O Expresso faz hoje 40 anos, o que me parece quase uma impossibilidade (não nasceu ontem?...), como talvez a muitos dos que o leram desde o primeiro número. Com uma adenda pessoal: porque lá estiveram desde a primeira hora vários amigos, e porque eu trabalhava então a quatro ou cinco prédios de distância da sede do jornal, vivi um pouco da sua pré-história, a excitação das vésperas, o impacto das primeiras reacções, espantei-me com os primeiros cortes da censura.
O número de hoje tem manancial inesgotável e pouco mais fiz do que folheá-lo. Mas a prioridade das prioridades vai para a crónica do meu queridíssimo amigo Nuno Brederode Santos, que me faz retomar uma velha tradição deste blogue (publicá-lo sempre ao fim-de-semana), apenas interrompida porque uma mais do que legítima preguiça o levou a parar a colaboração semanal no DN.
Hoje, NBS recorda os seus tempos de cronista do Expresso e a sua crónica preferida: : «Balada do Ornitorrinco». Quem é o ornitorrinco? Cavaco Silva, claro, e ele explica porquê. Hilariante!
ONTEM
Se vamos celebrar os quarenta anos de vida do Expresso, cumpre então recordar todos os contributos, por mais pequenos que eles tenham sido. No meu caso, e além de pequenas colaborações em 1974, foram sobretudo dezassete anos de crónicas, primeiro semanais e mais tarde quinzenais, em alternância com o António Pinto Leite.
Dezassete anos dão para falar de tudo, mas reconheço que o tema mais recorrente foi o PSD. Muito particularmente o PSD de Cavaco Silva, já que este tomou a seu cargo dez anos e deu ao partido uma nova natureza.
Deixando de lado o autoritarismo, que é molho para qualquer salada, os governos de Cavaco tiveram por timbre o populismo e a tecnocracia, uma alquimia delicada e incongruente. Porque, em estado puro, são formas divergentes de negação da democracia representativa. O chefe providencial que cavalga uma multidão de descamisados propõe-se salvar a pátria por mera ação do seu carisma. Diferentes são os regimes ‘iluminados’, cujo mito motor é o progresso e cuja credibilidade assenta, mais do que na relação pessoal com o chefe, na crença de ser ele o epicentro da aristocracia conhecedora da ‘ciência e técnica’ da governação.
Assim, o populismo ataca os políticos, acusando-os ora de corrupção ora de inutilidade; a tecnocracia acusa-os de incompetência. Cavaco tinha o instinto tribal do populismo e a experiência vivida da tecnocracia.
Sobre o primeiro escrevi em 1988 a minha crónica preferida: a “Balada do Ornitorrinco”. Tão preferida que logo mandei vir de Londres um bibelot, um ornitorrinco de bico dourado e em louça chinesa, que ciosamente guardo no meu quarto. O texto é uma romagem à Criação e recorda que o ornitorrinco é anfíbio, tem um bico de pato achatado e uma cloaca. Tem a morfologia de um texugo ainda mais acachapado e o corpo coberto de pelos. A estrutura óssea tem elementos próprios dos répteis que nele se encaixam num sistema de mamífero. Mamífero que nele se revela também porque as fêmeas amamentam as crias.
“A longa querela dos zoólogos para o classificarem não terá contribuído também para lhe insuflar o pundonor. Afinal, decidiram que ele era um mamífero, mas sob um rótulo que não é propriamente uma comenda: ‘monotrémato’. E o nome que reservaram para a espécie evoca-lhe a ave que ele talvez tenha querido ser mas não foi: ‘ornitorrinco’. Discutem se a espécie está extinta ou em vias de extinção. Procuram-no em cada moita ribeirinha dessa Austrália dos paradoxos naturais. Ele espreita as expedições científicas e oculta-se, resvalando no lodo até à água. Não quer ser visto nem estudado, nem compreendido. (...) Sabe que ao falhar a ave, o réptil e quase o mamífero, se tornou, de um bicho, numa questão filosófica. E ele não é filósofo”. Teve, contudo, o seu breve momento de glória. Ansiosa por autonomia, a Natureza pediu um chefe ao Criador e este fez avançar o ornitorrinco. Receberam-no com um triunfo irrepetível. “Só teve de dizer cem vezes: ‘Eu compreendo os bichos da terra, do mar e do ar. A Natureza não pode parar’ — e, no seu êxtase unânime e feérico os animais inventaram o carisma, milénios antes de Max Weber o teorizar.
Foi escolhido por uma mágica maioria. Mas não reinou muito o ornitorrinco. Começaram a corroer-lhe o poder o ceticismo, depois o espanto, enfim a indignação. Falava pouco e rouco, quando dele se esperava a melodia de um chilreio ou a eloquência de um rugido. Não tinha a macrovisão do alto voo, antes se arrastava como se algemado por varizes. Não se reconheceram os peixes do grande oceano em quem não ia além de lentas gincanas de poça de água. Os mamíferos nunca lhe perdoaram o primeiro ovo. (...) Tratou a glória por tu. Triunfou mais do que Pompeu. Interpôs-se entre Deus e a Natureza. Hoje é o último. Resiste ao tempo. E está uma ruína, um destroço, um cavaco”. Sobre a tecnocracia — ainda hoje os governos do PSD refletem essa herança — Cavaco Silva acreditava numa ‘ciência’ da governação e numa casta de iniciados capazes de governar no “interesse geral”.
Não há aqui drama de maior. Grandes espíritos estiveram zangados com a democracia. Platão, por exemplo, teorizou o governo dos sábios na Cidade. Tão lisonjeiro surpreenderia o então primeiro-ministro, “mas não é caso para arraial: fazendo a devida justiça aos dois, nem Platão previu Cavaco, nem Cavaco leu Platão” (1988).
Falo, portanto, não de negações do sistema democrático, mas de desvios à lógica do regime. O que Cavaco pretendia era naturalmente ‘caçar’ votos, e não acabar com eles.
Passado algum tempo sobre Cavaco em São Bento, encontrei uma página do Expresso com a minha fotografia. Emoldurei-a e pendurei-a na parede da sala. Não por narcisismo, mas porque fica bem visível a legenda: “Cavaco faz-me falta”.
.