26.4.25
26-27.04.1974 – A libertação dos presos em Caxias
Um dia importante para o resto das nossas vidas – o fim das prisões do fascismo.
Clicar AQUI para ver seis vídeos com a libertação dos presos.~
Zeca Afonso e os séculos
«Repudio o conceito de vanguardismo e sucessivas tentativas de o justificar, mas, usando-o, ao menos que se o atribua a coisas realmente irrepetíveis por surgidas e existindo naquilo a que podemos chamar irreal — não por vidência, clarividência ou adiantamento face ao que há, mas por não se achar em qualquer parte do tempo.
É no Zeca Afonso em que penso. Ser-me-ia impossível explicar o que faz deste compositor um dos maiores, ao lado de Mozart, Stravinsky ou McCartney. Periscópios neurais ou alquímicos terão em comum para descobrirem com tal claridade a linha turva do horizonte. Será uma intuição «intemporal» ou «universal», como se escutassem em si mesmos a demais humanidade, a que existe, a que virá? Na ânsia de haver o que se responda, dizemo-los profetas ou videntes, e, por excesso (ou inabilidade) de pensar o que não somos, imaginamo-los lacerados pela solidão da «genialidade», anjos caídos na selva de nós. Mas o Zeca Afonso, como todos os génios, não foi realmente génio ou, pelo menos, não o foi sozinho: nele consolidaram-se as sensibilidades afinadas de um José Mário Branco ou de um Fausto Bordalo Dias, que escutaram com os ouvidos de Orfeu a intuição cantante de um homem, transfazendo-o na severa possibilidade da reprodução. Aquela estranha solidão, que é afinal simples música, não se mata, mas alivia-se.
E é justamente essa simplicidade que opera no sangue quando do monólogo da Grândola de súbito canta o mundo inteiro, mesmo sem saber as palavras, por ser ímpeto anterior às línguas, ao tempo, à diferença. Compreende-se, então, que nas suas composições a aridez alentejana seja afinal lucidez: uma luz muito aberta a unificar o espaço habitado por cada um de nós, de Portugal a Espanha a África. A sua terra é plural. Terra do fruto, das mãos, da comunhão. Terra sem fronteiras. Dessa liberdade alimentou as suas composições, fazendo-as nem daqui nem doutro lugar. Isso revelou-se apodíctico nos discos da primeira metade da década de 70, em que ousou exprimir, de um só golpe, o lirismo de Camões, a audácia dos The Beatles e a opulência em devir de toda a arte que haveria ainda para ser feita. Nessa senda ecuménica alcançou ainda incluir construções menos hínicas, mais árduas (digamos: subtis), em que a melodia conserva a facilidade da água encontrando o indeclinável caminho pela topografia harmónica, numa procura e inesperado encontro de sentido. Quiçá em extremo essa topografia se revele agreste e instável montanha, como em Tenho um primo convexo, que nem por isso vê perdida a destreza mnemónica de se instalar confortavelmente nos ouvidos do mundo, e sem que o experimentalismo, o surrealismo ou a dissonância, arruínem as possibilidades infantis do troteio. E isso é notável.
O Zeca Afonso lutou como soube e como quis. Como músico-militante, teve a coragem, a necessidade, de se misturar em si mesmo, sem separar os sangues. Foi por isso canonizado como um punho de Abril, o que, não sendo descabido, é injusto. Porque é uma condecoração que o peito enverga absolutamente, nada mais deixando visível. Nem sequer as suas letras confessionais, como em Que amor não me engana ou em Balada de Outono, escapam à coacção de uma analogia política. E na História não cabem muitas verdades, muito menos os seus cambiantes e silêncios. Isso revela-se claro nas cíclicas comemorações do 25 de Abril que todos os anos o reduz à voz da intervenção ou, nas piores circunstâncias, a banda sonora de feriado. A utilidade do símbolo é essencial, naturalmente, mas até um cravo perde a sua liberdade separado da terra.
