25.5.24

Vasos: há sempre mais um

 


Vaso Art Déco «Romeo» da Coleção Luxval, década de 1930.
Charles Graffart e Renne Delvenne para Val Saint Lambert.


. Daqui.

José Mário Branco

 


Seriam 82 hoje.

Liberdade de expressão?

 


«Tem causado estranheza que o presidente da AR imponha regras formais ao debate parlamentar mas rejeite interferir no conteúdo das declarações políticas. Os deputados não podem tratar-se por tu mas podem fazer considerações depreciativas sobre um povo inteiro?, perguntam algumas pessoas. Há realmente regras difíceis de compreender. Por exemplo, nos combates de boxe, o árbitro não permite que os pugilistas se apresentem no ringue todos nus, mas depois admite que se agridam durante 12 assaltos. Então impede-se a nudez, que não tem mal nenhum, e depois tolera-se a mais desbragada violência? Ele há coisas...»

Ricardo Araújo Pereira


Os Parlamentos também se abatem

 


«A democracia representativa é frágil na sua essência. Esta é a sempre ameaçada relação de confiança entre a multidão de representados e o pequeno grupo de representantes.

Idealmente, os escolhidos pelo voto dos seus concidadãos deveriam receber essa confiança com um sentido de gratidão e uma determinação de servir, como um verdadeiro escol, os concidadãos que os honraram pela elevação acima de todos os outros.

Na génese dos modernos Parlamentos existem páginas épicas de exaltação da nobreza da representação política. Por exemplo, nos textos de Alexander Hamilton e James Madison, principais autores da Constituição Federal dos EUA, a procura do reconhecimento e fama pública era designada como a única paixão legítima para os políticos eleitos. Até em 1957, foi possível, ao então senador John F. Kennedy, ganhar um Prémio Pulitzer pela publicação do seu livro, Rostos de Coragem (Profiles in Courage), onde se enaltece a comprovada abdicação do interesse próprio, em favor do interesse geral e do bem público, por parte de oito grandes parlamentares da história norte-americana.

Nestes dias de Biden e Trump, na época em que, de acordo com palavras do filósofo John Rawls, o Congresso dos EUA se transformou num mercado onde as leis são compradas e vendidas, ninguém poderia repetir a façanha de JFK por absoluta falta de matéria-prima.

Portugal não é, evidentemente exceção. Os brilhantes e inspiradores discursos de Manuel Fernandes Tomás, nos debates das Cortes Constituintes (1821-22), não se parecem, em nada, com a oratória bafienta de tantos eleitos nos Parlamentos da monarquia regida pela Carta Constitucional, que Ramalho Ortigão arrasaria amiúde nas Farpas. O mesmo se poderá dizer sobre a aurora e o crepúsculo da I República.

Na UE, a degradação dos Parlamentos democráticos, alimentada pela complacência dos partidos tradicionais do centro-esquerda perante o crescimento da desigualdade, acelerou com a pandemia e a guerra. Aditivada, ainda, pela incompetência da CE de Ursula von der Leyen.

É confrangedor verificar como o Presidente da AR, Aguiar Branco, se deixou encurralar, transformando num direito a pulsão dos deputados da extrema-direita para debitarem aleivosias. No mesmo dia em que o povo turco foi enxovalhado na AR, a deputada Isabel Moreira denunciou o desastroso currículo em matéria de Direitos Humanos da terceira maior bancada do hemiciclo. Durante os minutos em que usou da palavra, Isabel Moreira teve de aumentar o tom de voz para vencer o seu insultuoso coro. Infelizmente, Aguiar Branco limitou-se a uns escassos e quase inaudíveis apelos ao civismo: “Senhores deputados, senhores deputados…”

Se o nosso Parlamento tivesse, hoje, metade da qualidade dos deputados constituintes de 1976, o que estaria agora no centro do debate público seria a ausência de intervenção vigorosa do presidente da AR na defesa do direito à palavra de uma corajosa deputada, com um excecional contributo para o reconhecimento de direitos e liberdades de minorias (homossexuais, trans, étnicas, entre outras), cuja integridade física e moral é posta em causa pela ascensão desta tribo partidária, com um apetite necrófago pela democracia. O aumento de 38% dos crimes de ódio em Portugal, entre 2022 e 2023, apenas o comprova.

Por isso, não é só a AR que tem um problema. É o próprio regime democrático que está ameaçado pelos seus predadores dentro de portas. A demora em reconhecê-lo apenas confirma a gravidade da sua doença.»



24.5.24

Portas é comigo

 


Porta do Hotel Paris, Praga, 1904.
Arquitecto: Jan Wejyrich.


Daqui.

Contra os imigrantes?

