12.10.24

12.10.1972 - O dia em que a PIDE assassinou Ribeiro dos Santos



No dia 12 de Outubro de 1972, a PIDE assassinou José António Ribeiro Santos, militante do MRPP.

Quando ia realizar-se um «meeting contra a repressão» em Económicas, gerou-se uma confusão quando foi identificado, junto das instalações da Associação de Estudantes, um desconhecido que analisava cartazes e tomava apontamentos. Seguiu-se uma série de episódios, resumida por Jorge Costa em texto publicado há alguns anos e mais tarde retomado, que culminou em disparos de revólver por um agente da PIDE – António Gomes da Rocha –, que mataram Ribeiro dos Santos e feriram José Lamego, também ele militante do MRPP (que esteve internado sob prisão no Hospital de S. José, até ser levado para Caxias e aí ser sujeito à tortura do sono).

O assassinato de Ribeiro dos Santos despoletou uma grande reacção em todo o movimento estudantil e marcou-o até ao 25 de Abril. Ainda na noite do dia 12, foi tomada em plenário de estudantes a decisão de paralisar a universidade para permitir a participação no funeral. Este deu lugar a uma forte carga policial, à saída da casa dos pais de Ribeiro dos Santos, perto da igreja de Santos, com a polícia a impedir que os colegas carregassem-se a urna, a pé, até ao cemitério da Ajuda. Houve feridos, algumas detenções e os distúrbios continuaram mais tarde pela cidade.

O que se seguiu? Cito Jorge Costa: «Nos dias seguintes, a universidade está parada. Face ao crescendo de manifestações, são emitidos mandados de captura contra os quatro primeiros dirigentes da AE de Ciências e da direcção cessante da AEIST. Alguns conseguem escapar e permanecer na sombra. Os plenários de 19 e 20 de Outubro são impedidos e toda a cidade se encontra super-policiada. A DGS realiza buscas nas casas de dirigentes associativos e muitos são levados para Caxias. Em Novembro, multiplicam-se as greves estudantis. Para impedir a agitação contínua, Sales Luís encerra o Técnico. Farmácia e Letras também fecham. Muitos dos estudantes suspensos são incorporados no exército colonial. Há muitos estudantes do ensino secundário entre os presos, em Lisboa e no Porto (...). No final de 1972, os estudantes estão em todas as batalhas da "quarta frente" da guerra que condena a ditadura.»
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12.10.1960 – A sapatada de Nikita

 


Quem tem idade para tal lembra-se certamente deste episódio cujas imagens deram volta ao mundo, quando este era muito mais politicamente respeitador do que hoje: durante uma agitadíssima Assembleia Geral da ONU, Nikita Kruschev tirou um sapato e bateu furiosamente com ele na sua bancada.

O incidente produziu-se num momento de grande tensão na Guerra Fria, cinco meses depois de um avião-espia americano ter sido abatido em território soviético e quando o recentíssimo governo de Fidel Castro se aproximava cada vez mais da URSS.

Na origem do gesto de Kruschev esteve uma intervenção do representante das Filipinas, em que este acusou a União Soviética de «colonizar» os países da Europa de Leste e os privar de direitos civis e políticos.

Seguiu-se uma sequência rocambolesca: Nikita protestou com o sapato, o presidente da Assembleia tentou controlá-lo batendo na mesa com um martelo, partiu-o, apagou a comunicação das traduções simultâneas e interrompeu a sessão.


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A nossa degradação moral face à impunidade da guerra de Israel

 


«Moral e política são maus parceiros. A chamada realpolitik é exactamente a expressão que traduz esse divórcio. Ou seja, uma política feita em função, acima de tudo, de um conjunto de interesses, sejam nacionais, sejam de segurança, sejam de puro exercício de poder, em causa própria ou numa causa colectiva e que, na sua execução, passa por cima de qualquer consideração moral, ou de direito internacional, que pretenda impor limites à acção política pela regulação livremente acordada, considera-se “realista”. Ou seja, tudo se pode fazer em função de um objectivo, sem qualquer espécie de constrangimento.

Nações democráticas e ditaduras actuam em função dessa realpolitik de uma forma muito semelhante, nenhuma está inocente da prática de actos que violam qualquer restrição moral e o direito internacional. No entanto, há diferenças de dimensão, dado que as democracias respondem perante as suas opiniões públicas traduzidas no voto, e as ditaduras e os ditadores não têm de dar nenhuma explicação a ninguém.

Isto significa que, mesmo sem garantia de eficácia, uma ideia moral do que se pode ou não fazer, sejam quais forem as circunstâncias, e a aceitação do primado do direito, é sempre relevante nas democracias. Mais, é uma parte constitutiva das democracias a ideia de que, para além da hipocrisia, haja coisas que não se podem fazer e que devem ser condenadas sem “mas” e punidas sem hesitação. Sancionadas duramente e os seus responsáveis punidos como criminosos que são.

