José Tengarrinha faz em breve 80 anos e um grande grupo de amigos e companheiros vai prestar-lhe uma justa homenagem que só peca por tardia. Este blogue associa-se publicando alguns textos, a começar por este, de Helena Pato, que me foi enviado pela autora.
Uma semana antes do dia da revolução, finalmente, regressámos a casa: tínhamos andado por Londres, fugidos, à espera que a situação dele se definisse. De tempos a tempos era isto.
Voltámos na convicção de que o perigo de prisão havia passado, mas, mesmo assim, no dia da chegada queimámos tudo quanto era papel que pudesse incriminar-nos. Eram tantos – ou a nossa minúcia tão grande – que a sanita em que decorreu a operação estalou com o calor. Depois, pela noite fora, ainda fizemos inúmeros lançamentos da varanda do nosso quarto para os pátios do casario do Bairro das Colónias: Avantes e Militantes, comunicados à população, jornais e posters da CDE, tudo em rolos atados com cordéis (com uma batata dentro para pesarem mais). Foguetões de imprensa ilegal disparados para o espaço para que alguém a lesse e aproveitasse com aquela operação de limpeza. Os materiais clandestinos eram sagrados: evitávamos desperdiçar os que, pelo seu conteúdo e actualidade, constituíam um meio de informação acerca do que se estava a passar no país e nas colónias. A seguir fomos deitar-nos em paz. Paz, porém, efémera.
Ao alvorecer, tal como era prática deles, tocaram-nos à porta – e, exactamente à mesma hora, à porta de mais uma dúzia de antifascistas em Lisboa. «Já está, são eles!» - dissemos, saltando da cama.
Não me lembro de que palavras trocámos durante aqueles escassos minutos, em que uma parte da brigada da pide se posicionava discretamente junto ao prédio da Penha de França e os restantes abutres de Silva Pais subiam no elevador. Encaminhei-me para a sala. «Vai abrir, Lena, vou esconder a agenda!»
Quando, na entrada, me afastaram do seu caminho, irrompendo à bruta porta adentro – bizarramente vestidos a rigor, de fato e gravata – não tive dúvidas de que estava a entregar o futuro do meu companheiro ao terror da repressão fascista e à coragem e firmeza de carácter do homem que eu tão bem conhecia: José Tengarrinha.
Em nossa casa, quase em simultâneo, o telefone começou a tocar ininterruptamente: eram jornalistas e familiares de amigos (que também haviam sido presos), querendo avisar-nos da vaga de prisões. A notícia estava a chegar aos jornais. Para nós já era tarde: tínhamos em casa três agentes da PIDE/DGS e o chefe de brigada Tinoco. Este, logo à entrada, informou o Zé de que estava «detido para averiguações» – a fórmula do costume. Aparentemente calmo, José Tengarrinha enfrentava-os sem interpelação, mas eu sabia que, naquela serenidade, havia um cérebro em contínua actividade de premeditações, e isso estava para além do que eles podiam controlar.
Mandaram-no arranjar-se com brevidade e, enquanto um deles se colou à porta entreaberta da casa de banho, os outros dois passaram a pente fino os quartos, a sala, a cozinha, tudo. Procuravam algo que o incriminasse. Em vão, que a operação de limpeza feita na véspera não deixara rasto das actividades que desenvolvíamos. «Para fazer uma busca a sério aqui nem uma semana», dizia, desalentado, o agente Coelho.
O telefone não se calava. «Que ninguém responda! Bem sabemos que há muita gente a querer falar consigo», avisou um deles, um tal Bronze, enquanto folheava manuscritos, numa busca minuciosa dos trabalhos do historiador, acompanhada de comentários, entre dentes, com o Tinoco. Não deixavam dúvidas do que, pela cidade, estaria a acontecer.
Finda a busca esmiuçada, começaram a atirar para o chão livros que retiravam das estantes: umas dezenas para apreensão. Ridícula selecção, assente na profunda ignorância daquela gente da PIDE/DGS. Poucos minutos depois, uns atapetavam a sala, outros acumulavam-se em pilhas. Enquanto a devassa decorria, as crianças dormiam. A nossa filha R., ainda bebé, provavelmente sonhava com ursinhos e gaivotas, mas escondia um manancial de informação capaz de lhes alimentar semanas de interrogatórios. Ao toque da campainha da rua, o Zé correra para o carrinho dela e colocara a tal agenda debaixo do colchão. (Na véspera, tínhamos evitado destruí-la por conter um sem número de anotações – importantíssimas, imprescindíveis para a actividade imediata). Embora eu tivesse admitido que eles aí não iriam, nunca fiando, logo que vi oportunidade fui lá buscá-la e passei-a à nossa empregada, que a escondeu junto ao corpo. Pedi-lhe entre dentes e entre portas que fosse comprar comida e a deixasse em casa de uma vizinha. Eles obrigaram-na a mostrar a cesta, estipularam-lhe um tempo para a saída, mas deixaram-na partir.