 




A idolatria já mexe

 


Já me chegam sons do Estádio do Benfica (nem quero pensar nas próximas noites) e vejo ruas que uso normalmente para sair daqui e que já estão vedadas. Não há-de ser nada, já estudei percursos alternativos com mais alguns quilómetros e o importante é que a Taylor vá ganhar 12 milhões e que lá estejam muitos dos jovens mais educados de sempre que ainda não puderam sair daqui para fora ou que vão pagar muito menos IRS, sobretudo se ganharem mais de 5.800 euros/mês. Siga o baile.

Ventura ultrapassa Le Pen pela extrema-direita

 


«Na tarde desta quinta-feira, a Alternativa para a Alemanha (AfD) foi expulsa do grupo político Identidade e Democracia, a que também o Chega pertence no Parlamento Europeu.

As declarações do cabeça de lista da AfD, Maximilian Krah, em entrevista ao La Reppublica, segundo as quais era "errado" classificar todos os membros das SS (a organização paramilitar nazi) como "criminosos", levaram Marine Le Pen a cortar relações com o até agora "partido-irmão" da Alemanha. Até Le Pen percebe que a desculpabilização do nazismo é capaz de ser demasiado para a extrema-direita.

O anúncio da expulsão da AfD foi feito pela Liga italiana, já depois de o cabeça de lista do ex-partido irmão ter renunciado à direcção do partido e decidido abster-se de participar na campanha eleitoral.

André Ventura, embora se demarque do discurso de Maximilian Krah (também era melhor), acha, contudo, que se trata "de uma opinião" e diferenças de opinião é o que há mais nos partidos que pertencem aos mesmos grupos políticos no Parlamento Europeu.

Quando se vê Marine Le Pen a ter uma posição que é um poço de lucidez comparada com a de André Ventura, é porque estamos a descer muito mais baixo do que julgávamos ser possível.

Vamos lá a ver: não é uma novidade que a AfD é um partido com neonazis nas suas fileiras. Ainda em Janeiro foi divulgado pelo grupo de jornalismo de investigação Correctiv o "encontro de Potsdam", uma reunião secreta realizada em Novembro, em que elementos da AfD se reuniram com um grupo de neonazis para discutir a "remigração" de imigrantes e cidadãos alemães "não integrados". A AfD, perante o escândalo que atravessou a Alemanha, despediu um assessor.

Le Pen descobriu agora que a AfD é neonazi – ou tem neonazis nas suas fileiras, como a escolha do cabeça de lista ao Parlamento Europeu comprova – e conviveu alegremente com o partido alemão na família europeia Identidade e Democracia. A diferença é que André Ventura ainda não descobriu.

Quando confrontado com as declarações do número um da AfD às europeias, Ventura disse isto: "Eu não me revejo nas declarações que foram feitas, eu não o diria, mas o Chega faz parte de uma família política que quer sem dúvida mudar a Europa na luta contra a corrupção, na luta por fronteiras seguras e contra a imigração. Não vou concordar a 100% com o que todos dizem, mas não há nenhum grupo europeu que o faça".

Vivemos tempos perigosos. A facilidade com que Ventura "desculpa" o colega (com quem, pelos vistos, só não concorda "a 100%"), diz que vai manter relações com a Alternativa para a Alemanha e ainda se rebela com os ataques à "liberdade de expressão" (aludindo a uma "paranóia colectiva em que estamos todos quando alguém diz alguma coisa de que não gostamos") pode-nos levar a pôr a hipótese de que um dia destes estará a dizer o indizível.

O número um do Chega às europeias, Tânger Correia, conseguiu ser mais razoável do que o líder do partido: admitiu que as declarações do candidato alemão o "deixavam desconfortável", disse que os membros das SS "sabiam bem o que estavam a fazer" e pôs em cima da mesa a hipótese de cortar relações com a AfD.

Ver Tiago Moreira de Sá, um dos antigos deputados eleitos pelo PSD na bancada de Rui Rio – teoricamente o mais social-democrata dos recentes líderes do PSD –, nas listas europeias do Chega torna-se particularmente penoso.

Felizmente, a Identidade e Democracia – no seu todo – é mais inteligente e menos permissiva a discursos antissemitas do que o Chega. É verdade que existem algumas pessoas nas listas do Chega que ainda não percebi se foram sempre assim, se apenas querem "um tacho" e alimentar (a caviar) a família e estão dispostos a tudo, ou se, no fundo, no fundo, andaram a passear-se por outros partidos a fingir-se de democratas, mas estão prontos a abraçar todo o racismo que lhes caia no colo (e o antissemitismo também).

