Um texto de Helena Pato, incluído no seu livro «Já uma estrela se levanta».
Seguíamos num Volkswagen – eu acompanhava-os, até ver. O Alfredo Noales, com quem já casara, tinha recebido do chefe de redacção do República a incumbência de fazer a reportagem. Para a censura cortar inevitavelmente de alto a baixo, é claro. Ao seu lado, um amigo, um camarada nosso, que estava connosco por ser um dos organizadores. No banco de trás seguia eu, impaciente e receosa.
Nas vésperas tinham sido lançados panfletos por toda a cidade, chamando o povo a comemorar o 1.º de Maio, a manifestar-se. Se a ditadura proibia toda e qualquer manifestação, o «1.º de Maio» era assunto subversivo cuja referência pública, escrita ou em voz alta, só por si, podia valer prisão. Nos últimos meses, reuniões e mais reuniões na nossa casa, em Campo de Ourique – tudo muito discutido, muito preparado à porta fechada, mas nada passara por mim. Apenas sabia que algumas dezenas de brigadas clandestinas, furtivamente e durante noites e noites, iriam cobrir de propaganda a cidade de Lisboa e os arredores. Papéis, aos milhares, por todos os sítios: apelos à manifestação contra o regime e abundante informação acerca das greves que nos últimos meses despontavam, umas a seguir às outras, nas empresas dos arredores de Lisboa.
Chegámos à Praça do Comércio uns dez minutos antes das 6 da tarde. 1º de Maio de 1962. Uma data histórica – que persiste em sobrar-me, em ficar-me para trás, sempre que quero escrever sobre a resistência ou sobre a repressão fascista. Talvez por ter sido a única vez que, em idênticas circunstâncias, passei mesmo ao lado da morte. Depois, foram décadas a gritar: «A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos!» Não se tratava de um grito demagógico, eles eram realmente assassinos.
O nosso carro ia devagar. As ruas estavam praticamente desertas e, ao olharmos para as lojas e para os cafés, a calma e a óbvia normalidade assustaram-nos. Estaríamos à beira de um fracasso? Seria aquele o resultado de tanto trabalho de organização de tantos meses a fio?
«Tem calma, Lena, ainda não são 6 horas!» Tanta reunião, tanta agitação, e um ambiente que parecia explosivo no crescendo das greves, iria dar assim em nada? Seria que o povo não tinha coragem de assumir nas ruas o descontentamento que vinha manifestando à boca calada e que já revelara de forma tão convicta, tão expressiva, nas eleições do Delgado? Afinal onde estava esse povo? «Tem calma, Lena, ele vai aparecer!» O Povo amedrontara-se? Não se atrevia a enfrentar as forças policiais que os estudantes haviam defrontado por mais do que uma vez durante esse mesmo ano? 1500 jovens presos num só dia, em Março, na Cidade Universitária, e agora ninguém se mexia?
«Esta manifestação é política, amiga, não é associativa… hoje é mais complicado arriscar!», lembrava o camarada ciente de uma experiência de luta que eu admirava.
De uma coisa eu tinha a certeza: a tarde estava mais quieta do que o habitual à mesma hora. A Baixa parecia adormecida. Dava-me a impressão de que a acção prevista teria sido prematura ou as expectativas demasiado grandes, que o medo trancara os lisboetas em casa e que os empregados e os lojistas – comércio, moda, capelistas, pastelarias, cafés – estariam a abandonar os estabelecimentos, aos poucos, para fugirem da confusão. Mas por onde parariam os bancários, que tinham prometido uma boa adesão? Continuávamos ansiosos, a rodar, rua abaixo, rua acima, repetitivamente, devagarinho, varrendo metodicamente um espaço cruzado por artérias quase vazias.
Emudecêramos. Somente meia dúzia de estudantes nossos conhecidos passou por nós. Que era feito do pessoal da outra banda? Então os operários da Siderurgia? E os da Lisnave? «Espera e verás, camarada… Hão-de vir, virão em peso… Sabemos que vão estar em força.» Qual quê! Algum comércio ia-se fechando ao nosso lado, e eu desanimada. Havia quem, à porta das lojas, se metesse para dentro e quem saísse para os passeios – caminhavam imperturbáveis, eles de chapéu na cabeça, elas de malinha no braço. «São donos das lojas e caixeiros, já se sabia, Lena… Pouco se contava com eles…»
Começámos por ver a guarda nacional republicana a cavalo, em grupos – três agora, quatro depois –, a avançar pela Rua Augusta, vinda do Terreiro do Paço. Postura sobranceira, a exibir a força.
Quando se cruzou connosco, o Alfredo apressou-se a colocar no vidro do automóvel, em posição de boa visibilidade, uma pequena cartolina branca com os dizeres IMPRENSA – JORNAL DIÁRIO, desenhados na véspera, omitindo tratar-se do
República para não chamar a atenção. Não queria dar-lhes qualquer pretexto para detenção, pois referir o jornal
República era falar de oposição ao regime.
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