«O pintor americano Maxfield Parrish, autor de vários nus artísticos, costumava receber jovens modelos no seu estúdio. Uma vez, para adiar o momento de se confrontar com a tela branca, propôs à rapariga que iria posar para ele nesse dia que tomassem um café antes da sessão de pintura. Mal tinham acabado de se sentar à mesa quando tocou a campainha. E Parrish, tomado por um súbito pânico, disse: “Depressa, dispa-se. Vem aí a minha mulher.”
Nesta altura, já o leitor estará exasperado. “Temos parábola”, há-de pensar, farto do estratagema. Não há dúvida de que se trata de um hábito muito irritante. Em vez de irmos logo ao assunto, andamos entretidos com uma história cuja relação com o tema é, na melhor das hipóteses, longínqua. Pior só aquela mania de imaginar o que o leitor está a pensar.
Creio que não poderia ter menos interesse no vestido que a fadista Ana Moura levou à gala dos Globos de Ouro. Mas tenho muito interesse no debate que se gerou sobre o vestido que a fadista Ana Moura levou à gala dos Globos de Ouro. O primeiro factor de interesse é a própria existência do debate. Bem sei que há quem dê muita importância ao significado daquilo que se traz vestido, mas não é o meu caso. Normalmente, a minha roupa significa sempre o mesmo, a saber: “Eis uma pessoa que achou que era melhor vestir-se antes de vir para a rua.”
Ora, a história do pintor é útil para explicar que, embora o Eclesiastes não o refira, há um tempo para vestir e um tempo para despir. Se vamos à igreja, talvez seja boa ideia irmos vestidos; se vamos à passadeira vermelha de uma chatíssima gala, podemos optar por aquilo que se costuma designar por “ousadia”. É para isso que servem as passadeiras vermelhas, o que acaba por constituir um paradoxo curioso: se aquele é o sítio próprio para ousar, surpreenderemos tanto mais quanto não ousarmos coisa nenhuma. É o que eu costumo fazer: como sou uma pessoa muito ousada, não ouso onde se espera que eu ouse.
Ana Moura decidiu ousar, o que é normal. Perante a ousadia, formaram-se instantaneamente dois grupos: de um lado, quem se escandalizava com o vestido de Ana Moura como se fosse o fim do mundo, por causa da indecente pouca-vergonha; do outro, quem se maravilhava com o vestido de Ana Moura como se fosse o início de um novo mundo, por causa da audácia de quebrar tabus, que é tão transformadora. Curiosamente, ambos os grupos concordavam num ponto: o mundo acaba por causa de um vestido. Uns acham que acaba definitivamente e outros acham que acaba para dar lugar a outro melhor. Mas que estamos perante um apocalipse motivado por uma opção estética, disso ninguém duvida.
Pessoalmente, julgo que o mundo tem resistido bastante bem durante os últimos milénios, e é improvável que acabe por causa de um pano. Até recomendaria que, para promover a paz entre ambos os grupos, fosse içada uma bandeira branca. O problema é que a bandeira branca também é um pano, pelo que antecipo nova polémica.»
Ricardo Araújo Pereira
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