É o caso da actual guerra regional que Israel conduz no Médio Oriente. Há muito que não é uma guerra de resposta ao massacre do Hamas que fez agora um ano, nunca foi uma guerra existencial pela defesa do Estado de Israel – legítima, caso fosse –, porque quem escreve estas linhas considera inaceitável a turma do “desde o rio até ao mar”. É uma guerra que aceita que, para matar um militante do Hamas ou do Hezbollah, se podem matar cem velhos, mulheres e crianças, com total indiferença, que considera normal destruir a precária infra-estrutura de Gaza, casas, hospitais, escolas, tudo, sem a menor hesitação, que enuncia claros objectivos de alargamento territorial.

E não me venham com a história de que o facto de dois grupos terroristas se esconderem num escudo de civis, e usarem escolas, hospitais, instalações da ONU – coisa que eles fazem – justifica o que Israel faz. Israel tem recursos e meios para chegar aos seus objectivos militares e tempo para o conseguir sem este massacre quotidiano. Não, não é a razão militar que justifica o que está a ser feito, é considerar que ser palestiniano é ser terrorista, é atribuir uma culpa colectiva às populações de Gaza e do sul do Líbano que, quando inclui as mulheres, as crianças e os velhos, é moralmente obscena. E é, pela simultaneidade do que está a acontecer com os colonatos e as violências incentivadas pelo actual Governo de extrema-direita, uma guerra por território e uma limpeza étnica.

Israel é uma democracia, que beneficiava de uma simpatia em muitas democracias, mesmo sem que essa simpatia tivesse que ver com importantes comunidades judaicas, como nos EUA. Tinha simpatia muito para além do sionismo, à esquerda por exemplo, pela sua origem em certas experiências socializantes, como os kibutz. E tinha simpatia porque os seus adversários ou eram ditaduras árabes ou grupos terroristas capazes das maiores atrocidades. Israel estava no pior sítio do mundo para ser uma democracia e, mesmo quando havia preocupação pelo destino imerecido e violento dos palestinianos, a ideia de que tinha todo o direito de se defender dos seus péssimos vizinhos era muito consensual.

Hoje, tudo isto mudou e são evidentes os estragos que Netanyahu e o seu Governo fizeram ao prestígio de Israel, actuando de forma criminosa, palavra que resume tudo. E começo pelo prestígio, porque ele existiu em muita gente que era amiga de Israel e para quem a acusação, hoje vulgar, de ser anti-semitas é insultuosa. Essa parte da opinião pública protegia e apoiava Israel junto dos governos das democracias. Isso hoje acabou.

Do mesmo modo, o tratamento criminoso, volto à mesma palavra, dos palestinianos deu uma nova visibilidade à sua causa, criou uma grande solidariedade e deu alento à reivindicação dos dois estados e a uma maior condenação das acções dos colonos israelitas. Aqui também há um ponto sem retorno.

Dito tudo isto, é inadmissível a complacência que a União Europeia e o Governo português têm mostrado face a esta guerra. Lestos, e bem, em condenar e sancionar a Rússia pela invasão da Ucrânia, nem de perto nem de longe responderam às violências israelitas, nem às sistemáticas violações do direito internacional, nem sequer se mexeram muito para defender a ONU e António Guterres, ambos alvos de Israel, que ataca tudo à sua frente no terreno e na diplomacia, que não merece esse nome.

Há que compreender que esta hesitação miserável da Europa (Portugal incluído), que nem sequer tem grande papel como realpolitik, a não ser nalguns países por medo eleitoral, significa uma abjecção moral e uma cumplicidade inaceitável. Degrada-nos como país e como pessoas pela imoralidade.»


11.10.24

O Governo que não gosta de perguntas de jornalistas

 


«No ano passado, assisti à conferência de imprensa do orçamento que fez o antigo ministro das Finanças, Fernando Medina, e aquilo não acabava. Esta tarde, Joaquim Miranda Sarmento "despachou-se" num instante.

A decisão do Ministério das Finanças é muitíssimo grave e põe em causa o direito à informação. Não vale a pena estar com rodriguinhos. Põe em causa, ponto final.

Não estamos a falar de uma proposta que seja simples (e mesmo se fosse…). O ministro das Finanças apresentou um documento de alta complexidade e acha que pode ser explicado ao povo sumariamente. Pior: acha que não tem que explicar nada, ou muito pouco, através da mediação jornalística, porque eventualmente os jornalistas não são de "fiar". Já sabemos que quem não sabe coisas estará sempre mais feliz do que quem sabe. Esta parece ser a regra determinada por este Governo e a sua gravidade não tem sido suficientemente escalpelizada.»

