18.3.23

Vasos

 


Vaso Arte Nova de faiança dividido em lóbulos, com borboletas e flores salsa de vaca. França, cerca de 1900.
Émile Gallé.

Daqui.
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Sondagem Legislativas

 

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O que vêem os seus olhos, almirante?

 

«O que vêem os seus olhos, almirante? «Mais do que dirigir-se às suas tropas, o almirante Gouveia e Melo pretendeu falar ao país. Quem manda sou eu, eu é que decido, não admito tentativas de insubordinação, de desobediência, de indisciplina. Se o barco está podre, mas navega, então navegue-se.

Esta é a conclusão que se pode retirar das intervenções públicas do chefe do Estado-Maior da Armada a propósito do caso dos quatro sargentos e nove praças que se recusaram a embarcar numa missão de acompanhamento de um navio russo, por considerarem que não existiam condições de segurança para a efetuar.»

Continuar a ler AQUI.
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Ambição sem princípios

 


«Eu não quero saber das evidentes ambições presidenciais do almirante Gouveia e Melo. É um cidadão português nos seus plenos direitos e, por isso, se o entender, pode concorrer. Mas já tenho muito contra um militar chefe do Estado Maior da Armada a conduzir uma campanha presidencial usando e abusando do seu cargo. Esta semana mostrou que a sua campanha está em curso e que não se coíbe de usar o cargo para obter notoriedade e vantagens.

Tudo isto se soma a uma semana muito má para as Forças Armadas Portuguesas. Dizendo isto, a reacção mais comum dos portugueses é achar irrelevante o que acontece nessa área, porque existe um sentimento de indiferença e de inutilidade sobre as Forças Armadas. Ano após ano, como efeito de várias medidas como o fim do serviço militar obrigatório, a farsa da sua substituição por um dia mais ou a menos de diversão chamado pomposamente Dia da Defesa Nacional, a profissionalização das Forças Armadas com orçamentos escassos, a que se soma o processo de deslegitimação dos militares um pouco por toda a Europa e que só a guerra da Ucrânia estava a reverter. Uma maioria dos portugueses acha que as nossas Forças Armadas não servem para nada e que o dinheiro que com elas se gasta é sempre desperdício. Quando se somam notícias sobre o estado operacional do material militar como aconteceu recentemente com os tanques Leopard, o acidente mortal com explosivos armazenados e agora com um navio defeituoso na Madeira, então a indiferença de fundo e a sensação de inutilidade é reforçada mais uma vez.

Mas não é o estado de degradação do equipamento e armamento, veículos e navios, quartéis e outras instalações militares que é o mais grave nesta história. É a indisciplina revelada pelos marinheiros que se recusaram a sair num navio que estava em más condições. A insubordinação é uma das violações mais graves do ethos militar e, como tal, deve ser punida, e por muito que os marinheiros possam ter razão sobre o estado do navio, deviam cumprir ordens mesmo com o risco inerente.

Mas, mais grave do que isto é ver o almirante Gouveia e Melo chamar as televisões para mostrar a sua reprimenda aos marinheiros insubordinados, algo que, que eu saiba, é inédito num comandante militar ainda por cima num caso grave de indisciplina. Uma matéria que exigia a maior das discrições e que é suposto os militares não tratarem em público. Logo de seguida, o almirante fez ainda mais estragos na sua reputação e na da arma que dirige: afirmou que o que acontecera tinha como objectivo prejudicar as suas expectativas presidenciais, traduzidas nas sondagens, e que tal tinha a ver com a organização do PCP nas Forças Armadas. Exactamente o que nunca deveria ter dito, porque se coloca no mesmo plano dos insubordinados, eles actuando às ordens de um partido político, ele às ordens da sua ambição pessoal.

Como estamos numa época de tudo à balda, a única coisa que interessou a quem pega neste assunto foi, na lógica situação-oposição, cair em cima do Governo e, para o fazer, acaba por desculpar a insubordinação – justificando-a com o mau estado do navio. Mas o almirante fez pior e, se vai continuar a usar o cargo para promover ou defender a sua candidatura presidencial, devia abandonar as funções ou ser demitido por alguém.

