«Há uma frase de Churchill que me vem quase sempre à memória quando vejo, em diferentes pontos do globo, os protestos das pessoas comuns contra regimes autocráticos. Já adivinhou, caro leitor cara leitora, qual é essa frase: "A democracia é a pior forma de governo, à excepção de todas as outras". E não apenas porque assenta no respeito da liberdade e da dignidade de cada um, mas porque acaba por ser também a forma de governo mais eficaz. À primeira vista, pode parecer mais fraca. Na realidade, é mais forte.
Há quase três meses que as mulheres iranianas lançaram um movimento contra a obrigação do véu, que lhes era imposta brutalmente por um regime teocrático que as trata como cidadãs de terceira categoria.
Esse movimento, cujo rastilho foi a morte da jovem Mahsa Amini, depois de ter sido presa pela chamada polícia dos costumes por usar o véu mal posto, alastrou ao país inteiro. Mantém-se imparável, apesar da violência da repressão. Mais de 400 vítimas mortais e 14 mil prisões, segundo dados das Nações Unidas. Cresce a cada nova vítima. Contagia os meios intelectuais e artísticos, e sectores fundamentais da economia. Chega ao Mundial do Qatar, onde a selecção iraniana se recusou a cantar o hino nacional do Irão. Põem em causa perante o mundo inteiro a legitimidade do regime dos ayatollah, mostrando a sua face mais negra, mas também a sua manifesta incapacidade para eliminar os protestos.
Hoje, no entanto, o nosso olhar está virado para o que se passa na China, sujeita a um regime comunista implacável e liderada por um chefe supremo que quis ver-se "entronado" no XX Congresso do Partido Comunista Chinês, em Outubro, como um segundo Mao.
Milhares de pessoas em centenas de cidades vieram para a rua, continuam na rua, em protesto contra a política de covid-zero seguida pelo Governo de Pequim desde o início da pandemia. Em Xangai, Pequim, Wuhan, Chengdu, Guangzhou, Nanjing e em quase todas as grandes cidades chinesas. Basta que apareça um caso.
Os confinamentos são impostos com um rigor draconiano, fechando centenas ou milhares de pessoas em prédios de 20 andares, bairros inteiros, sem excepções, nem sequer a garantia de apoio em caso de doença grave, falta de alimentos ou outras causas semelhantes. É uma realidade que nem sequer conseguimos imaginar. Justificada pelas autoridades com o objectivo de salvar vidas. Mas que tornam a vida de milhões de chineses num verdadeiro inferno sem fim à vista.
Apesar da política de covid-zero, os casos têm aumentado exponencialmente nas últimas semanas. A explicação para este novo surto pode estar na pouca eficácia da vacina produzida na China e na recusa chinesa de comprar vacinas produzidas nos países ocidentais.
Desta vez, caro leitor, cara leitora, o rastilho para os protestos começou na região do Xinjiang, onde vive a minoria uigur, já de si condenada pelo regime a viver numa espécie de campo de concentração. Um incêndio num prédio com as portas bloqueadas pelas autoridades matou dez pessoas. Os protestos espalharam-se rapidamente às grandes cidades chinesas, mobilizaram os estudantes das universidades, incluindo as mais prestigiadas, em Pequim. Já encontraram a sua imagem icónica: folhas de papel em branco que os manifestantes exibem para dizer que estão impedidos de falar. A ideia nasceu em Hong-Kong, em 2020, quando a China acabou com a política de "um país, dois sistemas" e impôs uma nova lei de segurança que proibiu qualquer protesto.
"O que eu sinto é que, durante algumas horas, sou livre", diz uma mulher de trinta anos, de Xangai, citada pelo Monde. "Mesmo que seja por um tempo muito curto, por uma vez digo aquilo que tenho vontade de dizer". "Não esquecemos o 4 de Junho", uma referência directa ao massacre de Tiananmen. "Abaixo Xi". "Abaixo o Partido Comunista". "Queremos liberdade".
A presença das televisões estrangeiras e a proliferação de imagens e de mensagens nas redes sociais foram mais fortes do que os mecanismos criados pelo regime chinês para controlar a Internet. A China montou um sistema de controlo electrónico dos cidadãos que é a inveja de todas as ditaduras. Muitas dessas imagens são apagadas. Aparecem outras. Sucedem-se os confrontos com a polícia. Até agora, a repressão visível tem sido contida. O regime não permitirá o alastramento dos protestos nem, muito menos, que as palavras de ordem deixem de ser apenas sobre uma exigência social – o alívio dos confinamentos e da obrigatoriedade permanente dos testes –, para passarem a ter uma natureza política.
