13.7.19

Sim e não é só uma


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Esta é a acusação mais grave e séria: a UE “provocou conscientemente a morte de mais de 14 mil pessoas”



«A chanceler alemã, Angela Merkel, recebeu a 17 de janeiro de 2017 uma nota com pormenores assustadores. Um diplomata da embaixada da Alemanha no Níger escreve-lhe que visitou os campos de detenção na Líbia e comparou o que viu aos campos de concentração durante o Holocausto, “com execuções, tortura, abusos sexuais e extorsões todos os dias”, sendo ali cometidas “as mais graves e sistemáticas violações dos direitos humanos”. Entre 2016 e 2018, mais de 40 mil pessoas foram trazidas dos barcos em que tentavam fugir de regresso a estes centros. Duas semanas depois daquele aviso, a 3 de fevereiro, os líderes da UE encontraram-se em Malta e assinaram mesmo assim um protocolo de cooperação com as autoridades líbias. Foram mobilizados 200 milhões de euros para parar, ou pelo menos reduzir em muitas centenas, o fluxo migratório.

Esta é uma das razões que levaram Juan Branco, advogado franco-espanhol que estagiou no Tribunal Penal Internacional (TPI), a desenvolver, em conjunto com o advogado israelita Omer Shatz, um processo penal contra Estados-membros da UE e diretores-gerais da Comissão Europeia. A outra tem que ver com o fim, em 2014, da operação de salvamento Mare Nostrum, que era financiada por Itália e permitiu salvar milhares de pessoas - mas depois as mortes aumentaram com o fim dessa operação. Segundo números da Organização Internacional das Migrações, 3.200 migrantes morreram afogados em 2014, em 2015 esse número subiu para 4.000 e em 2016 para 5.000. “Estamos a acusar dirigentes europeus e funcionários da UE, assim como os governos de alguns dos seus Estados-membros, por terem deixado morrer ou provocar conscientemente a morte de mais de 14 mil pessoas entre 2014 e 2018, pessoas que eram civis e que foram atacadas de maneira sistemática e generalizada”, explica Juan Branco em entrevista ao Expresso.

O processo deu entrada no TPI a 3 de junho e há agora dirigentes e funcionários da União Europeia formalmente acusados de crimes contra a humanidade. É a acusação mais séria que alguém pode enfrentar e não é todos os dias que somos obrigados a olhar para os representantes de um organismo criado para servir a paz como gente que deixou outra gente morrer, consciente de que era isso que fazia. Se o caso seguir para a fase de investigação, Juan Branco já não ficará totalmente desiludido com as instituições de uma Europa que também é sua - conhece a realidade do TPI “a partir de dentro” e por isso acredita que não pode esperar tudo. “Teoricamente não é preciso coragem para investigar Bruxelas, não há violência política, ninguém é preso por fazer perguntas, entra-se e sai-se à vontade”, mas na prática talvez seja diferente: “A ideia de que as pessoas com quem eles convivem e se sentam a beber cocktails possam estar a cometer crimes horríveis é impossível de conceber para os que trabalham no tribunal. É uma questão psicológica”, diz o advogado, de 30 anos.


Com pedidos de desculpa para os Macronfilos


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O estado da vida



«Assistimos esta semana a uma discussão vazia sobre o "estado da nação", quando tanto precisamos de análises sérias sobre os problemas muito concretos que marcam a vida dos portugueses e portuguesas e de propostas simples para a sua resolução. Diz-se que este tipo de discussão é natural em período de campanha eleitoral. Digo não a esse argumento. Primeiro, porque todos os debates regulares sobre a situação do país devem ser rigorosos. Segundo, a campanha eleitoral para as eleições de outubro não deve ser vazia de respostas objetivas, pois isso esvaziará a democracia e afastará as pessoas do ato do dever de votar.

Os portugueses não precisam de um concurso entre partidos sobre a melhor propaganda para vender a promessa de "mais investimento público" ou de "descer impostos". Precisamos sim de garantias reais para fazer chegar os recursos disponíveis aonde eles são necessários e têm de ser investidos - não basta o compromisso de colocar verbas nos orçamentos do Estado. Na questão fiscal, o que interessa mesmo é saber-se com rigor três coisas: i) as receitas que o país pode ter e de que precisa, à luz da sua capacidade económica e financeira e dos serviços que o Estado deverá garantir às pessoas; ii) conhecer-se as medidas que vão impedir a fuga fiscal; iii) garantir que a carga fiscal seja distribuída com mais justiça e aplicar o princípio mais solidário de todos, que é, cada cidadão pagar em cada ano os impostos correspondentes à riqueza adquirida nesse ano.