Para mim, a virtude do Zeca Afonso não reside na sua obra política, que a há, mas na sua obra musical, despoluída do seu sentido de intervenção, de dever ou de justiça de classes. A cantiga pode ser uma arma, mas a música é o que acontece quando nada mais resta, depois de dissipado o ruído, o grito, o sentido útil de um tiro. Ainda que a luta seja eterna, é num espaço fora de qualquer grandeza, na planície lavada da batalha, em que encontro a música do Zeca Afonso. E dentro dela, em todas as direcções, séculos, séculos, séculos.»
25.4.25
Sim, fomos muitos a ver
Eu vi este povo a lutar
Para a sua exploração acabar
Sete rios de multidão
Que levavam a História na mão
24.4.25
Varandas
Varandas Arte Nova.
1/ Barcelona. 2/ Nancy. 3/ Buenos Aires. 4/ Paris. 5/ Barcelona. 6/ La Havana. 7/ Genebra. 8/ Cidade do México. 9/ Barcelona.
Daqui.
Quarenta e sete anos, dez meses e vinte e quatro dias depois
«A cidade apareceu ocupada e radiosa. Deparámos com colunas militares, inundadas de sol; e povo logo a seguir, muito povo, tanto que não cabia nos olhos, levas de gente saída do branco das trevas, de cinquenta anos de morte e de humilhação, correndo sem saber exactamente para onde mas decerto para a LIBERDADE!
Liberdade, Liberdade, gritava-se em todas as bocas, aquilo crescia, espalhava-se num clamor de alegria cega, imparável, quase doloroso, finalmente a Liberdade!, cada pessoa olhando-se aos milhares em plena rua e não se reconhecendo porque era o fim do terror, o medo tinha acabado, ia com certeza acabar neste dia, neste Abril, Abril de facto, nós só agora é que acreditávamos que estávamos em primavera aberta depois de quarenta e sete anos de mentira, de polícia e ditadura. Quarenta e sete anos, dez meses e vinte e quatro dias, só agora.»
José Cardoso Pires, Alexandra Alpha
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Luto nacional
Em Espanha, os três dias de luto nacional pela morte do papa foram 21, 22 e 23 de Abril. Em Itália, terão início a 26. Em Portugal: 24, 25-25-25, 26. Porque será?
Infalibilidade ventural
«Quem pensa que vai estar muito ocupado nos próximos dias, por ter de assistir a dezenas de entrevistas e debates, a fim de tomar uma decisão responsável no dia 18 de Maio, imagine a trabalheira que está reservada a Deus Nosso Senhor. O Criador terá de estar atento não só às eleições portuguesas, que vão determinar a composição do novo governo, como também à eleição do novo Papa, no Vaticano. Como se sabe, Ele está igualmente empenhado nas duas.
Se bem se lembram, no dia 12 de Dezembro de 2020, André Ventura revelou: “Deus confiou-me a difícil mas honrosa missão de transformar Portugal.” E também é sabido que os cardeais, quando se reúnem para eleger o Papa, requisitam a assistência do Espírito Santo. O mesmo Espírito Santo protege depois o Papa do erro, sempre que o Santo Padre fala de matérias de fé e moral. É nisso que consiste a chamada infalibilidade papal, que é dogma. Para André Ventura, Deus reservou um modelo de infalibilidade ligeiramente diferente: o presidente do Chega tem a protecção do espírito santo de orelha. Sempre que ele ouve alguma coisa que lhe indica que o melhor é contradizer-se, por mais flagrante e ridícula que seja a contradição, é isso que faz. Trata-se da infalibilidade ventural: que ele mais tarde ou mais cedo vai dar o dito por não dito é uma lei absolutamente infalível. Já tinha acontecido com o apoio às tarifas de Trump, que Ventura começou por considerar óptimas e passou a achar péssimas, quando verificou que não tinham o apoio de ninguém. E agora aconteceu novamente, de forma ainda mais espectacular. No dia da morte do Papa Francisco, Ventura publicou a seguinte mensagem: “Hoje é um dia de tristeza e sofrimento para os cristãos do mundo inteiro. O Papa Francisco deixa uma marca inspiradora de proximidade e simplicidade que a todos tocou profundamente. Que a sua vida intensa seja
um exemplo para todos os que querem servir a causa pública!”