Para um militar, esta ambição sem princípios é inaceitável e perigosa para a democracia. A pergunta que, muito publicamente, com as câmaras à espreita, fez – “que interesses estão a defender?” – respondeu retoricamente: nem os “vossos”, nem os da Marinha. Mas esqueceu-se de acrescentar “nem os meus”.»

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17.3.23

Cafés

 


Se já esteve em Buenos Aires e não foi ao CAFÉ TORTONI, não tem desculpa!
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Elis Regina – Seriam 78

 


Elis Regina nasceu em 17 de Março de 1945 e morreu com apenas 36 anos. 

Viveu os «anos de chumbo» da ditadura brasileira e não lhes passou ao lado ao participar em vários movimentos culturais e políticos. Uma das suas canções – «O bêbado e o equilibrista» – funcionou como uma espécie de hino pela amnistia de exilados brasileiros. Notável também, nessa mesma linha, «Aos nossos filhos». E como esquecer o seu ícone «Águas de Março»?








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Valha-nos São Francisco Xavier com urgência

 


«A notícia da demissão em bloco dos chefes de equipa de urgência de medicina interna do Hospital São Francisco Xavier dá-nos alguma esperança. Talvez haja médicos a menos no bloco operatório, mas continua a haver bastantes nas demissões em bloco. Já não é mau. Sempre é uma notícia em que podemos ler as palavras “médicos” e “bloco” juntas. Refrescante. Além disso, ninguém notou ainda que a precariedade dos serviços do São Francisco Xavier é, na verdade, uma bonita homenagem a São Francisco Xavier. Em primeiro lugar, porque São Francisco Xavier fez voto de pobreza, pelo que a abundância de recursos no seu hospital até poderia melindrá-lo. Em segundo lugar, porque São Francisco Xavier morreu de uma febre, maleita suave e de tratamento relativamente fácil que ainda assim não foi tratada, risco que também corre quem hoje se dirige ao São Francisco Xavier. Finalmente, porque São Francisco Xavier foi sepultado em Goa, mas o seu úmero direito foi transportado para Macau, onde está exposto num relicário de prata — uma subtil lembrança de que um paciente pode estar num sítio mas ter urgência de ortopedia a centenas de quilómetros.

Já o encerramento nocturno da urgência pediátrica do Hospital de Torres Vedras e o fecho da urgência pediátrica do Hospital de Loures ao fim-de-semana podem ser vistos como uma oportunidade. Hoje é bastante raro ocorrerem chatices; o mais das vezes, são oportunidades. O presidente da Liga dos Bombeiros, infelizmente, não tem o paladar educado para detectar oportunidades e diz que não tem capacidade para andar a transportar doentes de um hospital para outro a este ritmo. Mas quem está atento aos efeitos positivos das dificuldades percebe bem que este poderá ser o futuro de Portugal. Neste momento, não temos grande capacidade para receber e tratar doentes, mas estamos cada vez mais especializados no transporte de doentes. Há que investir nisso com convicção. A minha proposta é encerrar todos os hospitais e despedir todos os médicos e enfermeiros. E investir o dinheiro poupado em ambulâncias e motoristas. Os doentes passam a dirigir-se a uma central de transporte e apanham uma ambulância para o hospital espanhol mais próximo. Nessas unidades hospitalares os nossos doentes até podem ser observados por médicos portugueses, que já emigraram para lá em busca de melhores condições. Os motoristas aproveitam e abastecem as ambulâncias em Espanha, onde o combustível é mais barato. O Ministério da Saúde extingue-se e passa a ser uma Secretaria de Estado do Ministério dos Transportes. E é um modo de combater a desertificação do interior, porque as pessoas talvez prefiram passar a viver cada vez mais próximo do sistema de saúde espanhol. São só vantagens.»

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Daniel Sampaio sobre bispos

 


Expresso, 17.03.2023

A entrevista na íntegra:


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16.3.23

Mais uma taça

 


Uma rara taça de prata Arte Nova, 1901.
Designer: Kate Arris.
Fabricante: William Hutton & Sons, marcado para Connells.


[Mais informação aqui.]
Daqui e não só.
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16.03.1974 – O falhanço das Caldas

 


Há 49 anos, o golpe falhado das Caldas foi um passo importante para a queda da ditadura.

