«O que deveria ser mais um congresso do Chega para corrigir mais uma trapalhada estatutária de um partido unipessoal não se limitou a merecer uma cobertura mediática absurda, tendo em conta a regularidade das convenções e o facto de ser um formalismo imposto pelo Tribunal Constitucional, que Ventura aproveitou para mais uma eleição norte-coreana. Teve direito à presença do vice-presidente do PSD que, em 2020,quando foi candidato à liderança, defendeu que as alianças com extrema-direita eram possíveis e da ministra dos Assuntos Parlamentares, umas das figuras mais importantes do PS. E isso chegou para que o congresso, onde nem uma solução para seja que assunto fosse foi mencionada, ganhasse centralidade política. O que nunca precisa de muito, porque os jornalistas, sendo viciados em novidades, tendem a alimentá-las até as suas profecias se tornarem realidade.
A presença de Miguel Pinto Luz no encerramento da convenção é a confirmação do que qualquer pessoa atenta às várias declarações de Luís Montenegro já percebeu há muito tempo: se o PSD precisar do Chega, e é provável que venha a precisar, haverá acordo sem qualquer hesitação. E quanto mais sinais der disso aos eleitores mais votos perderá para o Chega, à direita, porque dá utilidade a esse voto, e mais precisará dele. Percebendo a centralidade que lhe dão, André Ventura subiu a parada: quer ministros. E a sede de poder da direita será tal que, se for essa a sua exigência, os terá.
O teste do algodão será a Madeira. Não tenho dúvidas que a organização que governa a região há meio século, com todos os abusos e impunidades que tanto tempo garante ao poder, não hesitará em dar lugares ao Chega. Nem me parece que este debate diga qualquer coisa ao PRI madeirense. E não acho que o efeito venha a ser aquele a que assistimos nos Açores. Muita coisa mudou desde então: o PS encarregou-se de institucionalizar que o Chega é quem lhe faz oposição, valorizando-o; a comunicação social encarregou-se de transformar o confronto político em nada mais do que casos (com a ajuda do governo); e o PSD tratou de normalizar a extrema-direita como apenas mais uma potencial parceira. Natural, quando foi o passismo que criou a besta.
De tal forma que a nova direção IL, saída de um congresso onde ficou claro que quase metade do partido poderia ser do Chega, até está apostada, mais pela nova versão "social" de Ventura do que por causa das liberdades de quem não tem dinheiro, em distinguir-se de Montenegro nesta opção.
O Chega terá apenas um problema e não será aqueles que muitos pensam – deixar de ser um partido de protesto. Por essa Europa fora a extrema-direita tem mostrado uma enorme adaptabilidade. Consegue estar dentro mantendo-se aparentemente fora e impor a agenda populista na violação dos direitos das minorias enquanto aceita o “status quo” económico e social. Por isso querem a Administração Interna ou a Justiça e deixam as pastas económicas para aqueles de quem, quando não estão a caçar votos, não discordam assim tanto.
O problema do Chega é o seu maior trunfo: André Ventura. Não sei se por insegurança, autoritarismo (inevitável num partido de natureza autoritária) ou as duas coisas, o líder do Chega não deixa que nada brilhe à sua volta, tornando o partido pouco atrativo para quem não seja destituído. Não há naquele grupo parlamentar ninguém que pudesse ser ministro para além do próprio Ventura. E no dia que houver será rapidamente despachado. Só resistem à limpeza, bem evidente neste congresso devidamente enxuto de discordâncias, velhos fascistas ou intelectuais há muito à procura de abrigo que ambicionam uma coisa que não tem interesse para Ventura: o poder das suas convicções.
Quanto à presença de Ana Catarina Mendes, em representação do governo, é ainda mais significativa. Claro que o PS, ao contrário dos futuros aliados do Chega, não esteve presente. Mas ao decidir que o governo está presente e ao escolher uma das suas principais ministras e uma das principais dirigentes do partido, e não uma figura de quarta linha, Costa quis valorizar o Chega. E é o que continuará a fazer, passando a ideia que qualquer alternativa tem de passar pelo Chega, para assustar moderados: ou eu, ou o caos. O que Macron tem feito, destruindo todo o sistema partidário francês.
Só há um problema: as coisas estão a chegar a um ponto em que até o PS parece estar a perder votos para a extrema-direita. Costa está a alimentar um monstro que lhe garantirá a sobrevivência a curto prazo, mas põe a democracia em perigo no médio e longo prazo. O problema não são os inimigos da democracia. São os que estão demasiado ocupados consigo mesmos para a defender.»
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