E acrescentou, a seguir a esta exclamação, o emoji das mãozinhas a rezar, em sinal de agradecimento. No entanto, em Outubro de 2020, tinha dito numa entrevista: “Eu acho que este Papa tem prestado um mau serviço ao cristianismo. Acho. Acho que tem mostrado a esquerda revolucionária quase como heróica e a esquerda europeia marxista como a normalidade. Acho que este Papa tem contribuído para destruir as bases do que é a Igreja Católica na Europa e acho que em breve vamos todos pagar um bocadinho por isso.” E há dois anos, quando o Papa visitou Portugal, Ventura exilou-se na Madeira, para o evitar. Portanto, o mesmo Ventura que achava que o Papa prestava um mau serviço ao cristianismo, considera agora que a sua vida foi um excelente exemplo para todos. Quando estava vivo, o Papa não lhe agradava, mas depois de morto já o acha admirável. Pode ser que Ventura também venha ainda a gostar muito da democracia, depois de ela morrer. Talvez seja por isso que se tem esforçado tanto para precipitar o seu óbito.»
23.4.25
O calendário pode ajudar
Lindo seria fumo branco em Roma e resultado das Legislativas cá no burgo na noite de 18 de Maio.
As TVs poderiam acabar por dizer que o cardeal X é o nosso próximo PM, ou que este vai mandar no Vaticano? Sei lá!
23.04.1936 – Tarrafal, 89 anos
A Colónia Penal do Tarrafal foi criada pelo Governo de Salazar ao abrigo do Decreto-Lei n.º 26. 539, de 23 de Abril de 1936.
Seis meses depois, em 18 de Outubro, os primeiros presos saíram de Lisboa, no paquete Luanda, com destino ao que viria a ser o «Campo da Morte Lenta», na ilha de Santiago, em Cabo Verde. Aquele navio era normalmente usado para transporte de gado proveniente das colónias e os porões utilizados para esse efeito foram transformados em camaratas. Depois de uma escala no Funchal e de uma outra em Angra do Heroísmo, para recolher mais alguns detidos e / ou largar os menos perigosos, e no fim de uma viagem em condições degradantes, foram 152 os que desembarcaram, no dia 29, em fila indiana, antes de percorrerem os 2,5 quilómetros que os separavam do destino final.
Depois, foi o que se sabe: histórias de terror, 32 pessoas por lá morreram e o Campo durou até 1954. Foi reactivado em 1961 quando começou a Guerra Colonial, como «Campo de Trabalho do Chão Bom», para receber prisioneiros oriundos das colónias. Durou até 1974.
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Não calar o Papa do fim do mundo
«Vós sabeis que o dever do Conclave era dar um Bispo a Roma. Parece que os meus irmãos Cardeais o foram buscar quase ao fim do mundo. Eis-me aqui!”
Foi assim que, chegado à varanda da Basílica de São Pedro, Jorge Bergoglio, agora Francisco, se apresentou. Deixo para o texto do semanário o balanço mais profundo sobre o pontificado de um Papa que considero, apesar de não crente, exemplo político e moral. Aqui, quero falar do fim do mundo. Não do lugar de onde veio o primeiro Papa nascido fora da Europa nos últimos mil anos, mas dos lugares onde foi e quase ninguém vai. Talvez as duas coisas estejam ligadas.
Logo dois anos depois de iniciar o seu pontificado, em fevereiro de 2015, Francisco visitou, de surpresa, um bairro nos subúrbios de Roma. Estava a caminho de uma visita a uma paróquia na área operária de Tiburtina quando mudou a rota para conhecer um bairro de lata de que tinha ouvido falar. E assim, livre e próximo, foi rodeado por 150 trabalhadores do Peru e do Equador, os mais precários dos imigrantes.
