«O Bloco de Esquerda nasceu da ressaca do primeiro referendo à despenalização do aborto, fruto do desencanto com o conservadorismo do PS. E nasceu dos despojos de uma esquerda radical derrotada duas décadas antes e de dissidências do PCP. Foi feito por quem aprendeu alguma coisa com a queda do Muro de Berlim.
Ao contrário do que muitos então pensavam, não foi uma aliança de forças de extrema-esquerda, apesar de duas delas estarem na sua génese. Nasceu porque havia, há muitos anos, um espaço por ocupar entre o PCP e o PS, já evidente na candidatura de Maria de Lourdes Pintasilgo, mais de uma década antes. As chamadas causas “fraturantes”, que correspondiam a um casamento entre a cultura marxista e as liberdades individuais reivindicadas desde os anos 60, entre a luta de classes e outras identidades, correspondiam ao ar daquele tempo. E foram a cunha que permitiu abrir uma fresta num sistema partidário que, apesar de ter sido desafiado pelo PRD, nunca tinha sido realmente posto em causa. O BE foi o primeiro a conseguir fazê-lo de forma consistente e continuada.
Ganhando força nos centros urbanos, entre jovens e intelectuais, foi alargando o seu espaço. O vício de as análises não acompanharem a evolução fez com que muitos continuassem a olhar para o BE como se fosse o inicial. Quando chega aos 10%, em 2009 e em 2015, depois da troika, o partido mudou a sua natureza eleitoral. Passou a ter menos peso no seu berço – a malha urbana de Lisboa e do Porto e o eleitorado mais jovem e qualificado – enquanto ganhava fora em grupos e territórios mais populares, em especial na península de Setúbal ou no Algarve, precisamente onde o Chega agora mais cresce. Sem que isso tivesse sido devidamente analisado, o Bloco tornou-se um partido popular.
O PARTIDO-MEGAFONE
Apesar desta mudança, a sua militância continuou a ser curta, a sua implantação frágil e a dissonância entre o partido e o eleitorado cada vez maior. Durante a austeridade, que o levou ao melhor resultado de sempre, o Bloco foi incapaz de criar movimento e descer à terra, ao contrário do que outros fizeram em Espanha ou na Grécia.
Não é fácil explicar, a quem conheça mal o partido, a razão deste bloqueio. Mas há um pecado original: nascido de correntes que se foram dissolvendo ideologicamente sem que nunca se dissolvessem como sindicatos de voto interno, a prioridade das várias tendências internas foi manter os equilíbrios, o que implicou fechar-se ao exterior, evitar crescer, evitar recrutar militância. Por outro lado, a cultura de seita nunca foi abandonada, o que fez com que o partido fosse incapaz de lidar com os movimentos sociais sem repetir os vícios do PCP, em versão piorada, porque mais amadora.
A incapacidade de o partido acompanhar o seu crescimento eleitoral com mais implantação social alimentou, no Bloco, o vício da propaganda. Aquilo a que chamei o “partido-megafone”. Um partido que lida com todos os problemas através de campanhas que medeiam a sua relação com os atores sociais. Um partido que todos ouviam, mas ninguém via.
Este isolamento não permitiu abandonar um hábito comum na extrema-esquerda: uma espécie de internacionalismo performativo, que tende a reproduzir experiências externas num território completamente diferente. Isso foi evidente na última campanha eleitoral, quando o Bloco de Esquerda pegou na campanha do Die Linke e a repetiu num contexto radicalmente diferente, chamando antigos dirigentes e organizando um porta-a-porta, como se tivesse a estrutura e história do partido de esquerda alemão. Serviu, mais uma vez, para conseguirem umas notícias nos jornais. Ainda assim, o pífio contacto direto com os eleitores, que só podia ser pífio tendo em conta a fragilidade da sua militância, serviu para que percebessem como a extrema-direita tinha conseguido alimentar uma onda de ódio contra o partido e a sua líder.
Se as conquistas da geringonça fizeram transferir o voto do BE e do PCP para o PS, que ficou com os louros do que foi obrigado a fazer pelos seus aliados (como se viu pela desgraça que se revelou a maioria absoluta) e conseguiu responsabilizá-los pelo fim desta experiência, o crescimento da extrema-direita esvaziou-os como lugar de protesto. BE e PCP ficaram associados à fase decadente do governo socialista, mesmo depois de cortarem com ele. Passaram a ser, sem grande mérito, partidos da situação.