Precisamos que se abandone a lengalenga das reformas estruturais, que ao longo dos anos tem servido para cavar injustiças e aumentar a exploração, para aprofundar o enredo da financeirização da economia e para atrasar resoluções de problemas. Os partidos devem apresentar políticas estratégicas para o desenvolvimento da sociedade, acompanhadas de respostas às realidades do presente contínuo, base fundamental na construção do futuro. Por exemplo, a Direita tenta instalar na sociedade a ideia de que os serviços públicos estão em situação de caos com o intuito de oferecer grandes negócios a interesses privados. Instalada tal conceção, tornar-se-ia inviável adotar mudanças positivas na gestão e organização dos serviços, na responsabilização e capacitação dos trabalhadores da Administração Pública. Mas esta batalha só será ganha se o Governo abandonar o confronto de posições assente no mero esgrimir de estatísticas e leituras generalistas, e tratar mesmo de recrutar e formar trabalhadores em áreas de carência evidente, se investir em equipamentos, se propiciar condições para uma gestão dinâmica e feita em tempo útil.

No plano laboral colocam-se desafios muito simples que à partida nenhum "parceiro social" põe em causa. Deixo três exemplos: i) inscrever na lei que não pode haver caducidade unilateral de contratos coletivos de trabalho e criar os mecanismos que assegurem tal princípio; ii) impor o respeito pela hierarquia das leis e regulações, ou seja, um regulamento ou acordo numa empresa não pode ferir princípios estabelecidos ao nível de um setor e a legislação e acordos neste plano não podem pôr em causa normas e princípios inscritos nas leis nacionais; iii) dar um forte impulso à valorização do salário mínimo nacional.»

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12.7.19

Pablo Neruda nasceu num 12 de Julho



Pablo Neruda nasceu em 12 de Julho de 1904, em Parral, no Chile, e morreu em Santiago, em Setembro de 1973, poucos dias depois do golpe que vitimou Salvador Allende. Não se tinha candidatado às eleições presidenciais de 1970 por ter considerado que Allende tinha mais possibilidade de as vencer, como veio a verificar-se.

Recordemo-lo um pouco, com a sua voz inconfundível.





Luís Moita



A um mês de completar 80 anos, Luís Moita deu ontem a sua magnífica última lição, no átrio da sua Universidade Autónoma a abarrotar de personalidades várias e amigos de sempre.

Gravação da lição:


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Quotas? Atrasados, como é hábito


Estava-se no início de 1980, eu trabalhava em Portugal numa multinacional onde as mulheres em cargos de chefia se contavam pelos dedos e passei a ser uma delas. Se creio, sinceramente, que isso não foi devido a preocupação por cumprimento de quotas, esta já era então uma realidade. Poucos dias depois, encontrei num elevador quem tinha acabado de nomear uma outra mulher, dei-lhe os parabéns e a resposta irónica foi: «Se fosse negra, isso é que era!»

Lembrei-me disto ao ler Susana Peralta, no Público de hoje: 
«A expressão affirmative action apareceu no dia 6 de março de 1961 na famosa ordem número 10925, assinada por John Kennedy, que obrigava todas as empresas com contratos com o governo a tomar medidas para assegurar igualdade de tratamento no acesso ao emprego e nas condições de trabalho. As metas quantificáveis impostas pelo governo nasceram em 1969 no famoso Plano de Filadélfia. Na nossa república à beira mar plantada, o debate chega com 60 anos de atraso.»
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O Tribunal Europeu e o discurso de ódio



«O discurso de ódio e de discriminação racial não são protegidos pela liberdade de expressão consagrada na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (Convenção). A recusa de protecção desse tipo de discurso, na prática, pode resultar de o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) considerar que o mesmo constitui um abuso de direito em relação à liberdade de expressão, o que é proibido pela Convenção que determina que nenhuma das suas disposições se pode interpretar no sentido de haver um direito a praticar actos com vista à destruição dos direitos ou liberdades consagrados na própria Convenção.

Mas o TEDH também pode recusar, em concreto, a protecção da liberdade de expressão ao discurso de ódio ou de discriminação racial, não porque entende que coloca em causa os direitos e valores fundamentais sobre os quais assenta a CEDH mas porque entende que se justificam restrições à liberdade de expressão em nome da defesa da segurança pública ou da ordem pública e a prevenção criminal, bem como a protecção da honra ou dos direitos de outrem.

Em 27 de Junho de 2017, por exemplo, o TEDH apreciou a queixa, por violação da liberdade de expressão, de Belkacem, um cidadão belga muçulmano que tinha sido condenado na pena, suspensa, de 18 meses de prisão e numa multa de 550 euros por incitamento à discriminação, à violência e ao ódio. No Youtube, Belkacem pedia aos seus apaniguados que dominassem as pessoas não-muçulmanas, lhes ensinassem uma lição e lutassem contra elas. O TEDH considerou que as declarações de Belkacem tinham um conteúdo que promovia o ódio, a discriminação e a violência contra todos os que não fossem muçulmanos. Para o TEDH, um ataque tão generalizado e veemente contradizia os valores de tolerância, paz social e não-discriminação que fundamentam a Convenção pelo que considerou que Belkacem pretendia usar o seu direito à liberdade de expressão para fins claramente contrários ao espírito da Convenção, concluindo que, de tendo em conta a proibição do abuso de direito, Belkacem não beneficiava da protecção da liberdade de expressão.