A Europa dos valores, a Europa fundada pelos socialistas e democrata-cristãos, está a afundar-se com o crescimento deste tipo de partidos, onde reside o ovo da serpente. Marta Temido esteve correcta quando disse que o Chega era o seu principal adversário nestas eleições europeias. O Chega devia ser o principal adversário de todos aqueles que acham que defender o nazismo não é uma opinião.»

Ana Sá Lopes
(Newsletter do Público)

23.5.24

Onze anos sem Georges Moustaki

 


Nasceu em Alexandria, de pais judeus gregos, e morreu em Nice, com 79 anos, em 23 de Maio de 2013.

Em 1951 foi para Paris, trabalhou primeiro como jornalista, mas foi como barman que entrou no mundo da música, onde personalidades como Georges Brassens o influenciaram. Para Édith Piaf escreveu Milord e com ela viveu um curto romance. «Brassens était mon maître, Piaf était ma maîtresse» - terá um dia sintetizado.

Alguns vídeos AQUI.
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23.05.1934 - Bonnie & Clyde

 


Bonnie Parker e Clyde Barrow morreram há 89 anos. Ela tinha apenas 23 anos, ele 25, mas, apesar de curtas, as suas vidas foram atribuladíssimas, recheadas de assaltos e assassinatos, até que eles próprios foram abatidos numa emboscada, numa estrada deserta, algures no estado da Louisiana – cravados de balas, cerca de cinquenta para cada um, segundo consta. 



Ficaram imortalizados no imaginário da história do crime norte-americano como Bonnie & Clyde e foram trazidos para o nosso por um magnífico filme de Arthur Penn (1967), com «som» de Serge Gainsbourg, e, também, por uma inesquecível balada cantada por Giorgie Fame. 




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Uma vergonha

 


«A poucas semanas das eleições europeias, a vergonha abate-se sobre nós, numa altura em que a extrema-direita continua a galgar terreno em temas tão delicados como a imigração. André Ventura envergonhou os portugueses quando disse em Madrid, na convenção do Vox, que é preciso “dizer à Europa” que não é possível continuar a permitir a “entrada massiva de imigrantes islâmicos e muçulmanos” e, uns dias antes, 15 países-membros, liderados pela Dinamarca, enviaram uma carta à Comissão Europeia no sentido de endurecer a política de migração.

De entre os 27 países-membros, haver 15 que colocam em causa valores fundamentais da União é meio caminho andado para uma desunião. Dinamarca, República Checa, Bulgária, Estónia, Grécia, Itália, Chipre, Letónia, Lituânia, Malta, Países Baixos, Áustria, Polónia, Roménia e Finlândia não perderam tempo a tentar acabar com o pacto restritivo alcançado em dezembro. Estas nações querem seguir a italiana Meloni, com a criação em países terceiros de centros para o envio de migrantes. Mas veja-se o que está a acontecer no Norte de África: uma investigação do “El País” revela que Marrocos, Mauritânia e Tunísia estão a utilizar os fundos comunitários para deter os migrantes e refugiados e abandoná-los no deserto à sua sorte. É isto que pretendem os 15 signatários, ao dizerem que as suas propostas defendem a “estabilidade e coesão social”, mas que, na verdade, cheira a xenofobia. Externalizar a responsabilidade da União para países terceiros nem sempre é a melhor solução, principalmente para aqueles onde o respeito pelos direitos humanos dos migrantes não é garantido.

É a partir dessa consciência que deve ser assumido o desafio que a Europa enfrenta em matéria de migrações, que geram desequilíbrios, sem dúvida, mas que não podem ser resolvidos com medidas que nos façam sentir vergonha de sermos europeus.»


Contra factos há poucos argumentos

 



22.5.24

Vasos

 


Grande vaso (30 cm) Arte Nova, em vidro soprado pela boca e decorado com flores em esmalte dourado. Montjoie, França, 1880-1900.
Antikvitet net.

Daqui.

Júlio Pomar

 


Deixou-nos há seis, mas temos as suas pegadas.

Charles Aznavour – seriam 100 hoje!

 


Nasceu e morreu em Paris, francês mas de origem arménia e terá sempre a «nacionalidade» dos seus pais emigrantes. É um ícone nacional, não só pelo seu êxito como cantor, mas também e talvez sobretudo, pela sua acção após o terramoto de 1988. 

Em 7 de Dezembro de 1988, às 11:41, a terra tremeu, causando dezenas de milhares de mortos e centenas de milhares de sem abrigo. Aznavour percorreu o país pouco depois, criou uma Fundação específica para o efeito, que reuniu mais de 150 milhões de dólares, tem estátuas (vi uma em Gyumri, a cidade mais arrasada em 1988 e onde a temperatura chega a atingir 45º negativos) e o governo doou-lhe uma casa que avistei em Yerevan, onde funciona a referida Fundação. Os arménios não esquecem.