Em 2014, por ocasião do 40º aniversário dos acontecimentos, o Diário de Notícias ocupou duas páginas com vários textos sobre «A coluna rebelde que Spínola e Costa Gomes impediram de ocupar o Aeroporto de Lisboa». Excertos:

«A imagem que ficou na memória dos portugueses sobre a intentona tentada pelo Regimento de Infantaria N. º 5 das Caldas da Rainha no dia 16 de Março de 1974 foi a de uma coluna militar que ficou parada às portas de Lisboa. Ilustrava perfeitamente o golpe militar frustrado, que só teria o seu epílogo a 25 de Abril, e que logo deu origem a uma anedota bastante popular. A de que os camiões com 200 militares que iriam ocupar o Aeroporto de Lisboa teriam parado às portas de Lisboa porque o então presidente da República, Américo Tomás, ameaçou que o primeiro a chegar à capital seria obrigado a casar com a sua filha. (...)
A anteceder o 16 de Março tinham-se verificado mais dois factos políticos que fizeram o presidente do Conselho hesitar: a 22 de Fevereiro dera-se o lançamento do livro Portugal e o Futuro, do general Spínola, que defendia uma solução política e não militar para a guerra no Ultramar; a 14 de Março, o Governo demitira os generais Spínola e Costa Gomes dos cargos de chefe e vice- chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, devido à ausência no evento em que as chefias militares se solidarizavam com Caetano, numa cerimónia definida como representativa da “Brigada do reumático”.
A demissão dos dois generais espoletou a Intentona das Caldas e criou esse acto militar falhado.»

A nota oficiosa difundida pelo governo foi esta:

«Na madrugada de Sexta-feira para Sábado, alguns oficiais em serviço no Regimento de Infantaria 5, aquartelado nas Caldas da Rainha, capitaneados por outros que nele se introduziram, insubordinaram-se, prendendo o comandante, o segundo comandante e três majores e fazendo em seguida sair uma Companhia autotransportada que tomou a direcção de Lisboa.

O governo tinha já conhecimento de que se preparava um movimento de características e finalidades mal definidas, e fácil foi verificar que as tentativas realizadas por alguns elementos para sublevar outras unidades não tinham tido êxito.

Para interceptar a marcha da coluna vinda das Caldas foram imediatamente colocadas à entrada de Lisboa forças de Artilharia 1, de Cavalaria 7 e da GNR. Ao chegar perto do local onde estas forças estavam dispostas e verificando que na cidade não tinha qualquer apoio, a coluna rebelde inverteu a marcha e regressou ao quartel das Caldas da Rainha, que foi imediatamente cercado por Unidades da Região Militar de Tomar.

Após terem recebido a intimação para se entregarem, os oficiais insubordinados renderam-se sem resistência, tendo imediatamente o quartel sido ocupado pelas forças fiéis, e restabelecendo-se logo o comando legítimo. Reina a ordem em todo o País.»

Alguns dias depois (em 22 de Março), na sua última «Conversa em Família», foi assim que Marcelo Caetano se referiu ao golpe das Caldas:


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Habitação

 

Acabei de ouvir António Costa anunciar uma série de percentagens em benefícios a atribuir a determinados cidadãos, depois da reunião de hoje do conselho de ministros.

Acredito que aqueles que delas beneficiarão possam ter ficado aliviados. Mas confesso que não era o tipo de comunicação que esperava de um PM. Admito que o problema seja meu.
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O fosso cada vez mais fundo

 


«Portugal é cada vez mais um país de contrastes, e não estamos a falar de Norte/Sul, litoral e interior, aí a diversidade paisagística e geográfica aparece como fator positivo. País de contrastes sem nada propiciar de positivo. Mais à frente, nas páginas deste jornal, vamos ler duas notícias que, numa sociedade justa, seriam contraditórias. E não deixam de o ser.

No setor automóvel, a venda de carros de luxo registou em 2022 um aumento de 22% em relação ao ano anterior. No topo das preferências dos portugueses, pelo menos dos que têm dinheiro para os comprar e manter, estão os Porsche. Mas os Bentley, Maserati, Aston Martin, Ferrari e Lamborghini não ficam nos stands a ganhar pó por falta de compradores. Enquanto isso, ficamos a saber que a ASAE fez mais um raide pelas grandes superfícies. Em causa a escalada de preços: está a transformar a vida dos portugueses (dos desprovidos de bens para comprar Porsches e Bentleys) num exercício difícil e diário. Chegar ao fim do mês, pagar as despesas obrigatórias e ainda pôr comida na mesa todos os dias, são cada vez mais os que não conseguem tal feito.