Desde Tiananmen
Os analistas ocidentais referem que não se via nada assim desde Tiananmen, em 1989, quando as manifestações a exigir a abertura e a democratização foram esmagadas pelos tanques do exército, provocando milhares de mortos. Era outra China. Era outro mundo. Hoje, a China é mais rica e o mundo mais transparente. A repressão é muito mais sofisticada e muito mais eficaz, graças às novas tecnologias, que a China não inventou, mas que sabe utilizar como ninguém para controlar 1400 milhões de chineses.
Houve sempre contestação localizada. Normalmente, contra autoridades locais negligentes ou por melhores condições de trabalho. Nunca contra as autoridades nacionais, em Pequim, e sobretudo, contra Xi Jinping. "Os últimos dias de protestos na China contra os confinamentos do covid-zero são o oposto", escreve o Financial Times. "São nacionais, envolvem gente de muitos sectores e combinam a fúria popular contra vários aspectos de uma forma nunca vista desde a Praça Tiananmen".
É uma situação nova. Provavelmente, sem futuro. Mas que não deixa de ser uma tremenda dor de cabeça para o líder chinês e para a sua estratégia de afirmação de poder pessoal ilimitado. É o chamado "modelo do homem forte", levado ao extremo, que hoje ganha adeptos um pouco por todo o mundo e cuja maior fraqueza está na sua própria natureza: a incapacidade de mudar e de adaptar-se.
As democracias adaptam-se
Numa democracia, os protestos são livres, desde que não sejam violentos, e os Governos são obrigados a encontrar respostas. Explicam as suas políticas. Adaptam-nas. Mudam-nas. E, em última análise, caiem por via de eleições. É por isso que as democracias são resistentes. Muito mais resistentes do que qualquer ditadura e qualquer homem forte.
Xi passou a vida a gabar-se da forma como a China tinha gerido a pandemia, que teve origem em Wuhan, em Dezembro de 2019, em comparação com o "caos" ocidental. É verdade que as medidas draconianas que adoptou salvaram muitas vidas. Sabia que, com uma população muito envelhecida, não tinham meios para atender todos os infectados. O sistema de saúde chinês é ainda incipiente. As medidas que impôs só são possíveis em ditadura. Crianças separadas dos pais e encerradas nas escolas. Cidades de 20 milhões de habitantes, como Xangai, paralisadas. Prédios fechados à chave pelas autoridades. Transporte de pessoas, à força, para sítios destinados a quarentenas. Tudo aquilo que, para nós, é inimaginável ou inaceitável.
Alguns analistas explicam o rastilho que desencadeou a contestação com o mais improvável dos motivos: o Mundial do Qatar. Pequim decidiu impedir a transmissão dos jogos pelas televisões, para que os chineses não vissem milhares de pessoas sem máscara, sem distância, a assistir aos jogos. Por vezes, basta uma pequena faísca para incendiar a pradaria, para citar o próprio Mao Tsetung.
Não sabemos
O que vai acontecer, não sabemos. O regime não vai cair. Provavelmente, haverá algum alívio das medidas covid-zero. Já hoje houve alguns sinais nesse sentido. A violência da repressão talvez não chegue ao extremo de Tiananmen. Obrigará o regime a virar-se para dentro. Está a ameaçar a sua economia, já bastante afectada pela pandemia. O FMI calcula para este ano um crescimento de 3,2%. As exportações caíram. "Há hoje confinamentos em cidades que correspondem a cerca de um quarto do PIB chinês", escreve a Economist, citando dados compilados pelo banco de investimento japonês Namura. "A taxa de desemprego jovem atingiu um máximo de 19,9% em Julho."
A política de decoupling seguida pelos Estados Unidos coloca novos problemas ao desenvolvimento chinês. A Europa deixou de ser um parceiro tão "simpático" como já foi, graças às lições que está a tirar da guerra de Putin na Ucrânia e da chantagem do gás.
O crescimento económico está na base da legitimidade do poder do PCC aos olhos da população. Em particular, de uma vastíssima classe média que vive bem e que continua a ter um relativo acesso ao mundo, lá fora, que lhe serve de comparação, até porque viaja muito. Dito de outra maneira, a China não é a Coreia do Norte. A infalibilidade de Xi não voltará a ser a mesma. A sua imagem internacional também não.
Em Moscovo, Putin deve estar também a fazer contas à vida. De repente, no regime mais controlado do mundo, milhões de pessoas vêm para a rua protestar. As ditaduras parecem fortes até ao dia em que caem. As democracias parecem vulneráveis, mas a sua capacidade de resistência é directamente proporcional à sua capacidade de transformação e de mudança e a essa coisa tão simples, que damos por adquirida: são os eleitores que mandam.
Churchill tinha toda a razão.»
Teresa de Sousa
Newsletter do Público, 29.11.2022
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