Noutro caso, em 4 de Dezembro de 2003, o TEDH debruçou-se sobre a condenação do cidadão turco Gunduz a uma pena de dois anos de prisão e ao pagamento de uma multa no valor de 600 000 liras turcas por, num debate televisivo, ter expressado as suas ideias radicais, nomeadamente quanto à democracia e à necessidade de imposição da lei sharia, o que fora considerado pelos tribunais turcos como discurso de ódio. O TEDH, pelo seu lado, considerou que Gunduz participara activamente de uma animada discussão pública representando as ideias extremistas de sua seita e que este debate pluralista procurara apresentar a seita e suas ideias não convencionais, nomeadamente a incompatibilidade de sua concepção do Islão com os valores democráticos, um tema, sem dúvida, de interesse geral. Para o TEDH, as afirmações de Gunduz não incitavam à violência ou ao ódio com base na intolerância religiosa. O mero fato de Gunduz defender a sharia, sem exigir o seu estabelecimento através da violência, não poderia ser considerado um discurso de ódio. E a Turquia foi condenada por ter violado a liberdade de expressão de Gunduz.

Já no caso Féret contra a Bélgica, decidido em 16 de Julho de 2009, o TEDH considerou que a Bélgica não violara a liberdade de expressão consagrada na Convenção ao condenar Féret, dirigente do Partido Nacional, a uma pena de prestação de serviços comunitários de 250 horas e de ineligibilidade para cargos públicos por 10 anos, por incitamento à discriminação racial.

Féret defendia publicamente, entre outras coisas, o repatriamento dos imigrantes e pretendia “opor-se à islamização da Bélgica”, “parar a política de pseudo-integração”, “reservar para os belgas e europeus, a prioridade na assistência social “,” deixar de engordar as associações socioculturais de assistência à integração de imigrantes “ e “reservar o direito de asilo (...) a pessoas de origem europeia realmente perseguidas por razões políticas”.

Para o TEDH, as afirmações de Féret incitavam claramente à descriminação e ódio racial pelo que sua condenação pelos tribunais belgas estava justificada pela necessidade de proteger a ordem pública e os direitos de terceiros numa sociedade democrática.»

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11.7.19

O centrão na Feira




Ontem à noite, na Feira da Charneca da Caparica: stands do PS e do PSD, lado a lado, na esperança vã de angariarem fregueses, no meio de farturas, pipocas, ginjinha, rifas e tiro ao alvo.
(E quem está no segundo? Sim, é ela, a que não conseguiu trazer o diabo.)
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Marcelo o anti-radical



Há anos que venho a dizer que este homem é um perigo – acrescido pela função que exerce. A pouco e pouco a máscara vai decaindo, mas os olhos dos portugueses parecem sofrer de miopia.
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José Castelo Branco




Parece que JCB quer concorrer às Legislativas. Se hesita em quem votar, já sabe…
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A paixão xenófoba de Bonifácio, a questão cigana e o racismo de Estado



«A luta derrotada para a introdução no Censos de uma pergunta sobre as ‘origens étnico-raciais’ dos Portugueses veio trazer a lume uma confusão categorial com potencial racista, aproveitada por Fátima Bonifácio, no PÚBLICO, a 6 de Julho. O escândalo foi tal que, no dia seguinte, o diretor Manuel Carvalho vem explicar porque deixou publicar um texto que “está, no mínimo, nos limites do discurso de ódio, faz generalizações que põem em causa o combate à discriminação racial (…), usa uma linguagem insultuosa para diferentes minorias e coloca ênfase numa radical oposição civilizacional entre os ‘nós’ europeus e os ‘outros’, africanos ou ‘nómadas’. Algo que Rui Tavares analisa como produto de um “neo-reacionarismo que seduz desde criaturas que vicejam nas catacumbas dos comentários da Internet até colunistas de títulos sérios”.

Uma amálgama caótica de ideologias variadas que, todas elas, como é próprio das ideologias, prescindem do rigor científico, falham a realidade vivida no terreno e refugiam-se no discurso, inventando ‘categorias’ que vivem exatamente da falta de rigor e da propositura de níveis de análise que escamoteiam os graves dramas e danos exercidos historicamente na realidade social. O racismo é também isso, a omnipotência do discurso ideológico, que não é um exclusivo do ‘neo-reaccionarismo’ de direita.

Poderíamos supor que a Catedrática Bonifácio delira, mas esse é o discurso ideológico típico nacional, que incensa a ‘civilização ocidental’. Diz a ideóloga que existe uma “entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade”, uma ‘entidade’ que obviamente só existe no nível do discurso académico. E acrescenta: “isto não se aplica a africanos nem a ciganos”. A argumentação que aduz é larvar e não merece reprodução. Acontece que a frase tem um efeito performativo. Se ela, que é Professora catedrática de História e escreve regularmente nos jornais, assim o diz, é porque ‘tem autoridade’ para os excluir da ‘Cristandade’ e da Portugalidade.

Vamos então aos factos: a historiadora não fornece quaisquer dados da sua área de competência e envolve-se na área da antropologia cultural, onde chumbaria na respectiva licenciatura, por incompetência movida pela paixão xenófoba. Eu diria que chumbaria também em História, como colegas seus farão o favor de evidenciar.