É esta a contradição. O luxo faraónico e a pobreza quotidiana. Nada de novo. Sempre assim acontece quando rebenta uma crise. Os pobres declinam mais pobres, os ricos prosperam mais ricos. Esta dualidade não surpreende, mas continua a indignar as pessoas de límpida consciência. A indignar e a preocupar. Trilhamos, parece, um caminho sem retorno, de crise em crise. Acaba uma, respiramos, desponta outra. Em paralelo, a sociedade revela-se mais desigual, o fosso cavado entre os que podem tudo e os que nada têm torna-se profundo, intransponível. Uma realidade, dir-se-ia, própria de países pouco desenvolvidos - não de uma democracia consolidada, num país da União Europeia.»

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15.3.23

Taças

 


Taça com tampa e colher, em prata, esmalte e pedras, 1902-1904.
Arquitecto e designer: Charles Robert Ashbee.


Daqui.
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Igreja e pedofilia

 



A intervenção mais esclarecedora sobre o tema, que vi e ouvi até agora.
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Descer o IVA? Olhem para Espanha

 



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O país do assim-assim, cá se vai indo, nunca pior

 


«Regresso, ainda, à entrevista do Presidente da República - ou terá sido do analista e comentador Marcelo Rebelo de Sousa? - a propósito dos seus sete anos em Belém. De entre as várias frases duras e diretas, ditas ao governo e à oposição, o entrevistado - talvez, no final, chegue a alguma conclusão sobre quem esteve, afinal, naquela cadeira - esclarece, de forma analítica, a diferença entre uma "maioria aritmética" e uma "maioria política". Considera que, nesta altura, dizem as sondagens, há uma maioria "aritmética" de direita, mas essa mesma direita não foi ainda capaz de gerar uma "maioria política" correspondente. Muito por culpa do partido "liderante do hemisfério", no caso, o PSD. Marcelo entende que só quando existir uma "grande distância" entre o maior partido da direita e os restantes, pode começar a falar-se em "maioria política". Ou seja, o PSD terá de estar mais forte e mais robusto, nas sondagens, deixar o Chega e a IL mais longe, ser claramente a força dominante. Tal como aconteceu no outro "hemisfério" com o PS e as condições que levaram à formação da geringonça.

Estamos, portanto, numa paz podre, de calculismo, tática, deixa-andar; "se por um lado" a maioria política "ainda" não existe, "por outro lado" a maioria aritmética não se mostra "ainda" como alternativa. Por outras palavras, a "maioria requentada e cansada", o governo que "perdeu um ano", vai continuar a governar, tranquilamente. E, avisa o entrevistado, "já" não faltam "três anos e meio, mas dois anos e meio porque o último ano é de campanha eleitoral". E eis que, o Presidente - ou o analista - assume assim, de forma cândida, que seja qual for o governo, vai passar o último ano de mandato a "fazer campanha".

Ainda estas e outras palavras faziam eco e, nos Açores, a "quase geringonça" - porque prevê um acordo de governo com três partidos e um apoio parlamentar com mais dois, acordo que, depois, passou apenas a um partido e a um deputado do Chega que se tornou independente - abanava com a governação insular.

O governo PSD/CDS/PPM está, agora, sem suporte maioritário no parlamento, depois de um deputado independente e outro da Iniciativa Liberal terem "rasgado" o acordo de suporte parlamentar. A consequência foi, para já, o Governo Regional considerar que tem todas as condições para continuar, e reclamar-se como a força da "estabilidade", mas nem por isso propôs uma moção de confiança, para clarificar as águas.

E, do outro lado, a nova maioria parlamentar, não só não apresenta nenhuma moção de censura, como diz que este não é o tempo para "eleições antecipadas". Para o caso dos Açores, o mesmo analista poderia utilizar a fórmula ao contrário. "Ainda" há uma maioria política, apesar de "já" não existir uma "maioria aritmética".

Entre a aritmética e a política, o "já" e o "ainda", a resistência de quem está no poder e a cobardia de quem se encontra na oposição, em Ponta Delgada como em Lisboa, a política, a alta política, vive bem no charco, no pântano, nas meias-tintas, no assim-assim.