Ana Sá Lopes
Newsletter do Público, 10.10.2024

Opiniões polémicas sobre um pano

 


«O pintor americano Maxfield Parrish, autor de vários nus artísticos, costumava receber jovens modelos no seu estúdio. Uma vez, para adiar o momento de se confrontar com a tela branca, propôs à rapariga que iria posar para ele nesse dia que tomassem um café antes da sessão de pintura. Mal tinham acabado de se sentar à mesa quando tocou a campainha. E Parrish, tomado por um súbito pânico, disse: “Depressa, dispa-se. Vem aí a minha mulher.”

Nesta altura, já o leitor estará exasperado. “Temos parábola”, há-de pensar, farto do estratagema. Não há dúvida de que se trata de um hábito muito irritante. Em vez de irmos logo ao assunto, andamos entretidos com uma história cuja relação com o tema é, na melhor das hipóteses, longínqua. Pior só aquela mania de imaginar o que o leitor está a pensar.

Creio que não poderia ter menos interesse no vestido que a fadista Ana Moura levou à gala dos Globos de Ouro. Mas tenho muito interesse no debate que se gerou sobre o vestido que a fadista Ana Moura levou à gala dos Globos de Ouro. O primeiro factor de interesse é a própria existência do debate. Bem sei que há quem dê muita importância ao significado daquilo que se traz vestido, mas não é o meu caso. Normalmente, a minha roupa significa sempre o mesmo, a saber: “Eis uma pessoa que achou que era melhor vestir-se antes de vir para a rua.”

Ora, a história do pintor é útil para explicar que, embora o Eclesiastes não o refira, há um tempo para vestir e um tempo para despir. Se vamos à igreja, talvez seja boa ideia irmos vestidos; se vamos à passadeira vermelha de uma chatíssima gala, podemos optar por aquilo que se costuma designar por “ousadia”. É para isso que servem as passadeiras vermelhas, o que acaba por constituir um paradoxo curioso: se aquele é o sítio próprio para ousar, surpreenderemos tanto mais quanto não ousarmos coisa nenhuma. É o que eu costumo fazer: como sou uma pessoa muito ousada, não ouso onde se espera que eu ouse.

Ana Moura decidiu ousar, o que é normal. Perante a ousadia, formaram-se instantaneamente dois grupos: de um lado, quem se escandalizava com o vestido de Ana Moura como se fosse o fim do mundo, por causa da indecente pouca-vergonha; do outro, quem se maravilhava com o vestido de Ana Moura como se fosse o início de um novo mundo, por causa da audácia de quebrar tabus, que é tão transformadora. Curiosamente, ambos os grupos concordavam num ponto: o mundo acaba por causa de um vestido. Uns acham que acaba definitivamente e outros acham que acaba para dar lugar a outro melhor. Mas que estamos perante um apocalipse motivado por uma opção estética, disso ninguém duvida.

Pessoalmente, julgo que o mundo tem resistido bastante bem durante os últimos milénios, e é improvável que acabe por causa de um pano. Até recomendaria que, para promover a paz entre ambos os grupos, fosse içada uma bandeira branca. O problema é que a bandeira branca também é um pano, pelo que antecipo nova polémica.»


Ricardo Araújo Pereira

10.10.24

Uma bela entrada

 


Porta e entrada da Casa Montero (conhecida como "Casa de Gaudi"), Bilbao, 1902.
Arquitectos: Jean Batiste Darroquy e Luis Aladrén Mendivil.

Daqui.

Um belo dia para recordar este texto

 


19.12.1915 – 10.10.1963: Édith Piaf

 


Uns dizem que morreu em 10 de Outubro de 1963, outros que foi no dia seguinte, poucas horas antes do seu grande amigo Jean Cocteau.

Piaf colou-se para sempre à pele da minha geração, como tantos outros cantores sobretudo franceses, quando este país era quase tão sombrio como os vestidos pretos que ela nunca largou. Mas acrescento uma nota pessoal: acabada de regressar de Portugal, onde tinha vivido a primeira parte da crise académica de 1962, eu vi-a e ouvi-a, em Lovaina, no mesmo dia (vim a sabê-lo algumas horas mais tarde) em que muitas centenas de estudantes foram presos na Cantina da Cidade Universitária de Lisboa. «L'hymne à l'amour» ficou para sempre associado, em mim, ao Dia do Estudante.








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Se em Gaza são homens

 


«Quando, a 27 de outubro, os soldados israelitas entraram em Gaza, levaram seus telemóveis. Como os atacantes do Hamas, nos massacres de 7 de outubro, deram muito material de horror ao mundo. Foi a partir daí que a Al Jazeera decidiu trabalhar, fazendo o que qualquer órgão de comunicação social poderia ter feito: contar os crimes de guerra filmados pelos próprios criminosos.