Em Portugal, não há qualquer relação entre a história dos ‘africanos’ (entenda-se, negros e não africanos brancos, indianos ou chineses), trazidos pelas caravelas e pela descolonização, e a história dos Ciganos, raptados da Índia por um sheik muçulmano no ano de 1018, escravizados no Médio Oriente e no leste europeu ortodoxo e fugidos para o Ocidente católico no século XIV.

Nessa época, D. Manuel tratava o Rei do Congo por “caro primo”, convidava os filhos daquele a virem para a sua Corte e transformava-os nos primeiros Bispos negros da Cristandade. Entenda-se que esta ‘Cristandade’ é polissémica e nada tem a ver com a ‘cristandade’ de Bonifácio que, em vez de produzir familialismo cristão, produz Suprematismo infernal, Orgulho Branco e exclusão social e mediática dos ‘outros’. A Direita de Bonifácio, desorientada e em pânico, dá a si mesma e dela própria este estrondoso espectáculo ‘civilizacional’ e ‘cristão’.

No século XVI, os Ciganos vindos de Espanha eram alvo de éditos de expulsão (1526), “degredados para sempre para as galés” (1579), com pena de morte, “sem apelação nem agravo” (1592), proibidos de falar ‘geringonça’, usar trajes ciganos e ler a sina (1647), dando início a um projecto de genocídio cultural (galés para os homens; degredo em Angola para as mulheres, sem os filhos; retirada dos filhos antes dos 9 anos para serem postos a servir como órfãos (1647). Esse projecto político assume o discurso manifesto poucos anos depois, propondo-se “extinguir este nome e modo de gente vadia de ciganos, (…) com pena de morte (…) se não tomarem géneros de vida de que possam sustentar-se” (1694), um genocídio cultural retomado em 1800 com a instrução de que se “prendam os que andam vagos pelo reino (…) e os filhos de um e de outro sexo sejam transportados para a Casa Pia e instruídos.”

Já neste século, encontrei em Bragança uma Fundação Oliveira Salazar com o mesmo objectivo: tirar filhos de ambos os sexos a famílias ciganas e reeducá-los num internato ‘cristão’ para que, chegados a adultos, reeducassem os outros ciganos. Para espanto do director, a ‘experiência’ falhou: tinham deixado de ser ciganos e, desenraizados culturalmente, nada queriam com eles.

O projecto racista é paradoxal: os ciganos, escravizados e forçados ao nomadismo, da Índia à Ibéria, são condenados por terem fugido à escravatura que os sedentarizava no leste europeu e agora ’serem nómadas’, dado que são impedidos de se sedentarizarem na malha urbana (ninguém lhes aluga casas ou vende terrenos, ou lhes dá trabalho, de acordo com a Audição feita na Assembleia da República), sendo de novo forçados ao nomadismo em Portugal pela GNR e pelas autoridades, de Viana do Castelo (1993) a Faro (2003). O édito da CM de Ponte de Lima é claro quando pretendeu impor “aos indivíduos de etnia cigana (…) que abandonassem o Concelho no prazo de oito dias e que de futuro apenas permanecessem 48 horas”. Poderiam, como é óbvio, ser retirados dos inúmeros acampamentos dispersos do Minho ao Algarve e realojados em habitação social mas é exatamente contra isso que a populaça se levanta, ameaçando desertar autarcas na eleição seguinte. “Eles não são portugueses”, diz o povo e a catedrática, “eles são ciganos, tribais e inassimiláveis”.

Não há como negar o racismo contra os ‘negros’ mas tal como escrevi em 1997 num Relatório solicitado pelo Governo de então, com base em dados estatísticos comparativos de uma dezena de minorias, os ciganos são, a muito grande distância, “a mais grave e escandalosa de todas as situações de racismo e xenofobia registadas em Portugal”. Leia-se, mais de vinte anos depois: de continuado e escamoteado racismo institucional, popular e, com Fátima Bonifácio, académico, produzindo ao longo das gerações condições habitacionais profundamente negativas para muitos e de exclusão do mercado de trabalho para quase todos; e de fechamento e atraso educacional, uma vez que o nomadismo forçado e a vida em acampamentos nunca foi compatível com a frequência escolar.

Na sua ignorância, a historiadora confunde assimilação cultural com integração culturalmente diferenciada e recusa a realidade do Multiculturalismo, o respeito pela diversidade de um mundo com mais de cinco mil línguas e culturas. A natureza histórica é multicultural, e acentua a diversificação através das migrações voluntárias e forçadas para contextos múltiplos; o Despotismo Imperial é assassino, física, económica e culturalmente – seja ele nazi, soviético ou americano (como os japoneses de Hiroxima e Nagasaki recordarão, para não falar em vietnamitas e, mais recentemente, iraquianos, líbios ou sírios invadidos no seu território, em nome do ‘Século Americano’, da ‘democracia’ e do petróleo).

Não podemos integrar por decreto, como é óbvio, mas podemos integrar por boa governação pós-racista, que promova a discriminação positiva e o combate à ciganofobia institucional com resultados palpáveis no terreno e na vida das famílias - e não apenas no discurso, na ‘educação’ ou na “apresentação pública”. Dados sobre os efeitos da discriminação negativa secular sobre as comunidades ciganas em Portugal, até à actualidade, não faltam. O que falta é decisão e acção política coerentes.»