Ficam aqui dois vídeos relacionados com a Arménia e «La Bohème», a canção preferida por Aznavour, como repetiu dois dias antes de morrer:






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Olha, olha!

 


«Uma das propostas de José Pedro Aguiar-Branco passou pela criação de um voto de repúdio em relação a discursos considerados de ódio, ideia que será ainda analisada pelos diferentes grupos parlamentares e que requer uma revisão do Regimento da Assembleia da República.»

Notícia AQUI.


Europa: o extremo que se modera, a moderação que se extrema

 


«Temos estado concentrados no crescimento da extrema-direita nestas eleições europeias e distraídos quanto ao facto desse crescimento ser diferente do que vimos até agora. Mas, depois de crescer nestas eleições, a extrema-direita pode continuar a partir-se e isso não é obrigatoriamente uma boa notícia para a democracia e para a Europa. O nacionalismo paroquial tem impedido que a extrema-direita aproveite os extraordinários poderes que UE oferece com a sua democracia sem povo e instituições muito jovens e pouco sedimentadas na comunidade. Os nacionalismos, uns contra os outros, anulam-se numa Europa com cada vez mais poder político. Há uns meses, escrevi sobre a alteração que assistíamos em parte da extrema-direita europeia, de que Giorgia Meloni é a maior impulsionadora. Uma extrema-direita que substitui o nacionalismo tradicional por uma espécie de “grande nacionalismo europeu”, em que o motor da xeonofobia é a defesa de uma Europa branca e cristã e que se centra no combate à imigração extracomunitária. E um discurso social chauvinista, que responsabiliza os imigrantes (e não a agenda liberalizadora) pela decadência do Estado Social.

Não é o discurso de Le Pen e não será, provavelmente, o da AfD. Mas esta é a extrema-direita que tem tudo para crescer no sul e periferias europeias, onde o euroceticismo é frágil e a migração comunitária que recebe é rica. Haverá sempre pontes com o nacionalismo eurocético (a que se converterão à primeira crise), mas este espaço tem todas as razões para se autonomizar e ganhar, com isso, um enorme poder nas instituições europeias.

Giorgia Meloni percebeu isso e, em muito pouco tempo, fez de Salvini uma figura secundária. Não se limita a governar Itália, tornou-se uma aliada central para Ursula von der Leyen e uma figura central para a direita europeia no objetivo de começar a “libertar” a Europa da aliança centrista entre populares, liberais e socialistas, que correspondia à defesa de um modelo social europeu que está a ser desmantelado. É claro que os socialistas poderão continuar a cumprir o papel de ajudantes (como fizeram no Pacto das Migrações), mas o tempo acabará por determinar um dos caminhos: ou a distinção, ou a extinção.

O partido de Meloni tornar-se-á dominante no ECR (grupo dos Reformistas e Conservadores Europeus), que foi liderado pelos conservadores britânicos e é a quinta força do Parlamento Europeu. Nele está o Partido da Lei e da Justiça polaco, o Partido Popular Dinamarquês, os Verdadeiros Finlandeses – agora Partido dos Finlandeses –, os Democratas Suecos, a Nova Aliança Flamenga, o Vox e a extrema-direita dos Balcãs e, provavelmente, depois das eleições, o Fidesz húngaro. E nele podem concentrar-se os partidos de extrema-direita que cumpram duas condições: não sejam abertamente eurocéticos – mesmo que sejam antifederalistas – ou claramente putinistas. O Chega cumpre as duas.

São estas duas condições que permitem uma aliança cada vez mais forte entre o ECR e o PPE que tenha como moeda de troca o endurecimento de políticas contra a imigração – para a qual a maioria dos partidos de centro-direita está, aliás, absolutamente disponível – e, na agenda cultural, contra o que chamam de “multiculturalismo”.

A confirmar-se, a mudança de família política do Chega não fará o país perder um minuto de atenção. Uma das consequências do consenso europeísta esvaziado de conteúdo político é ninguém querer debater o que se passa na Europa. Mas ela será a manifestação doméstica de uma mudança profunda na União. Ao contrário do que pensam os que dividem o debate entre europeístas e eurocéticos, outras dicotomias confortáveis, o crescimento da extrema-direita não levará ao fim do projeto europeu. Isso seria pensar que quem lidera esses partidos não tem um projeto de poder, mas apenas impulsos irracionais. Pelo contrário, tudo indica que assistiremos a uma divisão de águas no espaço da extrema-direita e ao reforço do campo “europeísta” com forças xenófobas que pretendem usar o poder da Europa para a sua agenda.