Este está a ser, como disse a romancista palestiniana Susan Abulhawa à Al Jazeera, o primeiro genocídio ao vivo. Está tudo no Instagram, no Facebook, Tiktok, no YouTube, filmado e muitas vezes assinado próprios autores, com detalhes do local e do dia. É um autêntico arquivo de crimes de guerra.

A sensação de impunidade resulta da banalização da barbárie, muito para lá do campo de batalha. No TikTok, jovens mulheres militares, com o especto ocidental que nos permite sentir empatia por elas, dançam e cantam, fardadas, nos quartéis, tornando o genocídio instagramável. O povo israelita vê e naturaliza a alegria da guerra e, numa discoteca à pinha, canta "que a aldeia pegue fogo!" Vídeos de influencers parodiam a falta de água e eletricidade em Gaza, que mata milhares de crianças em Gaza, e os ferimentos supostamente simulados dos palestinianos.

Apesar de ter contribuído fortemente, a insensibilidade coletiva, que acompanha todos os crimes mais monstruosos da história, não resulta apenas do trauma de 7 de outubro. Foi incutida por um governo de extremistas: “Não é verdade que os civis não estejam envolvidos, é uma nação inteira que é responsável”, disse o Presidente Isaac Herzog. Não são palavras. São atos quotidianos em Gaza, com uma punição coletiva em larguíssima escala, que dura há um ano.

CRIMES NAS REDES

O jornalismo e a justiça têm as provas que precisam, entregues pelos próprios criminosos, tal é o sentimento de impunidade que lhes foi incutido pelos superiores. A própria Al Jazeera, que investigou 2500 contas nas redes sociais, ficou espantada com a facilidade do trabalho, quando esperava gastar muito mais recursos e tempo. Mostrou-as a especialistas e cruzou com o trabalho de terreno das suas equipas, procurando testemunhas e as imagens de drones israelitas.

Nos vídeos e nas fotos, encontramos destruição arbitrária, sem qualquer fim militar, de infraestruturas e casas; maus tratos a detidos; e a utilização de escudos humanos, acusação que costumam fazer aos seus inimigos. Tudo violações do direito internacional, tudo crimes de guerra.

Podemos ver a destruição e a pilhagem do interior de casas de palestinianos, registadas com alegria, para publicar nas redes. Charlie Herbert, um ex-general britânico entrevistado pela Al Jazeera, fala de uma falta de disciplina institucionalizada, bem diferente de excessos pessoais. E a destruição de todas as infraestruturas, sem qualquer critério militar. Uma política de terraplanagem para tornar a reconstrução material, económica, cultural e emocional impossível. Basta ver as imagens de satélite de Gaza para perceber até que ponto esta ilegalidade foi levada. O inimigo não é o Hamas, é todo um povo, como avisou o Presidente.

O pináculo da destruição sem interesse militar, detonando edifícios vazios, aconteceu em Khirbet Khuza’a, uma cidade de 13000 habitantes perto do muro que separa Gaza de Israel. Foi toda, mesmo toda, dinamitada. Razão? É a cidade mais próxima de Nir Oz, o kibutz mais violentamente atacado a 7 de outubro. Vingança planeada pelos comandos, não uma loucura de jovens soldados perturbados pela guerra.

Também vemos a humilhação de detidos, exibidos e filmados nas suas roupas íntimas. Ou filmados vendados e de joelhos, urinam de medo. Ou em posições que os ridicularizam. Ou relatos de quem foi obrigado a deitar-se sobre cadáveres quase em decomposição. Detidos foram violados, espancados, arrastados pelo chão, exibindo com orgulho as marcas de umas costas torturadas... A estrela de David cravada nas costas de um deles talvez seja das imagens mais sinistras, por revelar, insultando o povo mais perseguido, a amnésia histórica de quem ali espetou a faca.

Depois, há os escudos humanos. De forma sistemática e organizada, soldados israelitas usam detidos como armadilhas para emboscadas ou para inspecionar edifícios, pondo-lhes câmaras e monitorizado-os através de drones, para evitar que sejam os soldados a correr riscos. Põem-nos à frente de tanques ou prendem-nos a veículos militares, para evitar ataques. Um detido, depois de ser espancado e torturado, foi usado como mensageiros para mandar evacuar um hospital. No fim, foi abatido à distância. Está tudo registado.

NINGUÉM OS IMPEDIRÁ

A Al-Jazhera complementa, para garantir que o contexto confirma as imagens, com testemunhos de familiares, no terreno. Um dos testemunhos conta o que ouviu de um militar israelita, enquanto o filho era torturado no quarto ao lado: “Nada nos impede de matá-lo. Poderíamos simplesmente matar-vos a todos. Ninguém nos impedirá e ninguém nos ligará para prestar contas.”

E há a utilização de snipers treinados para disparar sobre jornalistas, crianças, quem dá apoio médico. Ou os ataques a ajuda humanitária autorizada, porque a fome é, em Gaza, uma poderosa arma de guerra.