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10.7.19

Inimigo Público. Mas podia não ser…




«O príncipe Harry e Meghan Markle baptizaram o pequeno Archie, merecendo críticas por parte de Maria Fátima Bonifácio, pois a historiadora considera que só a metade branca de Meghan Markle faz parte da Cristandade, enquanto a metade da nova duquesa de Sussex pertencente, por parte da mãe, ao Animismo, ao Voodoo e aos Jackson 5. Maria Fátima Bonifácio também criticou o príncipe Harry porque é ruivo e por isso faz lembrar irlandeses que são todos duendes alcoólicos.»
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Frank Lloyd Wright




«Oito edifícios do arquitecto norte-americano, entre os quais o Museu Guggenheim e as casas Fallingwater e Taliesin, foram integrados na lista da organização. (…)

Desse pacote constam as casas Fallingwater (construída sobre uma cascata na Pensilvânia entre 1936 e 39), Herbert and Katherine Jacobs House (Wisconsin), Hollyhock (onde hoje funciona um centro de artes em Los Angeles) ou Frederick C. Robie House (Chicago). À cabeça está o Unity Temple, em Oak Park, nos arredores de Chicago (estado do Illinois). Mas a lista inclui naturalmente o emblemático Museu Guggenheim de Nova Iorque (1959), uma das obras que simbolizam o estilo de Wright para o grande público mas que não revela a versatilidade da sua linguagem plástica dos seus anos modernos, e as duas casas-complexo Taliesin — a original, no Wisconsin, e Taliesin West, no Arizona.»
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Francisca Van Dunem e o racismo




A ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, afirmou nesta terça-feira, no Parlamento, que o racismo atravessa “transversalmente” todos os estratos da sociedade portuguesa mas que é essencial ter informação para perceber a sua dimensão. “É redutor e pode ser indutor de erros que cada um de nós fundeie a sua opinião em percepções e na análise da realidade limitada que conhece”, disse a deputados, académicos, activistas e membros de organizações não-governamentais que estiveram esta terça-feira no Parlamento.

E deixou um recado para quem nega a sua existência: “O negacionismo, a persistência na desvalorização do fenómeno conduz ao desastre e à radicalização de posições (...) A maior expressão de preconceito racial consiste, precisamente, na negação deste preconceito.”»

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Migrantes, todos nós



«Que se passa num mundo que, devendo percorrer um caminho na defesa dos direitos, liberdades e garantias de todos e cada um de nós, persegue — com excepções — os migrantes ditos “ilegais”?

Dificilmente posso perceber, a este propósito, o conceito de “migrantes ilegais”. Nem nunca perceberei. E mais, nem gosto, nem suporto ouvir o dito cujo conceito.

O chamado “Ocidente” esqueceu que entrou nos territórios que quis, como quis e, de tantos que desfez, cortando-os mesmo a régua e esquadro, potenciou, dessa forma, conflitos que perduram.

Os ditos “impérios” não pediram licença a ninguém para se instalarem. Ocuparam, mataram, traficaram pessoas e bens. Saquearam e saqueiam em nome de uma dita “civilização” que dizem querer levar ao mundo (a deles, claro). Bem sabemos que não foi assim: as matérias-primas que tanto podiam fazer por cada um dos muitos territórios “intervencionados” são objecto permanente da cobiça ocidental (assim dita).

Migrantes ilegais? Migrante ilegal é uma designação infame de quem se recusa hoje a receber quem foge da guerra e da fome.

Mas nada, mesmo nada, parará a fome e o sofrimento, tal como as mãos não param o vento.

Todos fomos migrantes em qualquer tempo, por muito recuado que seja. A história da humanidade é uma história de migrações. Mas quem quer saber disso, nos dias de individualismo e egoísmo que correm?

No mundo ocidental, onde a realidade das redes sociais supera tudo e a indiferença avança, numa solidão não assumida em modo virtual, apesar do apelo de Steve Wozniak, fundador da Apple, para que: “Deixem o Facebook para sempre.”

A humanidade parece estar em retrocesso: é Malta que recusa a entrada de um navio humanitário com migrantes, é Itália que não dá permissão para que dois barcos, com migrantes, atraquem; um barco com migrantes capota ao largo da Tunísia, deixando 82 desaparecidos.

O mar mediterrânico manchado de sangue e indiferença.

Perante tudo isto, são muito infelizes as intrigas deste burgo. Que interessam? Há muito para além das miseráveis discussões de listas partidárias — sejam de que partido forem —, há todo um mundo em convulsão, e quem, de tantos, olha para ele para além de si próprio?

Torna-se insuportável toda esta indiferença!

Felizmente, há quem resista e estenda, num gesto simples, uma mão, arriscando a própria vida.

Não, não é auxílio à imigração ilegal.

É humanidade!»