Puxar o centro-direita para a agenda xenófoba da extrema-direita é torná-la mainstream. Pensámos sempre, também por conforto, que a extrema-direita se normalizaria e moderaria quando chegasse ao poder. Ignoramos que essa relação com a “normalidade” e a “moderação” é dialética. Eles aproximam-se do “normal” e do “moderado”, o “moderado” e o “normal” aproximam-se deles. Uma péssima notícia: o que acontece na Europa acaba sempre por chegar cá.»

21.5.24

Candeeiros

 


Candeeiro de cerâmica e bronze dourado, cerca de 1900.
Theodore Deck.


Daqui.

Aguiar Branco, ainda

 

«Quem se encontra em posições de liderança, prescrevem as recomendações, não só deve “evitar participar, viabilizar ou disseminar discurso de ódio” como assumir um papel ativo na condenação firme e pronta do discurso de ódio. Recomenda-se também a criação de códigos de conduta contra o discurso de ódio na política, particularmente em campanhas eleitorais e em debates, o evitar de qualquer expressão que favoreça a intolerância e a condenação clara do discurso de ódio.

E se há parlamentos - caso do francês - que retiram a palavra e até expulsam dos trabalhos um deputado que exprima discurso de ódio racista ou xenófobo, o Parlamento Europeu deixa muito claro no seu regimento que o discurso ofensivo ou injurioso que ali é proibido inclui, nos termos do artigo 21º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, linguagem difamatória, discurso de ódio e incitamento à discriminação com base na ‘raça’, cor, etnia, pertença a uma minoria nacional, ou nacionalidade.

Supor-se-ia que o presidente do parlamento português deveria, até por ser um insigne jurista, conhecer tudo isto. Mas, como deu mostras de total ignorância, talvez este modesto artigo lhe possa ser útil para não fazer mais figuras.»


João Bénard da Costa

 


Já lá vão 15 anos desde que o João se foi embora.

O futuro foi lá atrás

 


«É já um lugar comum falar-se nas mudanças que a Revolução Digital irá trazer para as nossas vidas individuais e coletivas. O que não se discute tanto são a forma dessas mudanças e ainda menos como nos poderíamos preparar para elas.

Antes de mais, e como disse Noah Harari nas suas 21 Lições para o Século XXI, esta revolução é diferente da Revolução Industrial e das outras que a precederam ou sucederam, porque não vem substituir a nossa atividade física por máquinas, mas a nossa atividade intelectual.

Ou seja, quem vai buscar consolo ao facto de termos coletivamente não só sobrevivido, mas ficado melhor depois das Revoluções Agrícola, Industrial, Eletrónica e da automação esquece-se que a Revolução Digital e da Inteligência Artificial (IA) não nos vai libertar de trabalhos mecânicos e repetitivos, mas vem desafiar a nossa capacidade única de raciocinar, criar e inovar.

Acresce que as pessoas que estão na primeira linha desta nova revolução não são capazes de antecipar todas as consequências do seu trabalho. Mas os impactos no emprego serão significativos já que, segundo o World Economic Forum, 66% dos trabalhos em 2022 eram executados por seres humanos, mas em 2027 essa percentagem deverá passar para 57%.

Por outro lado, a História também mostra que não vale a pena tentar parar o processo da digitalização e IA. É como tentar parar as marés de irem e voltarem. Resta-nos tentar antecipar, compreender e preparar-nos para as muitas mudanças que virão, quer queiramos ou não. Para esse exercício coletivo, seria útil procurarmos respostas para as perguntas que precisam do contributo de muitos. Aqui ficam algumas:

1 - Que empregos existirão no futuro e quais são as competências que as escolas, universidades e formação profissional ao longo da vida deveriam ensinar a estudantes e trabalhadores? Não seremos certamente mais capazes que a IA de conhecer, processar, gerir ou relacionar informação.

2 - Assumindo que a Digitalização e a IA irão substituir muitos empregos e sabendo que o modelo de financiamento das políticas públicas e da Segurança Social assenta, em parte, em impostos e contribuições sobre o trabalho, que modelos alternativos deveremos considerar?

3 - Se o mundo mudar mais depressa do que formos capazes de nos preparar, como vamos gerir a geração de pessoas que é nova de mais para se reformar, mas já não será capaz de se adaptar?

Que modelos e mecanismos de apoio à transição teremos e como os financiamos?

4 - À medida que vamos digitalizando políticas públicas e desmaterializando serviços públicos, como evitar que as pessoas que não tenham competências digitais deixem de ter acesso aos seus direitos de cidadania? Como evitar que quem mais precisa de apoio do Estado sofra o que Anne Applebaum chamou “a morte cívica”?