E cá se vai andando, nunca pior, diz o povo, "eles são todos iguais".

Num tempo marcado por populismos emergentes, extremismos à la carte, policiamento da linguagem, sindicatos inorgânicos, movimentos criados a partir das redes sociais, sem rosto, sem regras e, por isso, sem responsabilidade, o pior que pode acontecer a uma democracia que se quer viva, pluralista, forte e robusta, é permitir esta sensação de "deixa andar". Quando se adormece no pântano, pode acordar-se atolado.»

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Maldade, maldade ...

 

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14.3.23

Pergunta inconveniente

 


– Teve uma avaria. Está numa oficina à espera de verba para ser reparado.
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Se hoje é o Dia Internacional da Matemática…

 


Poesia matemática

Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
"Quem és tu?", indagou ele
em ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
frequentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.

Millôr Fernandes
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14.03.1975 – «O dia em que o capitalismo se afundou»

 


As semanas que se seguiram ao 11 de Março foram naturalmente ricas em acontecimentos e convulsões. Três dias depois, para além de ser criado o Conselho da Revolução, deu-se a nacionalização da Banca e dos Seguros.

Da imprensa da época:

«As nacionalizações são saudadas à esquerda e não são contrariadas à direita. O PPD apoio-as, aliás, embora previna que “substituir um capitalismo liberal por um capitalismo de Estado não resolve as contradições com que se debate hoje a sociedade portuguesa”.
Mário Soares mostra-se mais expansivo. Eufórico mesmo, considerando aquele “um dia histórico, em que o capitalismo se afundou”. Dirá, a propósito o líder socialista, num comício: “A nacionalização da banca, que por sua vez detém (...) a maior parte das acções das empresas portuguesas e, ao mesmo tempo, a fuga e prisão dos chefes das nove grandes famílias que dominavam Portugal, indicam de uma maneira muito clara que se está a caminho de se criar uma sociedade nova em Portugal”.»

(Adelino Gomes e José Pedro Castanheira, Os dias loucos do PREC, edições Expresso / Público, 2006, p. 28.)
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Em busca da utopia perdida

 


«O tempo da solidariedade parece ter sido perdido para sempre. Vivemos tempos de desespero, ignomínia e violência. Vivemos esmagados pela opressão de regimes autoritários, laicos ou religiosos, ou na submissão aos regimes democráticos completamente manietados pela ditadura dos mercados. Os primeiros oprimem sem contemplações os indivíduos, destruindo-lhes as ideias e veleidades de liberdade criativa ou vivencial, os segundos escravizam por meio da pobreza. Os primeiros criam campos de concentração e reeducação, os segundos campos de miséria. Não há dúvida de que a vida nas democracias liberais é preferível, mas que não se corra o risco de confundi-las com a verdadeira liberdade. Não são utopias, são pouco mais que miragens.

Esta configuração geopolítica não é nova, mas as rápidas transformações socioeconómicas têm tornado o equilíbrio entre estas concepções opostas cada vez mais frágil. Ditaduras e regimes opressivos usam os grilhões da economia neoliberal para aperfeiçoar os seus mecanismos de submissão. Democracias neoliberais flirtam despudoradamente com o autoritarismo das ditaduras. Trump, Bolsonaro e Órban, só para citar os mais caricaturais líderes políticos do nosso tempo, sonharam e continuam a sonhar com o poder absoluto de alguns ditadores. Na verdade, tentaram ativamente obter o controle total dos seus países e não atingiram os intentos pela falta de maquiavelismo dos seus planos.

Evitaram-se danos irreversíveis mas a batalha mal começou. As forças motoras deste desequilíbrio estão à espreita em todas as democracias neoliberais, aperfeiçoando a sua metodologia demagógica e sofista, procurando nos manuais do nazi-fascismo e nos escritos de Lenine, Staline e Mao Tsé Tung os instrumentos de hipnose coletiva. O objetivo é sempre confundir e criar um conjunto de simplificações caricaturais que expliquem a generalidade dos problemas das democracias existentes, sem qualquer compromisso com a verdade factual. O que importa é a verosimilhança, a aparência de uma conexão causal entre factos que são arbitrária e convenientemente selecionados.