Ao longo destes 12 anos de pontificado, não se limitou a defender os imigrantes. Foi severo com quem escolhe o ataque aos mais frágeis para subir na política. Criticou, sem meias palavras, a criminalização da imigração e as políticas de deportação. Disse que “quem trabalhar de forma sistemática e com todos os meios para repelir os migrantes”, se o fizer “com consciência e responsabilidade”, cometerá “um pecado grave”. E concluiu: “o Senhor está com os migrantes, não com quem os rejeita”.
Há dois meses, escreveu aos bispos norte-americanos: “o Filho de Deus, ao fazer-se homem, escolheu viver também o drama da imigração”. E, como nunca deixava os valores a pairar no vazio, acrescentou que “o ato de deportar pessoas que, em muitos casos, abandonaram as suas terras por motivos de extrema pobreza, insegurança, exploração, perseguição ou grave deterioração do ambiente fere a dignidade de muitos homens e mulheres e de famílias inteiras, e coloca-os num estado de particular vulnerabilidade”. E recordou uma ideia cada vez mais ignorada pelo seu rebanho: “o amor cristão não é uma expansão concêntrica de interesses que pouco a pouco se estendem a outras pessoas e grupos”, exortando os fiéis e todos os homens e mulheres a “não cederem a narrativas que discriminam e causam sofrimento desnecessário aos nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados”.
Na Eslováquia, foi ao bairro miserável de Luník IX, em Košice, para se encontrar com ciganos e dizer-lhes que "colocar as pessoas num gueto não resolve nada". No seu pontificado, pediu perdão por séculos de discriminação e maus tratos e lamentou a “incompreensão, rejeição e marginalização” de que aquele povo ainda é alvo, comparando-o a Jesus. Disse que eram “filhos e filhas amados de Deus”. Disse ainda que “muitos dos valores que os identificam como povo não são somente evangélicos, mas também proféticos e contraculturais neste momento”.
Há um ano, muitíssimo debilitado, Francisco já não se conseguiu ajoelhar. Mas, sentado na sua cadeira de rodas, não faltou ao dever: lavar, enxugar e beijar os pés de presidiárias, repetindo o momento em que, em 2013, o fez com doze reclusos, incluindo mulheres e muçulmanos. Se alguém era alvo dos cultores do ódio para daí tirar vantagens políticas, ele lá esteve para o defender.
Este Papa não foi uma exceção na Igreja. Foi, aliás, mais uma tentativa de a Igreja se reencontrar com Cristo. Disse-o, numa conversa que tive com José Tolentino de Mendonça para o programa católico 70x7, em 2015, que quando chegamos ao fim do mundo, aos bairros de lata de ciganos, às prisões, aos lugares onde os imigrantes se escondem, podemos encontrar alguns ativistas ou voluntários de ONGs, mas está lá sempre alguém da Igreja. Porque a Igreja é muita coisa. É o salão do poder, o canto onde acontece o abuso, o púlpito onde se julga a diferença e o fim do mundo, onde só a Igreja e Bergoglio vão.
Estes são dias para chorar a memória de um cristão extraordinário. Mas se o exemplo serve para alguma coisa, se não nos limitamos a mais um momento mediático vazio de vida, serve para respeitar a mensagem de quem parte. Este foi o Papa dos ciganos, dos imigrantes, dos presidiários, dos humilhados, dos perseguidos e dos ofendidos. Este foi o Papa que defendeu as vítimas do ódio. E foi nesse fim do mundo, onde elas vivem, que encontrou Cristo. Até eu, que não sou cristão, o vi nos seus atos.
É natural que, por estes dias, se guardem palavras de respeito e admiração. É normal que um católico se junte a este momento, mesmo que discordasse do Papa. Mas há limites para o cinismo. Por estes dias, são demasiados os que fazem um minuto de silêncio na diabolização dos imigrantes ou na cedência cobarde aos que os diabolizam para repetirem, como se fosse um jingle publicitário, “todos, todos, todos”.
Recordar a mensagem do Papa Francisco, que é tão política como religiosa, não é usar a sua morte para constranger os que nunca lhe deram ouvidos. É não permitir que se use a morte do Papa para apagar a sua mensagem radicalmente corajosa e dolorosamente solitária.»