5 - Finalmente, e talvez uma pergunta menos concreta, mas não menos importante: se da Revolução Digital e da IA resultar haver mais pessoas do que trabalho e tivermos que gerir uma taxa de desemprego estrutural elevada - e assumindo otimisticamente que fomos capazes de responder à segunda pergunta e que as necessidades básicas das pessoas estarão asseguradas - qual será o valor e contributo para a sociedade de alguém que não tem, nem terá um emprego?

Gostemos ou não, o mundo está a mudar rápida e profundamente, e melhor será se tivermos uma conversa coletiva, séria e estruturada sobre o que nos espera e como o gerir.

Ignorar o que está ao virar da esquina será inútil e o resultado será caótico.»



20.5.24

Não pode ficar calado

 

«José Pedro Aguiar-Branco disse, aos jornalistas, que não era juiz ou magistrado do Ministério Público. Pois não, é a segunda figura do Estado. Como saberá, o MP não pode agir contra os deputados. Eles têm, e bem, imunidade parlamentar. Ela foi criada, entre outras coisas, para impedir o poder judicial de regular e arbitrar o debate dentro do órgão legislativo. Eles não podem ser criminalmente responsabilizados pelo que dizem. Levantar a imunidade parlamentar para ser o MP a dizer o que pode ou não pode ser dito na Assembleia da República violaria a separação de poderes. Por isso, é o poder legislativo que tem de seautorregular. E elege uma mesa da Assembleia da República (além da conferência de líderes e do próprio plenário) para o fazer.»



Um pouco mais de azul (9)

 


Psicopatas já fomos

 

O Estado, a ANA e a Lusoponte entram num bar

 


«Tenho um amigo que costumava dizer que tinha uma solução para a localização o novo aeroporto de Lisboa: abrir o mapa da região de Lisboa, fechar os olhos e atirar uma moeda. Onde caísse, ali se faria a construção. Era uma boa anedota porque dava conta da exasperação dos portugueses com a incapacidade das nossas elites políticas em tomar decisões quando estão em causa múltiplas pressões e interesses contraditórios.

Com a chegada do novo Governo da AD, temiam-se novos capítulos na longa novela sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa. Parecia outra boa anedota: ainda na oposição, Montenegro tinha anunciado um grupo de estudo do PSD para estudar o estudo da Comissão Técnica Independente – que, por sua vez, tinha nascido depois da reversão da decisão de localização do então Ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, por António Costa.

Mas, helás, Montenegro e Pinto Luz decidiram mesmo e acabaram por repetir em 2024 a escolha feita há década e meia pelo então Primeiro Ministro José Sócrates – Alcochete. E, depois de quase um quarto de século sem investimentos em infraestruturas de vulto, não há fome que não dê em fartura e o Governo da AD anunciou igualmente avançar com a 3.ª travessia do Tejo e a alta velocidade na ferrovia. Há hoje poucas dúvidas de que são investimentos muitíssimo necessários e que, aliás, já vêm atrasados.

Pode não parecer, mas a decisão de lançamento de novas infraestruturas de transporte é a parte fácil desta empreitada. Agora é que começa o verdadeiro teste – a negociação com os privados. Com a ANA, a feliz concessionária por 50 anos dos aeroportos nacionais em regime de monopólio. E com a Lusoponte, a empresa beneficiária do monopólio das travessias rodoviárias sobre o Tejo.

À direita diz-se muitas vezes que o Estado é mau gestor. Há múltiplos exemplos que desmentem esse mito: a Caixa Geral de Depósitos, os CTT lucrativos e com qualidade de serviço antes da privatização, a TAP nos últimos anos, etc. Na verdade, o que a evidência sólida e consistente nos mostra é outra coisa. O Estado Português é antes tendencialmente incompetente e incapaz quando negoceia com privados.

Na nossa longa história de privatizações, o prémio de pior negócio para o Estado é um concurso muito disputado. Na última década lembremos as privatizações do BPN, da EDP, a venda da REN, dos CTT ou as negociações/renegociações das PPP rodoviárias – temos múltiplos concorrentes de peso para o lugar de qual a privatização que mais prejudicou o interesse público. Mas sabemos hoje que o negócio de concessão em regime de monopólio dos aeroportos nacionais, feito em 2012 pelo governo do PSD-CDS, é uma das privatizações mais desastrosas da nossa história. A recente análise do Tribunal de Contas é arrasadora sobre a opacidade dos procedimentos no apuramento do valor dos ativos, da escolha do concessionário e a forma notória como o interesse público foi prejudicado. Com este milagroso negócio, a ANA conseguiu pagar o seu investimento inicial em apenas dez anos com os resultados da própria operação. Um caso com semelhanças evidentes com a Lusoponte, que em pouco mais de uma década já tinha recebido o dobro do investimento na Ponte Vasco da Gama em pagamentos do Estado e receitas das portagens.