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9.7.19

Campeãs do Mundo de Futebol não querem ir à Casa Branca




Muito bem!
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Espanha: não aprendem a «Geringonçar»…




«Um dia depois de o PSOE ter garantido com todas as letras que quer governar sozinho, o chefe do Governo espanhol, Pedro Sánchez, reuniu-se esta terça-feira com o líder do Unidas Podemos, Pablo Iglesias, para que este apoiasse no parlamento o seu governo. A quinta reunião desde as eleições de Abril fracassou e a possibilidade de legislativas antecipadas é cada vez maior.

O principal obstáculo ao apoio do partido de Iglesias a um governo PSOE é precisamente a sua entrada ou não no executivo espanhol. Sánchez quer apenas um “governo de cooperação, não de coligação”, enquanto Iglesias não abre mão de assumir pastas governamentais. E já garantiu por inúmeras vezes que não vota a favor da investidura de Sánchez se o Unidas Podemos não fizer parte do Governo.»
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João Gilberto



Velório no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
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Podemos? Claro que podemos!



«À maneira de Fanon: sou mulher, sou negra. Não sou vítima nem brinquedo. Não sou um objeto de proteção ou de defesa condescendente. Não sou uma potencialidade de algo, sou plenamente o que sou. Reconheço-me um só direito: o de exigir do outro um comportamento humano. Um só dever. O de não renegar a minha liberdade nas minhas escolhas.

O racismo existe em Portugal. A sua instrumentalização, independentemente dos motivos subjacentes, é também uma das suas faces. Num momento em que se lança um debate, eventualmente interessante, sobre a discriminação positiva para as minorias étnico-raciais, nada como um artigo de opinião naturalizando a discriminação.

Não estranhei a opinião. Não é nada de novo. Faz parte do meu quotidiano. Do quotidiano de muitos africanos, ciganos; enfim, de muitos seres humanos.

Um parêntesis para algumas clarificações. As opiniões individuais práticas e racistas não me incomodam. Preta! Não, não considero ofensivo. Não, não peço desculpa por não considerar ofensivo. Sou absolutamente indiferente a essa alienação cromática de considerar branco como positivo e negro como negativo. Talvez pelo conhecimento de um dos mais belos textos de Agostinho Neto que cito sem pretensão de rigor: se ser branco é chicotear negros, se ser negro é ser chicoteado, então eu prefiro ser negro.

Não consigo considerar ofensivas as considerações a propósito dos “africanos”, sou absolutamente alheia à alienação geográfica de quem porventura ignora que também foi por decreto que muitos dos africanos que residem em Portugal deixaram de ter a nacionalidade portuguesa. Normalmente e felizmente também ignoram o que é o continente africano, a sua variedade, as suas culturas, os seus contributos para a humanidade. Também ignoram que muitos africanos são eurodescendentes, alguns godos, outros germanos e ainda outros simplesmente desterrado-descendentes (não, não ri enquanto escrevi).

Dou de barato que muitos dos pretos, perdão, africanos portugueses, são segundas e terceiras gerações e se tiverem ascendentes das antigas colónias, perdão, províncias ultramarinas, carregam em si mais de 500 anos de cultura portuguesa.

Fecho o parêntesis evitando repetir o que décadas de lusotropicalismo deixaram como marca irrefutável: o português (nós, porque também o sou) foi o colonizador bonzinho, destemido, aberto a novas culturas e gentes que catalogou numa artística palete de cores, e que somos todos amigos, amantes do fado e do Benfica (e é verdade... tenho muitos amigos brancos, perdão, europeus, gosto de fado de Coimbra e sou benfiquista).

Sem querer ser maniqueísta mas aproveitando despudoradamente as generalizações feitas no artigo, a opinião da articulista reflete a representação social e cultural do negro em Portugal, um (in)consciente coletivo solidário com os mitos e os arquétipos que associam o negro à obscuridade — negros são selvagens, estúpidos, analfabetos, inferiores.

Mas neste (in)consciente coletivo existe, também, algo que é familiar a todos os negros em Portugal que, por um motivo ou outro, não cabem nos estereótipos citados no artigo. Deixam de ser verdadeiros negros para serem considerados evoluídos. A cor torna-se equívoco, de preto só a aparência, e essa dilui-se rapidamente. Talvez seja o pior tipo de racismo; se o negro bem-sucedido perde a cor negra, temos uma sociedade que reafirma a sua superioridade cromática eliminando a cor do outro, reafirmação que visa e torna possível a manutenção do preconceito.

Imaginemos por um segundo que a articulista deu aulas de História... Não preciso de imaginar, basta-me voltar ao 11.º ano e lembrar um professor de Filosofia que abriu a primeira aula afirmando-se racista. Vá-se lá saber porquê, não gostou da resposta, “Eu também. Não gosto de estúpidos”, e fui obrigada a anular a matrícula... Eu e vários colegas europeus!

Mais violenta do que a bastonada da polícia é a paulada do professor que se admira de ter um negro como melhor aluno da turma, transmitindo a ideia de anormalidade ou milagre intelectual, ou, do colega que aceita perfeitamente a tareia no basquete, mas não no xadrez.