22.4.25
Ventura vive numa casa com 30m2?
«O líder do partido de extrema-direita vive num condomínio fechado de luxo: trata-se do MetroCity, no Parque das Nações, com segurança 24h, piscina, jardim e parque infantil. Seja T0, T1 ou Loft, nenhum dos apartamentos disponíveis para consulta tem 30 metros quadrados.»
Notícia do Polígrafo AQUI.
O que dizem os orçamentos de campanha sobre a nossa democracia?
«E agora, algo completamente diferente. Trago-vos um tema particularmente enfadonho. Ou talvez não, já me dirão. A pergunta que me coloco é simples: o que podemos aprender, se é que alguma coisa, com os orçamentos que os partidos apresentaram para as próximas legislativas?
Podemos, é claro, pegar no tema pelos seus aspetos mais pitorescos. O Chega, por exemplo, é o campeão dos gastos em brindes (250.000 euros), logo seguido pelo PS (180.000 euros). Será que estes partidos acham mesmo que alguém no seu perfeito juízo muda o seu sentido de voto graças a um pin com a cara de André Ventura ou a uma caneta imaculadamente cor-de-rosa? Será que esta generosidade algo pueril é o reflexo da forma como encaram os eleitores? Tomar-nos-ão a todos por crianças? É para isto que servem as subvenções estatais?
Mas deixemos de lado estas considerações mais caricatas até porque, convenhamos, há aspetos mais sérios para analisar. E o mais interessante de todos eles é este: a AD tenciona gastar, nada mais, nada menos do que 1.000.0000 de euros na “conceção da campanha, agências de comunicação e estudos de mercado”. Para que se tenha uma ideia, este montante representa quase 40% de todo o orçamento da aliança para a campanha eleitoral. Na mesma rubrica, o PS inscreveu 600.000 euros que correspondem a quase 27% do total que o partido planeia gastar até ao dia 18 de maio. Com as notáveis exceções do Bloco de Esquerda e da CDU, na medida das suas respetivas possibilidades, todos os demais partidos com assento parlamentar reservam também verbas proporcionalmente significativas para este efeito.
Ora, porque é que é relevante refletir sobre esta centralidade que os partidos entendem dar às “agências de comunicação e estudos de mercado”? Por duas razões fundamentais. A primeira é, aliás, fácil de intuir. E nem se pode dizer que seja nova. Há muito tempo que os partidos, e em particular os grandes partidos do regime que disputam o poder ao centro, se tornaram caricaturas ideológicas. E não falo apenas da sua obsessão pela forma que tantas vezes remete para segundo plano a discussão substantiva das suas propostas. Nessa frente, todos teremos reparado, por exemplo, no “milagre” da transmutação do impulsivo Pedro Nuno Santos no simpático cordeiro com pose de Estado que se vem apresentando nos debates televisivos. Ou no sorriso de desdém que, pelos vistos, acompanha Luís Montenegro desde a mais tenra infância e que lhe serve para convenientemente desvalorizar ou chutar para canto qualquer pergunta mais incómoda. E só não sublinho o sorriso amarelo de Mariana Mortágua porque, pelas razões opostas, por ser tão evidentemente artificial, denota precisamente falta de algum investimento e treino mais profissionalizado.
Quando me refiro a caricaturas ideológicas, quero sobretudo fazer alusão à crescente facilidade com que, em particular, os grandes “catch all parties” moldam os seus programas eleitorais, não tanto aos ditames do seu património filosófico histórico ou ao vibrar das convicções profundas dos seus líderes, mas, ao invés, ao pulsar de uma opinião pública que, cada vez mais, medem com redobrada obsessão e sofisticação. Ou alguém verdadeiramente acredita que a perceção de insegurança que atormenta Montenegro ou a epifania que Pedro Nuno Santos teve com a imigração são mesmo instintos profundos que saíram dos mais insondáveis recantos das suas almas? Se é o caso, desenganem-se. Já faltou mais para que ouçamos algum dirigente citar Groucho Marx: “Estes são os meus princípios. Se não gosta deles, tenho outros...”
