«Esta quarta-feira, o Presidente da República falou ao país, do Palácio de Belém, de onde deve sempre falar em circunstâncias graves, deixando claro que a autoridade do Estado depende de instituições, e não de personalidades. Tornou públicas as suas razões para a declaração do estado de emergência, pela primeira vez na nossa democracia constitucional. Já aqui deixei a minha posição sobre o tema. Os meus dois argumentos fundamentais contra a declaração do estado de emergência, neste momento (sublinho o “neste momento”), foram a de que é extemporânea, como prova o facto de quem usa este instrumento não o ter solicitado, e que cria expectativas que, não sendo correspondidas, aumentarão a ansiedade dos cidadãos e a pressão para saltar degraus nas medidas. O Presidente confirmou expressamente os dois argumentos.
Confirmou o primeiro explicando que se trata de um estado de emergência preventivo: “Outros países, que começaram mais cedo do que nós a sofrer a pandemia, ensaiaram os passos graduais e só agora chegaram a decisões mais drásticas, que exigem maior adesão dos povos e maior solidariedade dos órgãos do poder. Nós, que começamos mais tarde, devemos aprender com os outros e poupar etapas, mesmo se parecendo que pecamos por excesso, e não por defeito.” Ou seja, o Presidente reconhece que declara o Estado de emergência sem que ele seja neste momento necessário, apenas para se antecipar, expressão que usa expressamente.
E reafirmou-o mais à frente: “Diz o povo: mais vale prevenir do que remediar. O que foi aprovado não impõe ao Governo decisões concretas, dá-lhe uma mais vasta base de Direito para as tomar. Assim, permite que possam ser tomadas, com rapidez e em patamares ajustados, todas as medidas que venham a ser necessárias no futuro.” Ou seja, o Presidente reconhece que o Governo não precisa nem solicitou este instrumento para as medidas que agora toma e assume uma figura até agora desconhecida na nossa democracia: o estado de exceção preventivo, que não corresponde a qualquer dificuldade realmente existente neste momento.
Suspeito que não teremos, por agora, qualquer medida relevante que não pudesse ser tomada sem o estado de emergência. Ainda ontem a Assembleia da República aprovou várias medidas excecionais de concentração de poder e agilização de procedimentos do Governo e das autoridades sem qualquer estado de emergência. O absurdo é tal que, segundo consta, um dos exemplos dados no Conselho de Estado para a necessidade desta opção terá sido o da greve, desmarcada antes de existir, no Hospital de Braga. Espero que não seja verdade, porque quereria dizer que há algum conselheiro de Estado que desconhece a existência da figura da requisição civil, usada ainda esta semana para pôr fim à greve dos estivadores. Esta antecipação é especialmente difícil de explicar quando nem sequer se esgotaram todos os estádios de emergência previstos na Lei de Bases da Proteção Civil. Como se vê em Ovar, o estado de calamidade dá imensa latitude ao Governo sem que se tenha de pôr o país em estado de exceção.
Poderá dizer-se que o estado de emergência, não sendo ainda necessário, também não faz mossa a ninguém. Também foi o próprio Presidente, logo no início da sua intervenção, a explicar os efeitos psicológicos perversos da sua decisão. E não devemos desprezar a importância da psicologia de massas num momento de medo coletivo como estes. Marcelo Rebelo de Sousa começa por mostrar que tem consciência no equívoco que alimenta nos cidadãos: “Sabia e sei que muitos esperam do estado de emergência um milagre que tudo resolva num minuto, num dia, numa semana, num mês.”
E sabia e sabe que a deceção terá como único efeito mais ansiedade, frustração e mais pressão irracional. Também foi ele que o disse: “Sabia e sei que, em plena crise, as pessoas se sentem tão ansiosas, tão angustiadas, que aquilo que pedem um dia ou uma semana, uma vez dado, é logo seguido de mais exigências ou mais reclamações, à medida que as preocupações ou os temores se avolumam.”
Esta pressão social para medidas cada vez mais restritivas, sem a ponderação de todos os fatores, pondo as autoridades a serem dirigidas pelo medo dos cidadãos, será a caminhada para o abismo. Duvido que o poder político consiga resistir a tal pressão de um país fechado em casa em frente às redes sociais. O que o pode levar a medidas impensadas e irresponsáveis, para acalmar a ansiedade, com brutais efeitos sociais e económicos que não estão hoje nas preocupações da maioria dos cidadãos mas têm de estar na cabeça dos decisores políticos.
Reconhecendo o Presidente que o estado de emergência é por agora desnecessário e meramente preventivo, que o Governo ainda se sente capaz de exercer o seu poder sem recorrer a tão grave instrumento, que ele cria uma expectativa que será frustrada e que o medo e a ansiedade levarão ao pedido de medidas mais restritivas sem ponderação de outros fatores, não posso dizer que discordo do raciocínio que levou a esta decisão. Pura e simplesmente não compreendo que raciocínio foi esse.
Sobra o único argumento que me parece coerente: “Esta base de Direito dá um quadro geral de intervenção e garante que, mais tarde, acabada a crise, não venha a ser questionado o fundamento jurídico das medidas já tomadas e a tomar.” Mas é curtíssimo, quando tal questão nem foi levantada por ninguém.
As duas últimas razões apresentadas por Marcelo Rebelo de Sousa para decretar do estado de emergência foram, na realidade, a apresentação de atenuantes para quem desconfia, como qualquer democrata deve desconfiar, da utilização demasiado lesta de qualquer tipo de estado de exceção: que ela é contida, não atingindo o núcleo duro dos direitos, liberdades e garantias, e flexível, tendo de ser renovada ao fim de 15 dias, como a Constituição exige. Não são razões, são pedidos de compreensão.
O estado de exceção é uma coisa muitíssimo séria. Agora, no meio do medo, tudo pode parecer banal, até a sua declaração sem que seja totalmente necessário, só porque pode vir a dar jeito. Mas a sua banalização – não é preciso haver uma necessidade imediata, basta haver a sensação de que ela pode vir a existir – abre um precedente que não deixará de ser aproveitado noutro momento e talvez por gente pouco recomendável. Imaginem um Cavaco Silva na Presidência ou um José Sócrates como primeiro-ministro depois desta banalização do uso do estado de emergência para se der jeito a um governo. Vou repetir isto várias vezes por estes dias: haverá vida depois desta epidemia. Cuidado com o que semeamos.»
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