22.5.24

Europa: o extremo que se modera, a moderação que se extrema

 


«Temos estado concentrados no crescimento da extrema-direita nestas eleições europeias e distraídos quanto ao facto desse crescimento ser diferente do que vimos até agora. Mas, depois de crescer nestas eleições, a extrema-direita pode continuar a partir-se e isso não é obrigatoriamente uma boa notícia para a democracia e para a Europa. O nacionalismo paroquial tem impedido que a extrema-direita aproveite os extraordinários poderes que UE oferece com a sua democracia sem povo e instituições muito jovens e pouco sedimentadas na comunidade. Os nacionalismos, uns contra os outros, anulam-se numa Europa com cada vez mais poder político. Há uns meses, escrevi sobre a alteração que assistíamos em parte da extrema-direita europeia, de que Giorgia Meloni é a maior impulsionadora. Uma extrema-direita que substitui o nacionalismo tradicional por uma espécie de “grande nacionalismo europeu”, em que o motor da xeonofobia é a defesa de uma Europa branca e cristã e que se centra no combate à imigração extracomunitária. E um discurso social chauvinista, que responsabiliza os imigrantes (e não a agenda liberalizadora) pela decadência do Estado Social.

Não é o discurso de Le Pen e não será, provavelmente, o da AfD. Mas esta é a extrema-direita que tem tudo para crescer no sul e periferias europeias, onde o euroceticismo é frágil e a migração comunitária que recebe é rica. Haverá sempre pontes com o nacionalismo eurocético (a que se converterão à primeira crise), mas este espaço tem todas as razões para se autonomizar e ganhar, com isso, um enorme poder nas instituições europeias.

Giorgia Meloni percebeu isso e, em muito pouco tempo, fez de Salvini uma figura secundária. Não se limita a governar Itália, tornou-se uma aliada central para Ursula von der Leyen e uma figura central para a direita europeia no objetivo de começar a “libertar” a Europa da aliança centrista entre populares, liberais e socialistas, que correspondia à defesa de um modelo social europeu que está a ser desmantelado. É claro que os socialistas poderão continuar a cumprir o papel de ajudantes (como fizeram no Pacto das Migrações), mas o tempo acabará por determinar um dos caminhos: ou a distinção, ou a extinção.

O partido de Meloni tornar-se-á dominante no ECR (grupo dos Reformistas e Conservadores Europeus), que foi liderado pelos conservadores britânicos e é a quinta força do Parlamento Europeu. Nele está o Partido da Lei e da Justiça polaco, o Partido Popular Dinamarquês, os Verdadeiros Finlandeses – agora Partido dos Finlandeses –, os Democratas Suecos, a Nova Aliança Flamenga, o Vox e a extrema-direita dos Balcãs e, provavelmente, depois das eleições, o Fidesz húngaro. E nele podem concentrar-se os partidos de extrema-direita que cumpram duas condições: não sejam abertamente eurocéticos – mesmo que sejam antifederalistas – ou claramente putinistas. O Chega cumpre as duas.

São estas duas condições que permitem uma aliança cada vez mais forte entre o ECR e o PPE que tenha como moeda de troca o endurecimento de políticas contra a imigração – para a qual a maioria dos partidos de centro-direita está, aliás, absolutamente disponível – e, na agenda cultural, contra o que chamam de “multiculturalismo”.

A confirmar-se, a mudança de família política do Chega não fará o país perder um minuto de atenção. Uma das consequências do consenso europeísta esvaziado de conteúdo político é ninguém querer debater o que se passa na Europa. Mas ela será a manifestação doméstica de uma mudança profunda na União. Ao contrário do que pensam os que dividem o debate entre europeístas e eurocéticos, outras dicotomias confortáveis, o crescimento da extrema-direita não levará ao fim do projeto europeu. Isso seria pensar que quem lidera esses partidos não tem um projeto de poder, mas apenas impulsos irracionais. Pelo contrário, tudo indica que assistiremos a uma divisão de águas no espaço da extrema-direita e ao reforço do campo “europeísta” com forças xenófobas que pretendem usar o poder da Europa para a sua agenda.

Puxar o centro-direita para a agenda xenófoba da extrema-direita é torná-la mainstream. Pensámos sempre, também por conforto, que a extrema-direita se normalizaria e moderaria quando chegasse ao poder. Ignoramos que essa relação com a “normalidade” e a “moderação” é dialética. Eles aproximam-se do “normal” e do “moderado”, o “moderado” e o “normal” aproximam-se deles. Uma péssima notícia: o que acontece na Europa acaba sempre por chegar cá.»

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