CRIAR ELEITORADO
A ideia errada que os media têm do eleitorado do Bloco – que deixou de ser urbano, jovem e fraturante há mais de uma década – faz com que pensem que o Livre, cujo eleitorado se assemelha ao original do BE, pode substituí-lo ou tem um limiar de crescimento semelhante. As dificuldades que o Bloco tem em aproveitar a implantação popular que conseguiu em 2015 terão de ser multiplicadas por dez com o Livre. O Livre é um partido feito de e para elites culturais. Mesmo nos temas, não tem qualquer apetência popular.
Já o PCP tem demasiado lastro, demasiada rigidez, demasiada história e muito pouca disponibilidade para fazer pontes. Como se vê onde é hegemónico, como nos sindicatos, a perda de influência sindical corresponde a uma ainda menor disponibilidade para partilhar o pouco poder que resta.
O que está em causa não é um espaço político entre o PCP e o Livre, que, convenhamos, será muitíssimo curto, por estes dias. Mas uma função política: a de fazer nascer e crescer uma força popular heterodoxa, abrangente e plural, capaz de disputar o descontentamento e até o ressentimento com a extrema-direita. Como já escrevi, não se trata de juntar forças ou eleitores. Trata-se de fazer o mesmo que o Chega conseguiu: criar eleitorado.
Pela sua origem e história, o Bloco de Esquerda mistura a cultura da esquerda clássica e da nova esquerda. Tem, no seu ADN, esse jogo de cintura. Só já não tem tudo o resto: a energia mobilizadora, a militância e a leveza otimista. Porque se é verdade que o Bloco de Esquerda não é a simples união de vários grupos da esquerda radical – se o fosse, nunca teria chegado aos 10% –, não é menos verdade que carrega mais do que 25 anos de história. Carrega, pela sua génese, mais de 50.
A CONSCIÊNCIA DA CRISE É UM ATIVO
O Bloco de Esquerda morreu. Como sigla e como esperança. Morreu tanto como o CDS, que o PSD ligou à máquina do poder sem qualquer identidade própria. Isto não quer dizer que o Bloco, com a sua experiência, não seja importante para fazer renascer uma esquerda popular, à esquerda do PS, como existe um pouco por toda a Europa. Um espaço que não é ocupada por partidos como o Livre (que são, na realidade, os Verdes portugueses). A utilidade do Bloco de Esquerda será proporcional à sua humildade.
Humildade não é, como deseja a direita, autoflagelar-se pela sua derrota. Será, pelo contrário, um ato de ousadia: perceber que os partidos são meios, não um fim em si mesmos. Ao contrário do PCP, que seria, compreensivelmente, incapaz de se libertar de mais de um século de história; e do Livre, que está agarrado às idiossincrasias do seu líder natural e demasiado embevecido com o seu próprio espelho, é a crise profunda do Bloco que lhe dá a oportunidade de ser útil: é o único que tem consciência, por experiência própria, da profundidade da crise da esquerda. O único que tem consciência, por tudo o que lhe correu mal, da necessidade imperiosa de se superar a si mesmo.
Pode-se ver, na eleição de José Manuel Pureza, um sinal dessa humildade. Sem qualquer desprimor para alguém que conheço e respeito há três décadas, um homem de 66 anos não pode ser visto como um ativo eleitoral do Bloco. Mas um católico menos marcado pelos códigos muito próprios da falecida extrema-esquerda pode ser um ativo para fazer pontes e procurar, fora do partido, mais do que aliados ou compagnons de route, que um partido com 2% nunca terá. Ajudar a semear o que está a nascer e crescer em vários países europeus e nos EUA: um polo popular de esquerda que trave o desequilíbrio que está a pôr em perigo a nossa democracia.
Mas José Manuel Pureza começa o seu mandato com um problema prévio. Fabian Figueiredo, apesar de carregar o mesmíssimo lastro das derrotas, sobreviveu à saída de Mariana Mortágua. É ele o deputado único, será para ele a pouca atenção mediática que restará ao partido. Nestas condições, será Pureza o líder de facto?»