11.6.25

Marcelo: agarrado ao pescoço da Nação

 

Imagem de André Ruivo

«Depois do discurso de Lídia Jorge, talvez demasiado denso para o momento, mas com a coragem de, sem omissões, usar as contradições da nossa história para refletir no espelho uma identidade bem diferente daquela que a extrema-direita quer para nós, Marcelo Rebelo de Sousa limitou-se a picar o ponto, reafirmando o que se tinha ouvido. Lamento a sua despedida quase burocrática, porque ele próprio merecia deixar uma marca que apagasse o último episódio em que o vimos e que, infelizmente, é sintomático.

Não gosto dos pequenos escândalos que alimentam polémicas estéreis, quando as redes sociais escolhem, como em "Hated in the Nation", episódio de Black Mirror, a sua vítima do dia. Fiquei, no entanto, a pensar na cena de Marcelo Rebelo de Sousa com a trabalhadora da Feira do Livro que, aproveitando a presença do Presidente com uma comitiva de jornalistas no local, resolveu fazer um apelo à participação no protesto contra a matança em Gaza, um genocídio que o Estado português ignora.

Como era evidente, a cidadã não esperava que Marcelo tivesse a clareza que lhe faltou até hoje. Líderes políticos que deixaram as coisas chegar ao ponto a que chegaram em Gaza sem fazerem um corte radical com o governo criminoso de Netanyahu não se vão comover com uma folha de papel A4 na mão de uma mulher. Era um protesto, não pretendia ser um diálogo.

Quando Marcelo disse para ela o ouvir, a resposta foi honesta: tem todo o tempo do mundo para falar. Era aos jornalistas que se dirigia. Mas fez tudo com uma correção inatacável, sem nunca deixar de tratar Marcelo por “Senhor Presidente” ou levantar a voz, enquanto era interrompida e segurada pelo chefe do Estado.

Quando Marcelo quis falar, vendo que a cidadã se preparava para seguir a sua vida, fez o impensável, segurando-a pelo pescoço. E, mesmo ouvindo a frase impensável – "não me agarre o pescoço, senhor Presidente" –, ainda insistiu um pouco. Toda a cena provocou um misto de vergonha alheia e perplexidade. E toda ela ajuda a explicar porque corremos o risco de eleger um militar sem qualquer experiência política ou cívica para Belém.

Não preciso de outro exercício: se a senhora tivesse feito o mesmo seria, com toda a justiça, agarrada por seguranças e identificada pela polícia. Se assim é, estamos perante um abuso vindo de alguém que se esqueceu de que o seu poder resulta de um cargo transitório que ocupa, não é realmente seu. É ele que se tem de adaptar ao fato, não o oposto.

Nada disto é novo. Aconteceu com comentários impensáveis ao decote de uma rapariga ou ao peso de uma senhora, acontece nos passou-bens que se transformam em puxões intimidatórios ao estilo de Trump, sinal de desrespeito pelo corpo do outro. Mas este caso torna-se mais grave por ter sido com alguém que não só não deu qualquer sinal de simpatia ou proximidade, como até o estava a contestar.

Defendi e defendo que a proximidade física de Marcelo foi, em diversos momentos, uma vantagem. Como o corpo fala, e também fala na política, essa proximidade falou quando o Estado falhou ou esteve ausente, como aconteceu em Pedrógão. Essa proximidade falou quando se instalou a ideia da casta e Marcelo estava na praia, no supermercado, na rua. E falou quando se fez fotografar junto da população do Bairro da Jamaica. Não esqueci nada disso. A arma de Marcelo contra o populismo sempre foi a popularidade.

A informalidade humaniza o cargo. Mas a informalidade em excesso torna esse cargo pessoal e idiossincrático, abrindo a porta para a arbitrariedade e para confusão entre o poder institucional e pessoal. Aquilo que Marcelo diz querer combater. O excesso de proximidade cria a ilusão de intimidade que pode alimentar o abuso de poder.

A informalidade de Marcelo tem criado, desde que parece ter perdido os filtros, imensos problemas. Até crises políticas e instabilidade. Aquela imagem confrangedora tem, como o bolo na boca de Cavaco para não responder a jornalistas, o poder simbólico de um fim de ciclo. O sinal de que se foi longe demais e de que está na altura de voltar a mudar de registo. Infelizmente, é costume o exagero na correção.

Esperemos que ao excesso de informalidade não suceda a rigidez da parada. E não me refiro à que, com a autoridade moral do seu papel político na instauração da democracia, foi ontem condecorada por Marcelo, mas da que brilha no fogacho mediático que constrói políticos sem passado.»


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