Aqui chegados, e lançados pelo Governo da AD numa nova ronda de negociações com privados, vale a pena assinalar que quem vai lidar com os concessionários não tem propriamente um currículo brilhante na negociação com os privados. O actual ministro das Infraestruturas esteve diretamente envolvido na privatização da TAP em 2015, um negócio sobre o qual permanecem suspeitas de que o investidor fez a capitalização inicial através de um esquema que lhe permitiu usar o dinheiro da própria TAP. Há vários anos que aguardamos uma investigação desse negócio. Infelizmente, o Ministério Público tem estado demasiado ocupado com as 82 mil escutas a João Galamba, para apurar que lhe pagaram dois almoços. Os magistrados não têm tido disponibilidade. Note-se que o mesmo governo PSD-CDS fez também a privatização da Groundforce, que foi também paga, tarde e a más horas, com os lucros operacionais da própria empresa.

Enfim, talvez se desenhe aqui um padrão. Nos negócios com os privados, o Estado torna-se subitamente incompetente e incapaz, fazendo sucessivos negócios que prejudicam o interesse público. Arreganhemos os dentes.»

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19.5.24

Cálices

 


“Cálice de Vinha e Figuras”. Vidro, prata e bronze, 1899-1901.
René Lalique.
Coleção do Museu Gulbenkian.

Daqui..

19.05.1975 - O «caso República» que fez cair um governo

 


O chamado «Caso República» teve o seu início crítico no dia 19 de Maio de 1975, embora as hostilidades internas, entre a Comissão Coordenadora de Trabalhadores (CCT) gráficos e dos serviços administrativos de um lado, e a Administração e a chefia de Redacção do outro, tivessem já começado nos primeiros dias do mês.

Na manhã de 19, a CCT decidiu suspender do exercício das suas funções a Administração e a chefia de Redacção, acusando-as de estarem a tentar transformar o jornal num órgão afecto ao Partido Socialista. As instalações do jornal foram ocupadas pelos trabalhadores e a edição desse dia saiu com uma constituição diferente.

O PS organizou imediatamente uma manifestação de apoio à antiga direcção, no Largo da Misericórdia (com a presença, entre outros de Mário Soares, Salgado Zenha e Manuel Alegre), a multidão foi engrossando e gritaram-se palavras de ordem contra o PCP, Álvaro Cunhal e MFA.

Quem estiver interessado nos detalhes desta saga, que foi um marco no PREC dois meses depois do seu início, pode ler um detalhado resumo dos acontecimentos.

O República acabou por estar fechado durante algum tempo e reapareceu nas bancas em 10 de Julho, constituído maioritariamente por elementos das forças armadas e de uma certa esquerda radical. Como consequência destes factos, no dia 7 de Julho, o PS abandonou o IV Governo provisório (o mesmo acontecendo pouco depois com o PPD / PSD) que acabou por cair no dia 17 do mesmo mês.
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Estamos juntos, estamos fortes

 


Vida Justa no Facebook.

Ventura e amigos

 


Numa convenção do partido espanhol Vox, de extrema-direita, em Madrid, que reúne hoje na capital espanhola dirigentes da direita radical europeia e americana, na pré-campanha das eleições para o Parlamento europeu.

«𝐎 𝐩𝐫𝐞𝐬𝐢𝐝𝐞𝐧𝐭𝐞 𝐝𝐨 𝐂𝐡𝐞𝐠𝐚, 𝐀𝐧𝐝𝐫é 𝐕𝐞𝐧𝐭𝐮𝐫𝐚, 𝐩𝐞𝐝𝐢𝐮 𝐞𝐬𝐭𝐞 𝐝𝐨𝐦𝐢𝐧𝐠𝐨 𝐮𝐦𝐚 𝐔𝐧𝐢ã𝐨 𝐄𝐮𝐫𝐨𝐩𝐞𝐢𝐚 𝐜𝐨𝐦 "𝐟𝐫𝐨𝐧𝐭𝐞𝐢𝐫𝐚𝐬 𝐟𝐨𝐫𝐭𝐞𝐬" 𝐞 𝐬𝐞𝐦 "𝐞𝐧𝐭𝐫𝐚𝐝𝐚 𝐦𝐚𝐬𝐬𝐢𝐯𝐚 𝐝𝐞 𝐢𝐦𝐢𝐠𝐫𝐚𝐧𝐭𝐞𝐬 𝐢𝐬𝐥â𝐦𝐢𝐜𝐨𝐬 𝐞 𝐦𝐮ç𝐮𝐥𝐦𝐚𝐧𝐨𝐬" e disse estar convencido de que será o próximo primeiro-ministro de Portugal.» - 𝐮𝐦𝐚 𝐚𝐟𝐢𝐫𝐦𝐚çã𝐨, 𝐞𝐧𝐭𝐫𝐞 𝐨𝐮𝐭𝐫𝐚𝐬, 𝐪𝐮𝐞 𝐩𝐨𝐝𝐞𝐫á 𝐫𝐞𝐩𝐞𝐭𝐢𝐫 𝐧𝐚 𝐀𝐑 𝐬𝐞𝐦 𝐪𝐮𝐞 𝐀𝐠𝐮𝐢𝐚𝐫 𝐁𝐫𝐚𝐧𝐜𝐨 𝐩𝐞𝐬𝐭𝐚𝐧𝐞𝐣𝐞.