A parte menos impressionável deste programa é a que nos devia assustar mais. Exatamente pela sua limpeza tecnológica. Segundo a revista israelita “+972” (a IDF nega), Israel terá marcado milhares de habitantes como suspeitos, socorrendo-se de Inteligência Artificial, que tem um algoritmo que cruzou vários critérios para as selecionar. E, para que os ataques fossem mais rápidos do que um humano conseguiria, também a usou para a localização destas pessoas, escolhendo o momento em que estavam em casa (mais fácil) para o ataque – com os “danos colaterais” que se imagina. Este segundo programa chama-se "Onde está o papá?" Não é novidade a industrialização da morte, quando é preciso responder à necessidade de rápida produtividade, usando tecnologia avançada e organização metódica. É bastante admirada por quem tem pouca memória.

NO BANCO DOS RÉUS

Todos estes soldados têm comandantes que, se houver justiça, terão de ser punidos. No topo do comando está Benjamin Netanyahu, primeiro responsável pela morte de 40 mil pessoas em Gaza (nem dos reféns quis saber) e veremos por quantas mais no Líbano e na Síria. Como não partilho dos seus valores, não quero que façam com ele o que fez com Haniyeh ou Nasrallah. Desejo vê-lo no banco dos réus. Se isso não acontecer, assumamos o que diz Susan Abulhawa: “conceitos como diretos humanos e direto internacional são para pessoas brancas e ocidentais”.

Esta é a parte da lei. Mas os cúmplices políticos são os que podiam travar os crimes e não o fizeram. São os EUA, a Alemanha, a França ou o Reino Unido que, durante a carnificina, dão armas, informação e apoio militar e operacional ao criminoso, ao mesmo tempo que lançam sonsos apelos de cessar-fogo.

O título deste artigo é inspirado no livro de Primo Levi, “Se isto é um Homem”, que relata a sua terrível experiência em Auschwitz. Não procuro paralelos. Mas, se decidirmos isolar a experiência da desumanização do outro a um único momento da história, dificilmente aprenderemos alguma coisa com ela com ela.

“Poderíamos simplesmente matar-vos a todos, ninguém nos impedirá”, disse o soldado carregado de razão. Na reportagem, uma palestiniana grita, em desespero, para o cameraman: “Estás a filmar para quem? Ninguém se importa connosco!” Os palestinianos sabem isso. E ninguém pode dizer que não sabe. Está tudo espalhado nas redes.»


9.10.24

John Lennon – Seriam 84

 



09.10.1978 – O dia em que Jacques Brel morreu





Adormeceu num 9 de Outubro. Excepto que estava muito longe de ser velho como os velhos que tão bem cantou: «Les vieux ne meurent pas, ils s’endorment un jour et dorment trop longtemps».



Mais:






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Acabar com a RTP e ter jornalistas domesticados?

 



A crise dos média, os governos e os jornalistas

 


«Os governos acham sempre que sabem melhor do que ninguém como se faz bom jornalismo. Normalmente preferem-no vagaroso a ofegante, esperam que os jornalistas se mantenham tranquilos e com uma visão positiva da actividade governativa. Há uma fase em que, para a generalidade dos governos (talvez a excepção tenha sido o governo de Santana Lopes), esse vagar e essa tranquilidade são mesmo a marca de água de uma comunicação social que entende dar o benefício da dúvida a quem chegou recentemente ao poder. Chama-se estado de graça.

Como é por demais evidente, este governo goza desse estado de graça e não vive com uma comunicação social particularmente agressiva. O exercício do poder desgasta a relação com os jornalistas e há uma grande diferença entre meio ano e oito anos e meio no governo. Importa pouco que quem deixa o poder mude de líder, o estado de graça não se aplica à oposição.

Feito este preâmbulo, importa dizer igualmente que a comunicação social, que faz uma análise crítica do exercício do poder, também pode ser criticada. Este texto não é a defesa corporativa da profissão que exerço. Acompanho o primeiro-ministro na crítica que faz ao surfar permanente na crista da onda de um jornalismo que muitas vezes é incapaz de ver para lá da polémica, que alimenta à exaustão. É claro que Luís Montenegro não deve fazer a mínima ideia do que é um direto de televisão, nem qual é a função de um auricular e de um bloco de notas digital incorporado num smartphone, mas isso são outros quinhentos.