Escuso de dizer, é óbvio, que esta plastificação de programas e ideários não se faz sem custos muitíssimo relevantes. Ao transformarem-se em meros espelhos ou amplificadores dos humores volúveis do eleitorado, os partidos perdem respeitabilidade, enfraquecem os vínculos com as suas bases de apoio e fragilizam o seu papel de organizadores das lutas ideológicas pacíficas numa sociedade democrática. Ao transformarem-se em meros invólucros onde cabe tudo e o seu contrário, abrem caminho para a sua irrelevância e substituibilidade com todos os perigos que daí advêm.
Mas há mais nestes orçamentos de que vale a pena falar. É importante que se perceba também que os consultores de comunicação política e as sondagens não são apenas ferramentas de suporte dos grandes partidos. São também, em certo sentido, elementos condicionadores da opinião pública e, portanto, dos próprios processos democráticos. As sondagens, por exemplo, medem o pulsar da opinião pública, mas, num típico mecanismo circular, são também ferramentas eficazes para a influenciar. Criam expetativas e dinâmicas que estão longe de ser irrelevantes para a abstenção ou mesmo para os resultados eleitorais. Aliás, se assim não fosse, não haveria razão para proibir a sua divulgação em vésperas dos escrutínios.
De igual forma, os consultores de comunicação política não tratam apenas da cor das gravatas dos líderes partidários. Não raras vezes criam, moldam e distribuem informação e dados a jornalistas e a comentadores no espaço público. Nada disto é por natureza ilegítimo nem seria justo lançar uma suspeição generalizada sobre os profissionais destas áreas. Devo dizer, aliás, que no quadro das várias funções empresariais que fui desempenhando ao longo da vida, sempre fiz uso de estudos de opinião e de agências de comunicação. Mas é bom que se tenha consciência de que, num ambiente de enorme fragilidade do ecossistema mediático, com mecanismos de verificação de informações ou de validação de pressupostos técnicos de estudos de opinião mais rarefeitos, estes atores e ferramentas ganharam uma influência e uma preponderância acrescidas. É isso que explica, aliás, o esforço financeiro que os partidos dedicam a estes instrumentos e instituições.
Ora, se assim é, e se estamos a tratar do coração dos nossos sistemas democráticos que é, afinal, o ambiente em que acedemos a informação, formamos e consolidamos as nossas opiniões políticas, seria bom que, para garantir boas práticas e prevenir distorções, aos reguladores competentes não passassem desapercebidos este fenómeno e estes atores. Receio bem que possam estar parados no tempo e que o essencial lhes esteja a passar ao lado. Mas posso estar a ser injusto.
Regresso ao princípio. Se aguentou até aqui, é provável que concorde comigo. Tal como os nossos orçamentos domésticos dizem mais de nós próprios do que gostaríamos de supor, também os orçamentos de campanha podem ser um improvável, mas útil barómetro do estado da nossa democracia.»
21.4.25
André Ventura e Francisco
O que custa é que seja levado a sério porque arrastou mais 49 com ele para um Parlamento. Votos, por muitos que sejam, não apagam canalhice. Até podem alimentá-la.
Francisco
«Foi muito mais do que simplicidade e sorriso. Foi coragem. Porque não relativizou o sentido cristão da abertura a todos. Porque recusou veementemente os nacionalismos anti-imigração. Porque sacudiu as consciências de quem fecha as portas aos que não escolheram a sua orientação sexual. Porque recebeu as mães solteiras. Porque ousou denunciar o capitalismo selvagem como agressor do bem comum. Porque afirmou a ecologia e o combate à destruição do Planeta, a nossa “casa comum”, como desígnio de qualquer católico e não-católico. Porque promoveu, na senda de alguns dos seus antecessores, o diálogo inter-religioso como avenida aberta para a paz mundial. Porque combateu o clericalismo como um dos mais sérios cancros da Igreja Católica. Porque não se afundou no ritualismo. Porque abriu as portas a Cardeais de geografias esquecidas. Porque não baixou os braços, nem resignou, quando confrontado com o maior pecado da sua Igreja, a violação de tantos menores. Porque reabilitou alguns dos clérigos que tinham sido rejeitados pela instituição, porque viu o seu valor. Porque não mediu palavras, não teve medo, não falou só para dentro, não nos deixou o conformismo, mas sim a inquietude.»
