou a Deutsche Welle, ou nacionais, como Meduza e Radio Svoboda, foi bloqueado. Só os jovens conseguem contornar este bloqueio à informação.
O Parlamento aprovou uma lei que pune com penas até 15 anos de prisão a disseminação de notícias que as autoridades considerem falsas acerca da atuação das forças armadas. E são os próprios órgãos de comunicação social estrangeiros que estão a sair da Rússia, deixando-nos cegos em relação ao lado de lá. O que pode o ocidente a cometer erros semelhantes aos que estão a ser cometidos pela Rússia.
E Putin defende-se pela repressão. Já foram detidos muitos milhares de manifestantes. A repressão é eficaz na Rússia. Em 2021, 52% dos russos temiam a repressão em massa e 58% tinham medo de serem presos ou prejudicados. São os números mais altos desde 1994. Putin pode resistir à reação das pessoas à guerra da Ucrânia e à crise. Pode até impedir, por via da censura e da repressão, que os protestos se espalhem. A não ser que a revolta ganhe enormes proporções no prolongar da guerra.
A guerra de desgaste
O problema de Putin é que, iludido pelo isolamento a que os déspotas sempre se condenam, é cada vez mais evidente que esta guerra foi mal preparada, porque se baseou num extraordinário otimismo em relação ao que se ia encontrar no terreno. É provável que a informação tenha passado por filtros políticos – como aconteceu na guerra do Iraque, com os EUA – para tudo parecer mais fácil.
Os ucranianos resistirão à ocupação com ferocidade e, mesmo que sejam derrotados, os russos terão de lidar com a insurgência. Ao contrário do que Putin esperava, isto não tem nada a ver com o que aconteceu com a Crimeia. Nem a reação ucraniana, nem a do resto do mundo, nem sequer o apoio que a intervenção merece na Rússia.
As coisas avançaram de tal forma que não é, neste momento, fácil imaginar que espaço de recuo existe para uma negociação. A ocupação da Ucrânia exige uma mobilização geral de centenas de milhares de soldados (e baixas permanentes) que seria fatal para Putin. E não há ninguém para liderar um governo fantoche, que não duraria muito. Se tiver consciência disto, o desgaste levará Putin à mesa de negociações e, nessa altura, com a Ucrânia destroçada e a Europa consumida por uma crise, duvido que haja muita gente irredutível. Se Putin não o souber de tudo isto, sobra a sua queda.
A porta das negociações tem de estar sempre aberta. Não compreendo, aliás, como é que dizer este óbvio ululante pode causar qualquer polémica. E o melhor que nos poderia acontecer era a China querer mediar o conflito. Mas acreditar em negociação sem a pressão militar dos ucranianos é conversa de miss mundo. Os ocupantes só negoceiam se a isso forem obrigados. E, mesmo assim, raramente o fazem.
A vitória total e final de um dos lados é difícil, pelo menos a médio ou curto prazo. E a intervenção direta da NATO ou uma zona de exclusão área (no-fly zone) seria, como bem disse o presidente Conselho Europeu, Charles Michel, expor o mundo à possibilidade de uma terceira guerra mundial, nuclear. Não está sequer em cima da mesa. A Ucrânia não seria salva por uma escalada que ponha em sério risco a sobrevivência de todos, incluindo a dos próprios ucranianos (os que lá estão e os que fugiram).
Resta a guerra de desgaste, em que os russos terão de lidar com milhares de baixas, como lhes aconteceu na guerra do Afeganistão e aos norte-americanos no Vietname. E uma prolongada crise económica. Aí, não será fácil Putin manter a sua narrativa e a elite amarrada à sua própria tragédia.
Tudo isto levará imenso tempo, imensas vidas e uma crise também na Europa. Não terão de esperar muito para ver os que mais se entregaram à solidariedade com os ucranianos a atacarem os seus governos pelo aumento do preço do combustível. A solidariedade é mais fácil quando é de borla. E tudo isto pode servir de pouco. Putin pode muito bem resistir. Responder. Responder a todos.»