«Depois de se ter estreado com uma medida simbólica que respondeu a uma polémica criada pelo Chega (a mudança do logótipo está a obrigar milhares de serviços públicos a gastar dinheiro para reimprimir tudo de novo, meses depois da última alteração); de abrir ao Chega as negociações sobre mudanças legislativas relativas à corrupção (ignorando o cordão sanitário onde ele é realmente importante); de ter garantido a maioria nos Açores através da viabilização do voto do Chega; e de abrir a possibilidade de um acordo com o Chega na Madeira (passando a vergonha de ouvir Ventura dizer que Albuquerque está para lá da sua linha vermelha), só acredita que o “não é não” de Montenegro é mais do que retórica tática para entalar o PS quem gosta de ser enganado.
O debate do programa de Governo não ficou apenas marcado pelo embuste do corte do IRS que, como a pescada, antes de o ser já o era. Tão ou mais marcante para os meses até á votação do próximo Orçamento de Estado, foi a ideia peregrina que “não rejeitar o programa do Governo” é “dar ao Governo as condições para o executar”. Foi nestes termos que Luís Montenegro interpelou a bancada do Partido Socialistas, pedindo um cheque em branco para aplicar um programa que “rejeita a resignação com a carga fiscal máxima e a recusa [do PS] em baixar impostos”.
Montenegro não quer dialogar ou negociar, quer pressionar os outros partidos a capitular perante um programa que foi sufragado por menos de 30% dos eleitores. Escuda-se num suposto cordão sanitário com o Chega para tentar encurralar o PS, responsabilizando-o pela eventual queda do governo.
O primeiro problema é que, como vimos no episódio da eleição do Presidente da Assembleia da República ou na disponibilidade para falar com todos, não há cordão sanitário algum. O segundo é que o PSD espera contar com o voto do PS para governar com um programa que, nas matérias centrais de governação económica, está mais próximo do Chega do que do PS. Montenegro tinha razão quando disse, à saída de uma audiência com o Presidente da República, que tinha condições de governabilidade. Só nos quer enganar quanto ao lugar do hemiciclo onde essas condições existem.
Não há propiamente três blocos no Parlamento. Nas questões de regime, há uma ampla maioria constitucional com o PS e restantes partidos, fora o Chega. Infelizmente, mesmo nessas, onde seguramente se incluem grande parte das propostas que se podem fazer para combater a corrupção, o PSD inclui o Chega no diálogo.
Nas matérias económicas, fiscais e até sociais o PSD tem uma maioria de apoio parlamentar com o Chega e a Iniciativa Liberal. Há uma larga maioria constitucional em defesa do Estado de Direito Democrático, que não precisa do Chega para a nada. E há uma larga maioria parlamentar de direita para a aplicação do programa da AD, que não precisa do PS para nada.
Olhemos para o programa do Governo e para o do Chega, comparando apenas questões já elencadas por Montenegro como prioritárias.
Onde o Governo quer revogar as “medidas erradas” do Mais Habitação, acabando com a limitação a novas licenças a caducidade das anteriores à legislação aprovada pelo anterior Governo, o Chega quer “reverter a possibilidade de arrendamento forçado de habitações devolutas; a revogação dos vistos gold e as limitações ao alojamento local, aprovados no Programa Mais Habitação”. Tudo medidas constantes no programa de Governo. De resto, o centro das propostas do Chega e da AD para a habitação resumem-se, quase exclusivamente, à descida da carga fiscal.
Quando cidades como Paris, Londres ou Viena colocam milhares de milhões de euros na construção de habitação, reconhecendo a falha de mercado existente, e que sem oferta pública não se consegue condicionar o mercado e garantir o direito à Habitação nos grandes centros urbanos, ignoram o papel do Estado. De vez em quando lá falam de construção, mas sempre na lógica de parcerias público privadas, ou onde as autarquias concedam terrenos a privados para construir. O papel do Estado, nesta visão, é garantir negócio e não casas para os jovens e famílias classe média.
Na Saúde, a visão programática é quase decalcada a papel químico, com o Chega a querer “alterar o paradigma para o Sistema Nacional de Saúde, assegurando uma resposta integrada ao cidadão através da articulação dos serviços de saúde públicos, privados e sociais”. É basicamente este o programa de emergência anunciado por Montenegro.
Em matéria fiscal, é linha e bingo. Até na ideia de “isentar de IRS o designado ‘15.º salário’, sem quaisquer condicionantes”, estão de acordo. A diminuição cega da taxa de IRC é um dado adquirido nos dois programas, assim como uma diminuição do IRS nos escalões mais elevados, ao contrário do PS, que a foi limitando aos primeiros cinco dos nove escalões de rendimentos. É verdade que o Chega mudou, como é seu costume, de posição, e agora defende baixar mais nos escalões mais baixos. Mas isso é o oposto do que andou a defender na campanha. E deve ser confrontado com isso.
Podíamos continuar, mas nos pontos chave da governação económica, que é o que se procura no Orçamento do Estado, a convergência é quase total. Há muito menores diferenças nestas matérias do que existiam entre o PS, Bloco e PCP durante o governo da “geringonça”.
Percebe-se que Montenegro, sabendo os elevados índices de rejeição que ainda tem o partido de Ventura, não queira assumir que é este o seu parceiro natural em questões orçamentais. Mas é a tática política, mais do que a dificuldade em chegar a acordo, que empurra o Governo contra o PS.
Foi o próprio Hugo Soares a reconhecê-lo, quando disse, no “Expresso da Meia Noite”, que tinha havido acordo com o Chega sobre o IRS e as SCUTs que o partido de André Ventura furou. Curiosamente, demorou dias a denunciá-lo, porque deseja entalar PS e Chega, em simultâneo. O que significa dar todo o espaço para o Chega fazer este jogo duplo. No caso do IRS, Ventura passou a defender, para se colar à proposta do PS, o oposto d que está em todos os seus programas eleitorais, em que, à semelhança da IL, propunha duas taxas, reduzindo a progressividade que agora passou a defender.
É a vontade da AD impedir que o PS lidere a oposição que está a deixar o Chega à solta, não sendo confrontado com as suas incoerências. O PSD quer colar o PS ao Chega e, por isso, não denuncia as mudanças permanentes de posição do partido de Ventura. De tanto querer tramar os dois, Montenegro não trama nenhum.
Tudo é visto e revisto no grupo político de Montenegro à luz do que pode garantir capital de queixa para o governo. O objetivo não é apenas estar preparado para a eventualidade de termos eleições em outubro, com o chumbo do Orçamento de Estado, mas ir criando as condições para responsabilizar o PS, e não o Chega, por esse chumbo. Porque a alternativa viável é, por agora, o PS.»
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