«O comentador Marcelo Rebelo de Sousa (M.R.S.) constitui, pelo seu recente comportamento, uma ameaça à credibilidade da instituição da Presidência da República e ao futuro de Portugal. Começo com uma declaração de interesse: votei em Marcelo Rebelo de Sousa nas eleições presidenciais de 2016 e de 2021. Nas duas ocasiões, estava convicto de que a sua eleição poderia ser importante para o futuro país. O problema é que, em vez de um Presidente da República, elegemos um comentador com urgência pessoal e compulsão para se pronunciar, instantaneamente, sobre tudo.
Há duas semanas, no final do último jogo de preparação da seleção nacional de futebol contra a Nigéria, M.R.S. teceu uma série de considerações sobre a equipa portuguesa e, sem que ninguém o tivesse questionado sobre o assunto, afirmou: “O Catar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal... mas, esqueçamos isto. É criticável, mas concentremo-nos na equipa.” Estas suas afirmações e a forma como as justificou, em Portugal e em Doha, revelam um problema grave e persistente.
Os factos: em 2010, a atribuição da organização do Campeonato Mundial de Futebol pela FIFA ao Catar foi extremamente polémica. Tudo indica que muito dinheiro terá sido decisivo para o resultado final. Todavia, não era inédito. Tal já tinha acontecido noutros campeonatos. Há algo de muito podre no império da FIFA que, entretanto, já modificou o método de escolha para futuros campeonatos. Em 2013, a Amnistia Internacional chamou a atenção para as condições desumanas em que migrantes, sobretudo asiáticos, trabalhavam na construção dos estádios de futebol e das infraestruturas necessárias para a realização do torneio no Catar. Tudo isto era do conhecimento público.
Que terá levado M.R.S. a fazer afirmações sobre o assunto e neste momento? Só ele poderá responder. Mas os que têm presentes uma série de declarações extemporâneas e infelizes suas nos últimos tempos poderão tirar duas conclusões. A primeira é que M.R.S. parece ter hoje menor capacidade de avaliar o que diz, como diz e o seu impacto. O comentador terá esquecido que é Presidente da República. Fala porque lhe apetece falar e dizer qualquer coisa todos os dias. Passando à segunda, a sua área de eleição no comentário foi sempre a política interna. A política internacional não é universo em que M.R.S. se sinta à vontade. Por vezes, o Presidente da República anula o comentador que persiste em si e produz um bom discurso, como o do passado dia 3 de novembro no Instituto de Defesa Nacional.
O Catar é um país recente. Tornou-se independente em 1971. Estado pequeno com uma característica singular: enorme ambição a nível regional e mundial. O seu instrumento político tem sido o gás natural, especialmente o liquefeito (LNG, na sigla inglesa), de que é um dos maiores produtores mundiais. A guerra da Rússia contra a Ucrânia aumentou ainda mais a importância de Doha nos mercados internacionais de energia. Como a transição energética deverá ser bem mais longa do que os decisores políticos europeus desejam, esta energia fóssil continuará a ser importante nas próximas décadas. Assim, daqui para frente a Europa dependerá mais, e não menos, do Golfo Pérsico e do Mediterrâneo.
Tal como aconteceu com todos os países que organizaram o Campeonato Mundial de Futebol, Doha vê neste torneio um evento de grande afirmação política regional e mundial. É o primeiro Mundial que tem lugar no Levante. Sabe-se que a liderança do Catar ambiciona ser uma ponte entre o mundo árabe sunita e outros continentes e culturas. Tudo indica que os decisores do Catar tenham subestimado os efeitos das críticas internacionais em relação à situação dos direitos humanos no seu país. As críticas deverão aumentar nos próximos dias. Esta semana, Hassan al-Thawadi, alto-funcionário do Catar com responsabilidades na organização do Mundial, afirmou numa entrevista a Piers Morgan que “a estimativa [de migrantes que morreram durante os trabalhos de construção das infraestruturas desportivas e urbanas] é à volta de 400, entre 400 e 500”.
Foi neste contexto que M.R.S. reafirmou a sua intenção de ver o jogo de Portugal contra o Gana e falar dos direitos humanos em Doha. As suas declarações na capital do Catar foram reproduzidas quase de forma triunfal por parte da imprensa em Portugal. Infelizmente, tal coincidiu com o desmantelamento de uma importante rede de tráfico humano e de trabalho escravo no Baixo Alentejo pela Unidade Nacional de Contraterrorismo da Polícia Judiciária (PJ). Como afirmou Luís Neves, diretor nacional da PJ, de forma exemplar, esta operação foi “um trabalho dos direitos humanos”. No Catar, todavia, M.R.S. exagerou e apresentou Portugal como um líder internacional na defesa dos direitos das mulheres. Muito convenientemente, esqueceu-se de relembrar que mais de 500 foram assassinadas no país nos últimos 15 anos.
Como vimos, um número semelhante de migrantes terá morrido no Catar durante a construção dos estádios, complexos desportivos e rede do metropolitano desde 2010. Em Doha, M.R.S. afirmou ainda que Portugal lidera também na “educação para a revolução digital”, tem a Web Summit, “unicórnios” e imensas start-ups. Tudo isto no momento em que o Instituto Nacional de Estatística publicou os resultados dos Censos 2021, que apontam para um país muito envelhecido e despovoado. Em Portugal, a taxa de pobreza antes das transferências sociais está nos 43,4%, o que não pode ser motivo de orgulho.
Estas declarações de M.R.S. na capital do Catar são um exemplo do seu paroquialismo e isolamento. Desde 2001, os interesses permanentes de Portugal nunca impediram qualquer Presidente da República de visitar oficialmente os Estados Unidos apesar de Guantánamo. No que toca ao Catar, não há razões diplomáticas que justifiquem uma ou várias viagens presidenciais agora. A verdade, como todos sabemos, é que o comentador M.R.S. quis “ir à bola”.
A grande contribuição de M.R.S. como comentador tem sido a infantilização permanente de Portugal. Tal como o flautista de Hamelin, um dos meus contos favoritos dos irmãos Grimm, Hamelin atrai-nos com uma sucessão diária de factos e histórias que nos conduzem de forma silenciosa à irrelevância. Não necessitamos de “visões de futuro”. Os portugueses necessitam que um Presidente da República, corajoso, competente e bem informado lhes sugira uma trajetória para atingir um conjunto de fins em que a maioria se reveja, isto é, uma estratégia. Estou convencido de que a maioria dos portugueses não precisa de continuar a ser entretida nem menorizada por M.R.S..
Alguns dos leitores regulares desta coluna poderão ficar surpreendidos com este texto. Não têm razão. Este é um exercício de afirmação cívica de que não prescindo enquanto cidadão português que vive nos Açores e está crescentemente preocupado com o futuro dos seus três filhos. É tudo. Portugal precisa do seu Presidente da República agora.
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