O que verdadeiramente me incomodou como jornalista, numa conferência organizada pela Plataforma de Media Privados em que o governo foi anunciar o plano que tem para o sector, foi ver o primeiro-ministro aproveitar o palco que lhe foi oferecido para, na prática, dizer aos jornalistas: vocês não são qualificados, eu ajudo, mas vejam lá se amansam. Montenegro é, talvez, o primeiro-ministro que mais recusa responder às perguntas dos jornalistas e o que tem para nos dizer é que essas perguntas (essência da profissão) são muitas vezes sopradas aos ouvidos desses mesmos jornalistas. Por quem!? Se é por outros membros da redação significa que as redações funcionam e isso é bom, se é por alguém fora das redacções então a acusação é grave e convém que o chefe do governo concretize.

Acompanho o elogio generalizado à vontade do Governo assumir a responsabilidade de fazer a sua parte para garantir uma comunicação social livre, mas fico sempre com a pulga atrás da orelha quando vejo alguém destratar quem diz querer ajudar. O negócio da comunicação social não aguarda pela resolução do problema da quadratura do círculo, ele é inviável a longo prazo se não assentar na independência do jornalismo face ao poder instituído. É, por isso, que também me parece saudável que se separe o serviço público de comunicação social do negócio da comunicação social.»


8.10.24

Craveirinha

 


Fechamo-nos no casulo da Europa?

 




Talvez Durão Barroso tenha algum primo sueco ou maltês que queira apanhar frutos vermelhos em Odemira ou pêra rocha no Bombarral – digo eu.

Não há almoços grátis

 


«O Governo quer acabar com a publicidade na RTP, de forma gradual, até 2027. A informação foi confirmada esta terça-feira, 8, pelo primeiro-ministro.»

Ler o texto AQUI.

Para o mundo, nem todos os refugiados são iguais

 


«Todos os dias a guerra, as perseguições, a violência, a fome e outras violações dos direitos humanos entram pelas nossas casas adentro através dos média. E embora a nossa atenção seja monopolizada pelas guerras na Ucrânia e no Médio Oriente, a verdade é que as aflições do mundo continuam igualmente em países e regiões como o Sahel, o Corno de África, os Grandes Lagos em África, a Síria, o Haiti ou o Afeganistão, que já conheciam guerras e conflitos antes de Moscovo atacar Kiev e provavelmente continuarão depois de se encontrar uma solução aceitável para a Ucrânia, seja quando for.

Estes e outros conflitos forçaram, em junho de 2024 e segundo os serviços da UE de Proteção Civil e Apoio Humanitário, mais de 120 milhões de pessoas a abandonarem as suas casas no mundo inteiro, sendo que cerca de 40 milhões procuraram refúgio em outros países e 60 milhões mantêm-se dentro das suas fronteiras nacionais. E a diferença do destino não é irrelevante.

De facto, as pessoas que fugiram dos seus países têm um conjunto de direitos protegidos pela Convenção das Nações Unidas sobre Refugiados de 1951 que estabelece obrigações para os Estados de acolhimento, incluindo segurança física e acesso a cuidados de saúde, educação e trabalho para as pessoas que foram forçadas a fugir. Já as pessoas que foram obrigadas a abandonar as suas casas pelas mesmas razões mas que não atravessaram as fronteiras do seu país, qualificam-se como “Pessoas Deslocadas Internamente” (IDP em inglês) e, segundo o direito internacional, contam apenas com os mecanismos de proteção dos seus próprios Estados. Sim… os mesmos países que, na melhor das hipóteses, foram incapazes de garantir a as condições necessárias para estas pessoas se manterem em casa e, na pior das hipóteses, foram a causa da sua fuga.

Nem sempre foi assim. Durante a guerra do Kosovo, impressionado com o que viu quando visitou os campos de refugiados nos Balcãs e pela incapacidade de atuação da Comunidade Internacional, Tony Blair proferiu um discurso em Chicago onde apresentou 5 testes que justificariam a violação da soberania de Estados por razões humanitárias. De então para cá os países e as organizações internacionais regressaram a uma definição de soberania tradicional enquanto que as crises e guerras não param e as pessoas continuaram a pagar um preço altíssimo pelos falhanços dos seus Estados e da capacidade das Organizações Internacionais em evitar ou resolver as causas e consequências dos conflitos.

Não sendo recomendável regressar ao Direito de Ingerência Humanitária, a Comunidade Internacional deveria, pelo menos, reconhecer que uma pessoa que tem que fugir para não morrer merece proteção internacional, mesmo que se torne refugiado na sua própria terra.»


7.10.24

Um vaso bem diferente

 


Vaso de estilo egípcio, Museu da Escola de Nancy, cerca de 1900.
Émile Gallé.

Daqui.

07.10.1950 – Invasão do Tibete pela China

 


Um ano depois da criação da República Popular da China, o Tibete foi invadido pelas tropas de Mao Tsé-Tung que assumiu o controlo da região.

A história do que se seguiu é conhecida: em 1959, o Dalai Lama fugiu para a Índia e instalou em Dharamsala o Governo do Tibete no Exílio.

