«Hoje é sábado, 24 de Dezembro, e amanhã é Natal. Sei que o Irão não vos interessa. É a 6500 quilómetros daqui e, em Portugal, vivem menos de dois mil iranianos — a relação é ténue e o tema pouco sexy.
Digo isto porque acabo de ver que, de tudo o que escrevi em 2022, os dois últimos Coffee breaks, que eram sobre o Irão, bateram os recordes dos textos menos lidos. Não esperava ter 100 mil leitores, como já aconteceu, mas 315 almas?
Lamento insistir, para mais no Natal. Mas vai ter de ser. Penso no Irão todos os dias, mal acordo.
O Pedro Adão, um querido amigo que foi diplomata em Teerão, falava farsi sem pronúncia. Chegou ao novo posto e dedicou-se a aprender a língua. A embaixada fechava e ele ia para casa estudar farsi com uma professora improvisada, que se tornou sua amiga. Nos primeiros seis meses, passou noites a falar farsi com ela e, do bê-á-bá, passou à conversação fluente. Ele queria perceber o que se passava à sua volta. Quando o visitei, estava ele em Teerão há três anos, conheci vários dos seus novos amigos. Eram todos iranianos. Actores, escritores, músicos, economistas, empresários. O que será feito deles e dos seus filhos?
Aqui vai, como primeira mensagem de Natal: há muitos funcionários públicos, diplomatas e outros, que servem Portugal de uma forma tão dedicada que comove.
E a segunda: veja o que se está a passar no Irão. Não veja em geral. Veja todos os dias.
Se for ao Twitter, verá as parvoíces de Donald Trump e Elon Musk. Mas também lerá coisas como isto: “O seu nome é Aida Rostami, uma médica que ajudou a tratar os manifestantes feridos nos protestos no Irão. A 12 de Dezembro, saiu do hospital e nunca mais voltou. No dia seguinte, a polícia disse à família que ela tinha tido um acidente. Ninguém acredita nas mentiras do regime.”
Ou isto: “Aida Rostami, uma médica presa por tratar manifestantes feridos nas suas casas, foi dada como morta pelo regime do Irão. O seu corpo apresentava sinais de tortura, com um dos olhos arrancado e metade do rosto esmagado. O regime diz que ela morreu num desastre de carro.”
A revolução que as mulheres iranianas começaram a fazer e fazem há três meses sem pausa é a coisa mais comovente que vi em anos e anos de coisas comoventes que se passam no mundo.
Vi hoje que o regime não enforcou mais nenhum preso político. Há 11 à espera. Alguns foram presos há menos de um mês. Todos tiveram julgamentos sumários, que violam as mais elementares leis internacionais. Poderão ser mortos a qualquer momento. Se calhar, amanhã acordamos com essa notícia.
Desde Setembro, o regime prendeu mais de 14 mil pessoas. Muitos são rapazes e raparigas. Há estudantes universitários e empregados de mesa, médicos e operários. Estão na rua a protestar contra o regime e não querem que a morte de Mahsa Amini, de 22 anos, seja em vão. Amini é a rapariga curda detida por “uso incorrecto” do hijab e que morreu sob custódia da “polícia da moralidade”. Foi de tal forma espancada, que entrou em coma e morreu.
Hoje também vi que a actriz Taraneh Alidoosti continua presa. Publicou uma frase no Instagram — “O nome dele era Mohsen Shekari. Todas as organizações internacionais que estão a assistir a este banho de sangue e que não estão a tomar medidas são uma desgraça para a humanidade” — e sete dias depois foi presa. A IRNA, agência noticiosa oficial, disse que Alidoosti “não apresentou provas em linha com as suas denúncias”.
Alidoosti, de 38 anos, é uma das actrizes mais famosas do Irão — entrou no filme O Vendedor, de Ashgar Farhadi, vencedor do Óscar para Melhor Filme Estrangeiro em 2016, e n’Os Irmãos de Leila, de Saeed Roustayi, em exibição nas salas portuguesas. Estará a ser torturada na prisão?
E o cineasta Jafar Panahi, preso em Julho e a cumprir uma pena de seis anos de prisão por ter apoiado protestos em 2010? Está a ser torturado? O seu filme No Bears — feito às escondidas — acaba de se estrear em Nova Iorque. E Mohammad Rasoulof, outro cineasta preso no Verão, está a ser torturado?
E Mahsa Peyravi, de 25 anos, presa em Outubro por ter tirado o lenço da cabeça e tê-lo rodado no ar, que acaba de ser condenada a dez anos de prisão por “incentivo à corrupção, depravação” e “imoralidade”, está a ser torturada?
No próximo Natal, vou tentar escrever um postal mais interessante. Este ano, só consegui isto.»
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