Nestes tempos, a fórmula de Goebbles é a maxima oracular: repetir a mentira para que as massas pensem que é a verdade. E os motes específicos de venda são bem conhecidos: a austeridade é o único plano credível para a prosperidade económica; as tragédias e/ou pandemias não o são, ou, quando o são, atingem a todos “democraticamente”; as invasões não são guerras; os nazistas e os extremistas são os outros; os agressores são os salvadores e os mísseis que lançam não matam, não ferem e não destroem; os mercados são uma forma superior de racionalidade...

O instrumento intelectual destas fabulações é a racionalidade instrumental e a utilização virtuosa dos meios de comunicação social. É esta a racionalidade instrumental que se materializa no "mal banal" discutido há muito por Hanna Arendt e no Eclipse da Razão de Max Horkheimer.

E há hoje um arsenal infindável de meios para propagar todo o tipo de sofismas e teorias da conspiração, travestindo-as de plausibilidade: uma comunicação social sob a tutela dos estados totalitários ou sob a pressão esmagadora dos interesses económicos; redes sociais desprovidas de filtros de verdade ou equipadas com filtros desavergonhadamente idiossincráticos; exércitos de voluntários para propagar mentiras (as ubíquas “fake news”); programas de inteligência artificial para detetar as tendências políticas em ascensão que são favoráveis aos poderes estabelecidos e reforçá-las por meio da concentração de pseudonotícias e factos corroborativos; uma opinião pública dócil, desinformada e alienada. Ouvir Putin é recuar à Alemanha de Hitler dos anos 1930, basta substituir ucranianos por judeus ou Donbass por Sudetos.

E a nossa versão local de demagogo não é menos inqualificável. Só podemos esperar que nunca tenha o mesmo poder.

Quanto falta para presenciarmos uma reedição da Noite de Cristal nalgum país que supúnhamos ser uma sólida democracia? O assassinato de cidadãos por agentes da ordem ou por milícias já se banalizou em muitos países ditos democráticos. Mas frequentemente ouve-se que estas realidades não se repetem. De facto, a História só se repete por meio da caricatura grosseira, observou Marx; porém, o tempo presente propicia o grotesco. O mórbido, o violento, o indigno é a ementa dos nossos dias. Os que procuram a lucidez dos valores universais só podem esperar o escárnio, as críticas, as armadilhas que frequentemente conduzem ao linchamento público.

Os mecanismos e instituições internacionais criados depois da Segunda Guerra Mundial estão totalmente desacreditados e incapacitados para resolver os problemas mais prementes. O sistema de valores que se está a criar só valoriza o egoísmo e a riqueza material. É inevitável que se perca o sentido dos princípios basilares do humanismo. O mal que se materializa é generalizado e irreversível, mas não podemos ficar insensíveis aos escassos gestos de reconciliação e solidariedade. Não podemos permitir que o mundo cristalize uma nova ordem internacional que não contemple a reafirmação dos valores de igualdade e solidariedade. A persistência da memória e da convicção nos valores humanistas deve guiar-nos pelos territórios insalubres do presente. O que aprendemos com o sofrimento do passado, deve fixar o horizonte luminoso que almejamos para o futuro.

Neste sentido, parece urgente criar um consenso internacional para se reformar profundamente as Nações Unidas e terminar com o direito de veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança. E julgo ser absolutamente necessário começarmos a discutir uma nova ordem internacional baseada em valores e não num sistema económico. Abdicando da sua agenda neoliberal, a União Europeia pode ser um ponto de partida desta experiência. Seria verdadeiramente transformador estender a experiência para África, Ásia e Américas.

Mesmo os problemáticos Estados Unidos da América, China e Rússia seriam bem-vindos como membros, não como potências dominantes. A igualdade de direitos de todos os povos assim o exige.»

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13.3.23

Relógios

 


Relógio de bolso «Escaravelho-Rinoceronte e Flores de Trompete», cerca de 1901.
René Lalique.

[Informação adicional e mais fotografias aqui.]

Daqui.
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13.03.2010 – O dia em que Jean Ferrat morreu

 


Jean Ferrat foi um dos grandes franceses da canção e já passaram treze anos desde que parou. Depois de Léo Ferré, Georges Brassens, Jacques Brel e alguns outros.