Pode um deputado dizer que os judeus são uma etnia “mais burra”?

 


«Eu não sei se as mesmas pessoas que andam a aplaudir Aguiar-Branco por ter ignorado as palavras racistas de André Ventura sobre os turcos – o direito à liberdade de expressão, não censurar as palavras de nenhum deputado – seriam as mesmas que estariam a rasgar as vestes e a condenar o presidente da Assembleia se permitisse discursos anti-semitas no Parlamento. Nem todas.

Muitas achariam absolutamente natural que o povo judeu fosse caracterizado como “acumulador de dinheiro” ou outra coisa qualquer, da mesma maneira que acharam natural que José Pedro Aguiar-Branco, que já chamou a atenção de André Ventura em alguns episódios menores passados no plenário, tivesse achado que não devia dizer qualquer coisinha.

Obviamente, não se pedia a José Pedro Aguiar-Branco que chamasse a polícia, como o presidente da Assembleia da República deu a entender na conferência de imprensa posterior ao episódio. Pedia-se apenas a Aguiar-Branco que tivesse noção de que o seu cargo não serve apenas para indicar quem está em uso da palavra e contar os minutos das intervenções. Se fosse só isto, poderíamos substituí-lo por inteligência artificial, gastava-se menos um ordenado e deixávamos de ter uma segunda figura de Estado inútil.

Ao presidente da Assembleia cabe zelar pelo decoro, linguagem menos própria (definida de acordo com as convenções sociais, que, também essas, provavelmente também atentam contra a liberdade de expressão, segundo os libertários destes dias), ofensas. Não achar que nessa linguagem “menos própria” e nas ofensas estão incluídas referências com potencial xenófobo (os turcos não são conhecidos por ser muito trabalhadores, os países do Sul da Europa gastam o dinheiro todo em vinhos e mulheres, etc.) é escancarar as portas a todo e qualquer discurso racista.

Quando Alexandra Leitão – e bem – perguntou ao presidente da Assembleia da República se, doravante, os deputados “podem dizer que uma determinada raça ou etnia é mais burra ou preguiçosa”, a resposta de José Pedro Aguiar-Branco foi clarinha: “A meu ver, podem.”

É evidente que, se a etnia visada fossem os judeus, a reacção não seria esta. Não estou a ver José Pedro Aguiar-Branco a permitir na Assembleia insultos aos judeus (mas confesso que já estou por tudo). Sinceramente, acho que não o fará, porque carrega a culpa que todos nós, europeus, carregamos por termos permitido, no século XX, o Holocausto.

Mas este precedente de Aguiar-Branco abre a porta a que o Chega reproduza – perante o silêncio do presidente da Assembleia da República – as teorias de conspiração anti-semitas que o número 1 do partido às europeias, Tânger Corrêa, exprimiu numa entrevista ao Observador. Na altura, o candidato da AD, Sebastião Bugalho, condenou, bem, o discurso de Tânger Corrêa. Estranhamente, não houve muito mais gente a vir a terreiro condenar.

O que se está na passar na Europa e na América (menos em Portugal) é que qualquer discurso contra a carnificina que Israel está a fazer na Faixa de Gaza é, imediatamente, considerado anti-semita e mandado calar. Não foi só Jeremy Corbyn que perdeu o direito a ser deputado por causa de umas chalupas acusações de anti-semitismo – foram vários dirigentes do Labour. A Europa protege Israel como se fosse seu filho e vira os olhos para o lado quando se fala de Gaza. Os direitos humanos sempre tiveram dois pesos e duas medidas, aqui e em qualquer outro lado do mundo.

O coração do Ocidente só tem espaço para uma culpa: o extermínio dos judeus. O extermínio de outros povos, a escravatura, o racismo contra outras etnias que não a judaica, os massacres do colonialismo são “história”. Com a direita populista radical a ganhar força na Europa, uma parte dela anti-semita, provavelmente até a culpa em relação aos judeus será apagada.

E José Pedro Aguiar-Branco já estendeu a passadeira vermelha para que possam ser feitas declarações anti-semitas na Assembleia da República. Pior era impossível.»

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