Há refugiados tibetanos espalhados por todo o mundo, com especial relevo para os países mais próximos (Índia, Nepal, Butão) onde comunidades, em geral muito pobres, preservam uma forte identidade cultural e vivem frequentemente de artesanato mais do que rudimentar.

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Vencedores e vencidos do acordo do Orçamento

 


«Há mais vida para lá do Orçamento. Luís Montenegro fez questão de repetir esta semana a célebre frase de Jorge Sampaio – que, depois, foi “reinterpretada” e repetida ad infinitum numa fórmula que Jorge Sampaio nunca disse, o “há mais vida para além do défice”.

Havendo mais vida para lá do Orçamento, este acordo a que Governo e PS chegaram pode ter repercussões no futuro. Escrevo como se o acordo já estivesse fechado por uma razão: neste momento, Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos estão condenados a entenderem-se dê por onde der. Já ninguém aceitava que, depois de aqui chegados, houvesse uma reviravolta. Seria tão, mas tão prejudicial para os dois protagonistas que nenhum deles arriscará um corte. É um processo que já não pode voltar atrás, dê por onde der. Aliás, seria patético para os dois lados.

Dito isto, Luís Montenegro é o vencedor do processo. Fica com um orçamento melhor do que o seu original e estas novas medidas vão permitir-lhe captar com mais eficácia o eleitorado centrista (o que também vota PS às vezes) em caso de crise política a prazo.

Pior: quem assistiu a todo o discurso contra o PS e as múltiplas tentativas de o amarrar ao Governo pelo simples facto de não ter viabilizado as moções de censura, sabe o que vem a seguir. O PS sai vencido: acaba a assinar quase um acordo de bloco central, coisa que nunca entraria nos pesadelos mais aterradores do secretário-geral do PS, tendo em conta aquilo que tem sido o seu pensamento sobre a relação PS/PSD.

Aliás, a condição relativa ao IRC avançada pelo PS, de que os três próximos orçamentos ficariam subordinados, torna-se estranha: ou o PS já está a disponibilizar-se para aprovar os próximos três, o que é uma bizarria, ou está a dizer que então já não contem – nos próximos – com os socialistas? Ainda não se percebeu.

O Governo ganha muito até porque, como o Governo Cavaco de 1985 ensina, é preciso algum tempo para se vitimizar e descolar. Cavaco demorou a cair e não foi por sua vontade expressa.

Pedro Nuno Santos perde muito ao entregar ao Chega o “cargo” de maior partido da oposição e ficar comprometido com a governação. Mas, não deixando de ser derrotado de um processo em que Montenegro conseguiu sair vitorioso, tem alguns ganhos de causa.

Em primeiro lugar, evita umas eleições que dificilmente seriam favoráveis para o PS e, dependendo da capacidade de vitimização do Governo, até poderiam ser bastante prejudiciais. Une o partido: os apoiantes de José Luís Carneiro, sempre defensores de um acordo, não têm agora espaço para o vir criticar ou organizarem-se imediatamente como alternativa.

Há um terceiro possível “ganho de causa” no processo: depois de fazer esta espécie de “bloco central”, haverá alguém que ainda o ataque como sendo um “bloquista”, “radical”, “extremista”? Se a lógica não fosse uma batata, esses rótulos tenderiam a desaparecer da imagem do secretário-geral do PS.

Um “extremista” faz um acordo com o Governo com esta dimensão? Mas já li e ouvi várias pessoas a insistirem no “Partido Socialista mais radical de sempre”, já depois de Pedro Nuno Santos estar praticamente comprometido com este orçamento.

A política constrói ódios irracionais: quase toda a esquerda odeia Cavaco Silva e Pedro Passos Coelho, façam eles o que fizerem. Nem José Sócrates (que foi amado pela direita num primeiro momento) nem António Costa (cuja “habilidade política” sempre foi elogiada mesmo à direita, passado o primeiro choque da "geringonça") suscitaram tanto ódio como o “marxista” que se tornou secretário-geral. Os ódios irracionais na política são razoavelmente cómicos, porque marcam aquele momento em que a paixão futebolística ganha vantagem sobre as políticas concretas. Política, futebol e amor – três campos com mais em comum, no que toca ao poder e à irracionalidade, do que gostaríamos de acreditar.»


6.10.24

Cafés

 


Interior do Café Majestic, Porto, 1922.
Arquitecto: José Pinto de Oliveira.


Daqui.

Moedas, ainda

 


«Carlos Moedas faz lembrar aquele menino que, na escola, faz pela calada traquinices e, quando descoberto, choraminga, apontando para o lado: “Não fui eu, 'sotora', foi aquele menino.”