Representante típico de gerações de intérpretes politicamente comprometidos, para sempre ligado a Nuit et Brouillard e a tantos outros títulos, o eterno compagnon de route do Partido Comunista Francês, que não hesitou em denunciar a invasão de Praga em 1968.








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Nascer na argentina?

 



Daqui.
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Hoje “melões” para casas, amanhã para lares

 


«Ninguém se imagina a envelhecer… até envelhecer. Ninguém imagina que vai acabar a viver num lar… até acabar a viver num lar. Pensamos quase sempre na vida como ela é neste momento e, mesmo quando projectamos o futuro, pensamos nele como uma adaptação da vida que vivemos até aqui. É um estratagema que nos impede de pensar que todos os dias perdemos mais um dia de vida — eu acho que o ganhamos, porque já o vivemos, mas aritmeticamente é um dia a menos.

Os óculos do presente não nos permitem visualizar a nossa própria velhice num lar, no quarto de um lar, a comer num tabuleiro, com a visita esporádica de familiares e o apoio constante de pessoal auxiliar. É normal. Também só pensamos em carrinhos de bebé na perspectiva de uma gravidez e nunca antecipamos uma operação a menos que nos tenha sido “receitada”.

Mas, como se vê pelas notícias recentes, os lares de idosos deviam ser uma prioridade nacional. As creches, as escolas, as universidades, os hospitais, os centros de saúde, os tribunais e os lares. Talvez me tenha esquecido de algo fundamental, mas o que pretendia era colocar os lares de idosos a par de outros estabelecimentos considerados basilares no Estado Social.

Precisamos mais de lares do que somos capazes de admitir e só aceitamos que alguns idosos vivam em espaços ilegais e sem dignidade, amarrados a camas e isolados do mundo porque não queremos pensar que um dia (quase) todos vamos acordar numa instituição de apoio à velhice. As caríssimas casas de hoje não têm quartos suficientes para as famílias se reencontrarem na velhice e por isso é ainda mais importante aceder a lares de qualidade.

A esta distância, também não me vejo num lar – claro –, mas, se viver o suficiente, lá chegarei. E acredito que passarei por algumas daquelas fases que Valter Hugo Mãe descreve n'A máquina de fazer espanhóis.

Vai chegar o dia em que a União Europeia, o continente grisalho que não pára de envelhecer, terá de criar fundos especiais para construir estas residências seniores. Uma espécie de PRR só para a terceira idade. Hoje "melões" para habitação (como diz o Presidente da República), amanhã "melões" para lares. O ideal seria conseguirmos montar esse seguro especial de velhice a tempo de evitar muito mais histórias como a da Lourinhã ou a de Palmela.»

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12.3.23

Tectos

 


Tecto de vitrais Arte Nova, Restaurante «Le Falstaff», Bruxelas, 1903.
Arquitecto: Émile Houbion.


Daqui.
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10 anos depois do 25 de Abril

 

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TAP: depois de 500 mil a Alexandra, Estado pagará três milhões a Christine

 


«Obrigada, Governo. Obrigada, Estado. Depois da pipa de massa que os contribuintes enterraram na companhia, vão a prazo (provavelmente longo) gastar muito mais — não para aumentar os salários dos trabalhadores que ganham muito menos do que a CEO, mas para tentar lavar a imagem do Governo.


A decisão de demitir a CEO pode servir para ajudar a fazer controlo de danos para quem não achou que a demissão de Pedro Nuno Santos foi suficiente, mas é um perfeito disparate do ponto de vista do contribuinte. Não, João Miguel Tavares não é o único a achar absurda a demissão. António Costa e Fernando Medina só estão a empatar e a pensar no curtíssimo prazo, no lucro político do dia — porque, daqui a uns anos, quem viver verá. E verá com muita probabilidade os tribunais a darem razão a Christine Ourmières-Widener.

É provável que o Governo já tenha outros protagonistas no dia em que o Estado desembolsar milhões por ter despedido uma gestora sob o argumento de uma “justa causa” que não se está a perceber exactamente onde reside. Se a TAP deu lucro, depois dos anos negros da covid, se a CEO estava a cumprir a reestruturação conforme a decisão da Comissão Europeia, onde é que há motivo para despedimento por justa causa?

