«1. O que é notável no novo ministro das Finanças é que, em poucas semanas, nunca desperdiçou uma oportunidade de arruinar a sua credibilidade. Primeiro, foi o desastre na gestão do processo de eleição do novo presidente da Assembleia da República. Depois, o país percebeu com choque e pavor que as promessas eleitorais da AD sobre a descida do IRS, de que Sarmento foi o mentor, afinal eram da autoria do governo do PS. Já no Governo, e menos de um mês após ter enviado para Bruxelas um Programa de Estabilidade em que previa 0,3% de excedente orçamental que não incluíam as suas propostas políticas, veio agora anunciar ao país que as contas públicas estão em estado comatoso. Foi rápida e liminarmente corrigido por economistas que explicaram pacientemente a diferença entre contabilidade pública (entradas e saídas avaliadas num dado momento) e contabilidade nacional (apuramento no final do exercício orçamental). Restam ainda dúvidas sobre supostas “despesas não cabimentadas”, que até agora o ministro não se dignou a esclarecer.
O problema é que já vimos este filme. Há 20 anos, o choque fiscal prometido por Durão Barroso morreu subitamente às mãos do discurso do “país de tanga”; e a “mentira” do corte do subsídio de Natal na campanha de 2011 tornou-se uma verdade dolorosa assim que Passos assumiu o poder. Sem criatividade ou arte, parece certo que Miranda Sarmento quer abrir espaço ao incumprimento das promessas eleitorais da AD. Assim, a questão que hoje se coloca é saber quais as promessas que irão cair.
A única opção que parece política e orçamentalmente viável é arrepiar caminho na promessa de corte no IRC. A AD estimava que esse corte implicava uma redução brutal da receita pública: 1 500 milhões de euros. Os dados oficiais mostram que iria beneficiar, no essencial, as grandes empresas. Porque quase metade das empresas em Portugal não paga IRC, muitas outras pagam já taxas efetivas reduzidas ou a redução que iriam ter seria marginal. Mas para as grandes empresa - as que se incluem nos 0,3% de empresas que asseguram quase metade da receita do IRC - esta promessa era uma festa. Empresas como a Galp, que teve no ano passado o melhor resultado da sua história; a EDP, que aumentou os resultados em 40%; ou setor da banca, que lucrou 12 milhões por dia. Como anunciaram a distribuição da quase totalidade dos lucros aos acionistas, percebe-se que uma “borla” fiscal não iria fazer criar mais emprego ou puxar pelo crescimento da economia.
Por isso, Miranda Sarmento enfrenta agora um teste. Se a sua “narrativa” das dificuldades orçamentais é verdadeira, o corte do IRC não pode avançar porque o seu impacto num cenário orçamental “preocupante” seria perigoso. Se, pelo contrário, a borla fiscal às grandes empresas for avante, só podemos concluir que a sua narrativa de dificuldades nas contas públicas é falsa. A credibilidade futura do atual ministro das Finanças depende da resposta a este teste. Se o corte do IRC avançar, então é porque o ministro mentiu ao país ou é irresponsável. Não há uma terceira interpretação.
2. Depois de rasgar as vestes em público sobre o empenho do Governo em negociar com o PS, o líder parlamentar do PSD disse ao país com uma candura assinalável que tinha andado a negociar com o Chega sobre os dossiers do IRS e das ex-SCUT. E disse mais: contou que, na última hora, o Chega “furou” o acordo. Daí que o Chega tenha viabilizado, por abstenção, as propostas da esquerda.
Podíamos pensar que Ventura, por uma vez sem exemplo, decidiu honrar o compromisso eleitoral, dado que no programa do Chega se defendia a redução das portagens. Mas desde o dia em que Ventura fez três votos diferentes na AR sobre o pagamento pelos contribuintes dos desmandos do BES, que creio que procurar coerência política nas votações do Chega é um exercício votado ao fracasso. Nas votações do Chega sobre as recentes propostas de IRS, a confusão impera. No programa, o Chega defendia a criação de apenas dois escalões, “à la” IL, numa lógica oposta às propostas da esquerda e, mesmo assim, viabilizou-as. É certo que propostas da esquerda permitem baixar as taxas efetivas. Mas as propostas do Governo também, e o Chega ameaçou chumbá-las. O Governo acreditou nessa ameaça e retirou-as da votação.
Aqui chegados, parece cristalino que o partido de Ventura não se atrapalha com princípios. Sabe que, ao contrário de todos os outros partidos, não vai ser escrutinado pela seriedade ou coerência nas votações. Tem apenas uma estratégia: mostrar que o Chega é indispensável à governação à direita, nem que para tal tenha de passar por cima do cadáver do governo da AD.
Mas essa estratégia pode ter de enfrentar o mesmo teste do Ministro das Finanças. Se Miranda Sarmento persistir com proposta de corte do IRC; e se a esquerda for capaz de demonstrar que ela é um “bodo aos ricos”, o Chega terá de escolher. Ou fica do lado do povo que se sente expropriado pelas elites dos negócios; ou responde à voz dos donos - os empresários de grandes empresas que desde 2019 têm financiado generosamente o Chega.
Esse é o teste decisivo para Ventura. Como se viu nas votações envolvendo o BES, não são os princípios que o vão salvar da angústia da dúvida. Se mantiver a estratégia de tomar o lugar do PSD na hegemonia à direita, a sua popularidade cresce se morder a mão de quem o alimentou até agora. Se, pelo contrário, obedecer disciplinadamente à agenda dos seus financiadores, o seu discurso contra as elites colapsa.
Seja como for, o teste do IRC é maior do isto. Se a direita viabilizar o “bodo” às grandes empresas enfrentando custos políticos e reputacionais, então fica quem são os verdadeiros poderes que mandam no país.»
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