Perante qualquer situação que corra mal, é incapaz de assumir quaisquer responsabilidades. Há dificuldades financeiras na Câmara de Lisboa? A culpa é dos malvados da oposição (que lhe viabilizaram três orçamentos). Há insegurança? A culpa é deste Governo e dos anteriores, da PSP e da “antiga polícia municipal”. Há problemas com o lixo? A culpa é das Juntas, dos trabalhadores, da Reforma Administrativa, de António Costa – e já só falta responsabilizar Sampaio ou Abecassis. Há indignação com os painéis publicitários? A culpa é de Medina (apesar de o contrato ter sido assinado pelo seu vereador Diogo Moura). Tem sido sempre assim.»


Seis anos sem Montserrat Caballé

 


Vi esta maravilha em Lisboa, em 1972:



Carlos Moedas: governar para os de fora cá dentro

 


«Carlos Moedas assumiu como compromisso eleitoral para Lisboa criar uma fábrica de unicórnios — empresas com um valor superior a mil milhões de dólares —, destacando-o como o maior investimento em inovação alguma vez realizado no país, num total de oito milhões de euros repartidos entre a autarquia e parceiros privados.

Era fácil antever que o seu projeto político para a cidade consistia no aprofundamento do caminho traçado pelo seu antecessor no município: governar em função de tudo o que é exterior – rankings, investidores, turistas, nómadas digitais – descurando os problemas que realmente afetam as vidas dos cidadãos lisboetas. Como o próprio afirmou, na sequência das Jornadas Mundiais da Juventude, que custaram mais de trinta milhões de euros à autarquia, “ser o centro do mundo tem um valor”.

É precisamente sobre esse valor que devemos refletir. Qual a fatura a pagar por décadas de desgoverno que privilegiaram os processos de especulação e financeirização urbana?

A principal fatura é a incapacidade de acesso de largas franjas de população ao mercado de habitação. Este é simplesmente inexistente para quem aufere dos salários mais baixos da União Europeia e vive na capital europeia onde os preços do imobiliário mais subiram na última década. Lisboa perdeu moradores (cerca de 545 mil habitantes entre 2011 e 2021, de acordo com os últimos censos) e na sua área metropolitana proliferam as situações de indignidade habitacional, que afetam já mais de 50 mil famílias. Os diversos instrumentos políticos que visaram a atracção de investimento estrangeiro, como a autorização de residência para atividade e investimento (Vistos Gold) ou o estatuto de residente não habitual (RNH), em conjunto com a permissividade fiscal e desregulação das atividades de alojamento local — que possibilitaram rentabilidades imobiliárias especulativas — traduziram-se na inflação do mercado imobiliário e numa crise habitacional cujas consequências se disseminaram a nível nacional.

O atual Governo, com o qual o autarca lisboeta partilha convicções políticas, pretende, em contracorrente com as medidas tomadas noutras cidades, recuperar algumas destas figuras e revogar as restrições e condições de expiração de licenças para alojamento local. As declarações de Carlos Moedas, numa entrevista à rádio Renascença, a propósito dos efeitos da proibição do alojamento local em Nova Iorque são paradigmáticas. Passo a citar: “Em Nova Iorque acabaram com o alojamento local. O que é que aconteceu? Os preços dos hotéis dispararam. E porque é que dispararam? Porque hoje, por exemplo, em Lisboa, 30% dos que nos visitam ficam em alojamento local. Se nós disséssemos ‘acabou’ para onde é que essas pessoas iriam?”.

O presidente da câmara de Lisboa parece estar mais preocupado em arranjar um teto acessível para quem visita a cidade do que para quem vive em Lisboa. É bom lembrá-lo que o seu mandato se destina a servir os eleitores desta cidade, não os clientes da Ryanair. Tão grave como esta declaração foi o recurso a um flagelo social, as pessoas em situação de sem abrigo — grande parte delas, imigrantes que trabalham e vivem em condições degradantes — como arma de arremesso político.

Acusar a extrema-esquerda (se é que existe) é uma forma populista de escamotear um problema gerado por opções de política económica, que visaram a mercantilização da cidade e a precarização das condições de vida de todas e de todos. Opções de política que contrariam as disposições do artigo 65.º da Constituição portuguesa, que atribui ao Estado a obrigação de estabelecer um sistema de renda tendencialmente compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.

O valor social e económico a pagar por décadas de governo urbano assentes em políticas nefastas para o cidadão comum é elevado, com tendência para aumentar, à medida que a recusa em regular o mercado imobiliário e em aumentar salários se traduz em encargos de apoio social acrescidos para os contribuintes. Perante o cenário de dissolução que se sente a todos os níveis na cidade, seja na dificuldade em pagar a casa, seja na higiene urbana, seja no nível de ruído ou no caos que é a mobilidade urbana, exigia-se, no mínimo, bom senso nas declarações proferidas por responsáveis de cargos políticos. A falta dele implica também consequências nas ruas e nas urnas, mesmo para quem pensa governar desde o centro do mundo.»


O pequeno Napoleão