Não desperdicemos as raras ocasiões em que o racismo se torna visível com altercações estéreis ou incidentais. Tipo: pululam portugueses europeus com quem não partilho os mais elementares valores morais e não têm sequer ideia do que é civismo, ou, os portugueses europeus não descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789, aliás, não fossem os europeus anglófonos imporem pela força o fim do tráfico, ainda continuariam a traficar pessoas. Forte, não é? Pois é, mas é incidental e estéril.

O problema não é conhecer a realidade, mas transformá-la. Por melhor que seja, nenhuma política resiste aos preconceitos de quem a executa ou dos seus beneficiários. O diferencial de tratamento por motivos étnicos, de género, de opção sexual e outros continuará presente ou latente se não trilharmos caminhos que são longos, de preferência resistindo às tentações de condescendência, de mitigação ou exacerbação, consoante os interesses.

Fugindo ao politicamente correto da reafirmação dos direitos humanos para um grupo vulnerável, o desafio que temos em mãos é o da eliminação do preconceito. Preconceito que tolhe e envenena.

Um trabalho titânico aguarda todos os que queiram fazer passar os seus preconceitos pelo crivo da objetividade. Negros ou brancos. Uma responsabilidade que é mútua. Nunca na perspetiva do branco que vai dizendo vamos incluir os pretos, vamos elevá-los à condição humana ou do negro que vai dizendo os brancos são todos racistas e inumanos, mas num processo repartido de respeito e reconhecimento do outro. Mas podemos? Claro que podemos.»

Antiga ministra da Justiça e da Administração Interna de Cabo Verde
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8.7.19

Patrimónios




Somos tão paroquiais que já festejámos cem vezes que Mafra e o Bom Jesus de Braga passaram a Património Cultural e Natural Mundial da UNESCO. E, vá lá, também se falou de Paraty porque foi colónia nossa.

Mas alguém leu ou ouviu algo sobre todos os 35 casos nomeados para decisão em Baku, entre 30 de Junho e 10 de Julho? Claro que não! O importante é um rapazinho que dá chutos na bola, com nome de gato de desenhos animados, que valeu milhões e que enche telejornais.

Ficam dois exemplos maravilhosos: Bagan, na Birmânia, e Jaipur, na Índia.
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A praga dos compradores de automóveis



Este contentor da Junta de Freguesia de S. Domingos de Benfica destina-se a receber roupa e afins. Ontem passei por ele e vi uma mulher a tomar nota do número de telefone do comprador de carros. Parei e ela comentou: «Tenho um automóvel velho para vender e, como é a Junta a comprar, deve ser coisa séria». Lá lhe expliquei que estava enganada, ela abriu a boca, agradeceu e seguiu o seu caminho. 

Já pedi aos senhores da Junta que arranquem aqueles anúncios e que, no mínimo, pintem que é proibido afixar propaganda. Ou, mesmo involuntariamente, estão a enganar os fregueses…
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Como é que se diz ingratos em grego?



«Há muitas explicações para a derrota eleitoral do Syriza. Vão desde o acordo sobre o nome da Macedónia do Norte até à má gestão do combate aos mortíferos fogos de 2018, passando pelas acusações de ter prometido resistir à União Europeia e no final acabar por negociar com esta um terceiro resgate à Grécia. Mas, na realidade, a Alexis Tsipras o eleitorado fez pagar o ter sido o rosto da austeridade, necessária mas brutal num país que é mais pobre do que durante anos as estatísticas nacionais fizeram crer. E Kyriakos Mitsotakis surge como o rosto da esperança, um político em teoria sem culpas na crise, se bem que o mesmo não se pode dizer da Nova Democracia, que ganhou com cerca de 40% e que graças ao bónus de deputados para o vencedor deverá ter maioria absoluta.

Entrevistei Tsipras em finais de 2017, quando ele já olhava com ansiedade para o ano que ia entrar e que significava para a Grécia a saída do período sob assistência financeira estrangeira. Convidado de uma reunião em Lisboa dos socialistas europeus, o político que veio da extrema-esquerda dizia ter o governo de António Costa como modelo. Pretendia manter as contas públicas sãs, mas não deixar de olhar para a questão social. Precisava era de tempo, para mostrar que depois do fim da austeridade o Syriza seria capaz de mostrar fidelidade aos que votaram nele para tornar a Grécia menos desigual.

O tempo não foi suficiente. Um ano sem a tutela de fora permitiu que Tsipras relançasse a economia e reduzisse o desemprego. Mas soube a pouco aos gregos. Os jovens não apreciam trabalhos mal pagos, as famílias de classe média revoltaram-se contra a pesada fatia dos sacrifícios que recaiu sobre elas, pois aos magnatas gregos sempre foi difícil obrigar a pagar os impostos que deviam.

Mitsotakis promete manter as contas equilibradas mas fazer mais pelo crescimento da economia, de modo a poder aliviar os impostos. Beneficiou do desgaste de Tsipras e também de a Nova Democracia nunca ter sido punida como o antigo Pasok pela governação irresponsável de há uma década que levou aos pedidos de resgate. Vai estar agora muito sob observação, tem de mostrar resultados. Mas é um convicto europeísta e isso é bom.