Ah, pois, foi a CEO que assinou o acordo de indemnização de Alexandra Reis que foi declarado nulo pela Inspecção-Geral de Finanças. Ora, Christine não é jurista. Não percebe absolutamente nada de direito público e de estatuto de gestor público português (um estatuto que abre várias excepções para a TAP, a começar pelo salário da CEO) e fez o que os advogados a mandaram fazer. O Governo devia, sim, processar a sociedade de advogados de Pedro Rebelo de Sousa que representou a TAP e que, segundo o seu irmão Marcelo, produziu uma “fórmula juridicamente abstrusa” que conduziu a um acordo espúrio.

A representar Alexandra Reis, a sociedade de advogados Morais Leitão também é co-protagonista e co-responsável desta história surreal. Os balúrdios que o Estado gasta nas “conceituadas” sociedades de advogados, para além de ter nos seus organigramas gabinetes jurídicos (onde estava o da TAP nesta questão?), produziram desastrosos resultados. Era importante perceber quanto lucraram os advogados num processo de que o Estado saiu — e vai sair ainda mais — prejudicado. E, já agora, pedir-lhes que devolvam o dinheiro.

Pedro Nuno Santos geriu o processo mal e saiu do Governo. É público que o tratou como se fosse uma questão menor e que deveria ter informado as Finanças sobre a indemnização de Alexandra Reis. Christine geriu o processo mal: não foi capaz de trabalhar com alguém com pontos de vista diferentes e achou melhor que fosse tirada da frente, em vez de optar por uma solução menos danosa para as contas da TAP. Se só conseguia trabalhar com pessoas da sua confiança, podia ter feito o que o antigo presidente da TAP, Fernando Pinto (que, tal como Christine Ourmières-Widener, foi escolhido por “headhunters” sob a responsabilidade do falecido ministro Jorge Coelho), fez: rodeou-se apenas de íntimos que tinham trabalhado com ele na Varig.

Agora vem aí a privatização — e se calhar é mesmo a 100%, possibilidade que não foi excluída pelo primeiro-ministro. Defenda-se ou não a privatização, este deve ser o pior momento para a fazer, a menos que o objectivo seja mesmo vender a granel. Neste sábado, o Presidente da República defendeu que a privatização seja feita “no mais curto lapso de tempo possível”. Mas para quê?

Todo este processo teve custos reputacionais para a empresa (para lá dos custos políticos que teve e ainda tem para o Governo) e a chegada da Comissão Parlamentar de Inquérito vai ainda fragilizar mais o valor da companhia no mercado. A atracção pelo abismo deste território é uma coisa sem explicação.»

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12.03.1959 – O dia em que o «Golpe da Sé» falhou

 


Estava prevista para a madrugada de 12 de Março de 1959 uma revolta contra o salazarismo, com o país ainda agitado pelo malogro das eleições presidenciais do ano anterior, às quais concorrera Humberto Delgado. Tratou-se do falhado «Golpe da Sé», assim denominado porque era na catedral de Lisboa que os participantes se reuniam, contando com a cumplicidade do padre João Perestrelo de Vasconcelos.

Um grande grupo de militares, cuja figura principal era o capitão Almeida Santos, mas onde apareciam nomes como Varela Gomes e Vasco Gonçalves, e de civis sobretudo católicos liderados por Manuel Serra, propunha-se realizar um verdadeiro golpe de Estado, tendo previsto o controle de meios de comunicação, transportes, fornecimento de electricidade, etc., etc.

Tudo fracassou devido a fugas de informação e foram detidas mais de 40 pessoas, incluindo o padre Perestrelo e Manuel Serra. Dos detidos, distribuídos pelas prisões de Caxias, Aljube, Trafaria e Elvas, cerca de metade foi julgada. Dois evadiram-se de Elvas e um deles, o capitão Almeida Santos, foi assassinado – episódio que deu origem ao romance de José Cardoso Pires, A Balada da Praia dos Cães. Quanto a Manuel Serra, a páginas tantas hospitalizado no Curry Cabral, conseguiu fugir, vestido de padre, e seguiu directamente para a embaixada de Cuba em Lisboa onde pediu asilo político. Alguns meses mais tarde, utilizando outro estratagema (cortou rapidamente a barba e o cabelo), fugiu de novo, dessa vez para a Embaixada do Brasil, já que o seu objectivo era juntar-se a Humberto Delgado naquele país, o que veio a acontecer.
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