Curiosamente, o novo primeiro-ministro vir de uma das três grandes dinastias políticas gregas (pai antigo primeiro-ministro, irmã ex-ministra dos Negócios Estrangeiros, sobrinho atual presidente da Câmara de Atenas) não gerou receio no eleitorado. A personalidade cativou, assim como as garantias de combater o nepotismo. E, afinal, a Nova Democracia é um partido conservador e boa parte da sociedade grega é nacionalista e tradicionalista.

Quanto ao Syriza, os 30% de votos mostram que veio para ficar enquanto partido de poder. Tsipras fez bem quando se libertou de Yanis Varoufakis, economista-estrela que chegou a ser ministro das Finanças. Optou pelo pragmatismo, preferindo negociar com Angela Merkel do que acusar a chanceler alemã de todos os males da Grécia. Aliás, tem com Merkel em comum o empenho em ajudar a resolver a crise dos refugiados, que têm a Grécia como porta de entrada e a Alemanha como destino. E, como mostra a sua proximidade com o primeiro-ministro português, está cada vez mais inserido no campo da social-democracia europeia. Talvez hoje veja os gregos como ingratos, não quer dizer que não vá voltar a tentar conquistá-los.»

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7.7.19

«Observador» versus «Público» – o mundo está roto


… e o Observador sabe muito!


«Preparava-me eu para escrever um artigo sobre a necessidade de introduzir quotas étnico-raciais, quando me deparei com um manifesto racista de Maria de Fátima Bonifácio, publicado no jornal Público, com o título ‘Podemos? Não, não podemos’.»

Marta Mucznik
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Um mundo governado por bestas



«Era uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá ok?» - foi a reacção de Bolsonaro à notícia da morte de João Gilberto. 

(Daqui)
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Como eles se divertem



«A 15 de maio, seis políticos desconhecidos de quase todos os europeus confrontaram-se num debate. Nico Cué, do Partido da Esquerda Europeia, Ska Keller, do Partido Verde Europeu, Jan Zahradil, da Aliança dos Conservadores e Reformistas da Europa, Margrethe Vestager, da Aliança dos Democratas e Liberais pela Europa, Manfred Weber, do Partido Popular Europeu, e Frans Timmermans, do Partido Socialista Europeu. Todos eles eram candidatos a presidente da Comissão Europeia e aquele debate servia para decidirmos o nosso voto. Três dados importantes: nem os seus partidos são realmente partidos, nem eles eram realmente candidatos, nem o nosso voto tinha alguma coisa a ver com o assunto. Esta é a beleza da democracia europeia: nada é o que realmente diz ser porque, bem vistas as coisas, nem a democracia europeia é realmente democrática nem é realmente europeia. O fascínio deste jogo que entusiasma algumas elites políticas e mediáticas é fazer as coisas sem nunca realmente o serem. Por saber que se disser que não o são perde a sua legitimidade e por saber que se o forem perde a sua exequibilidade.

Quem venceu o debate? Não sei, porque, descrente me confesso, não o vi. Mas sei quem ganhou a eleição: Ursula von der Leyen, que nem sequer lá foi. Porque o debate nem chegou a ser uma charada para enganar papalvos. Tudo isto é, como eram as democracias parlamentares do século XIX, dirigido a um pequeno grupo de aristocratas e burocratas que faz da política o seu divertimento ou função. Ursula von der Leyen foi escolhida pela mesma razão porque foram escolhidos Juncker e Barroso: faltarem-lhe todas as qualidades para ser líder. Só assim os que a escolheram podem continuar a dirigir este teatro de sombras. Nele, todos brincam à democracia e, no fim, quando acaba a encenação, o Presidente francês e a chanceler alemã decidem. Esses, justiça lhes seja feita, não fingem nada. São os únicos verdadeiros democratas nesta história: respondem à vontade dos seus eleitores. Não lhes chamamos nacionalistas porque eles precisam da União como extensão do poder nacional. São mais ambiciosos do que Orbán e Salvini, que apenas lhes condicionam os passos. Neste caso, até condicionaram bastante.

António Costa, que durante a campanha andou a brincar às alianças políticas, fingindo que as famílias ideológicas se sobrepunham ao jogo entre potências, quase ocupou um cargo europeu que recusou e quase conseguiu eleger um socialista para liderar a Comissão. E deixou um aviso: a Alemanha e a França não devem subavaliar a importância dos deputados. Repare-se que não falou dos eleitores que elegeram aqueles deputados. Para esses, Von der Leyen é tão legítima como Timmermans, Vestager ou Weber. São apenas nomes. Ninguém fora de Bruxelas se revoltará com a troca. No fim, temos duas consolações. A primeira é ver Christine Lagarde passar do FMI para o BCE. Sabemos que mostrou, depois de esmagar países em crise com doses cavalares de austeridade e juros de assalto, sincero arrependimento. O arrependimento é importante em qualquer religião e o europeísmo não foge à regra. E Lagarde não é Weidmann, o candidato alemão que estava na calha. A segunda é perceber que os Estados periféricos ainda têm algum poder. Espanha, por exemplo, conseguiu impedir que três eurodeputados catalães tomassem posse. Ao contrário de tantos que são acusados de crimes graves. Como não amar a “democracia europeia”?»

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