Daqui.
Uma denúncia defensiva para neutralizar o escrutino ético a Montenegro
«Todos sabem para que servem as denúncias anónimas de que temos falado. Foi Hugo Soares que explicou, na TSF, em fevereiro (episódio 25 do Conselho de Líderes, com Mariana Leitão), que os partidos as usam como forma de fazer política. Ficam claros, então, os objetivos desta denúncia contra Pedro Nuno Santos, que não corresponde a qualquer dado novo. Neste caso, não são ofensivos. São defensivos.
Os factos remontam a 2018 e as notícias a 2023. Tudo esclarecido, de tal forma que o próprio Ministério Público já tinha arquivado, no Porto. Estranhamente, o caso voltou a ser aberto, noutro lugar. De ambas as vezes, em vésperas de eleições e com base em denúncias anónimas. No primeiro, mantendo a discrição a que a lei obriga. A nova moda são as averiguações preventivas, um ato meramente administrativo que, por não corresponder a uma investigação judicial, tem de ser, diz a lei, especialmente sigiloso. E, apesar disso, o Ministério Público confirma-o para os jornais, no caso de Pedro Nuno Santos, enquanto o procurador-geral da República fala disso à porta da procuradoria, no caso de Luís Montenegro. Seja qual for o PGR, o abandalhamento do MP parece não ter limites.
Disse, desde que as eleições foram marcadas, que dispensava o Ministério Público em mais uma campanha eleitoral. Este desejo foi expresso, na altura, perante o caso de Montenegro. As investigações que existiam podiam seguir, sem fazer disso alarde. As que não seguiram podem esperar um mês. António Costa demitiu-se por ser “suspeito” e nada avançou no último ano e meio. Não é que a pressa seja a imagem de marca do MP. O debate que estamos a fazer, e não precisamos do Ministério Público para isso, é ético. Chega-nos o escrutínio mediático, político e, caso venha a existir CPI, parlamentar.
Nas últimas duas décadas, o Ministério Público encarregou-se de banalizar as suspeitas. Quem não se lembra de rusgas a ministérios por causa de bilhetes de avião para ir à bola? Curiosamente, um dos envolvidos foi Montenegro. Depois de ter sido noticiado que tinha viajado a expensas da Olivedesportos, pagou a despesa, pôs as datas dos jogos nos cheques e tudo seguiu como antes. Mas, como o MP judicializou a ética, tudo que não seja tratado na justiça deixou de ser visto como falha. Nem mesmo o que a justiça trata, porque se tudo acaba em nada, nada deve ser levado a sério. E é o que está de novo a acontecer.
Há, no entanto, uma diferença entre o papel da PGR nos casos de Luís Montenegro e de Pedro Nuno Santos. No primeiro, envolveu-se depois de o tema ser notícia. No segundo, envolveu-se para fazer do tema notícia.
A denúncia anónima contra Pedro Nuno Santos não serviu para o incriminar. Ser suspeito de receber dinheiro do pai para comprar casa não chega para tanto. Serviu para neutralizar a ação do PS nos casos éticos de Montenegro. Serviu para deixar Pedro Nuno Santos na defensiva. E talvez seja aproveitado para a PGR encerrar as duas averiguações preventivas sem ser criticada. Uma solução salomónica de autodefesa.
E serviu, claro, para tentar fazer uma equiparação para os mais distraídos. Não se compara, como é evidente, receber dinheiro do pai com recebê-lo da maior empresa de casinos do país enquanto se é primeiro-ministro. Ou outros casos que se vão conhecendo e que definem um perfil ético, político e profissional.
Se querem perceber com o que está a ser feita a comparação, vejam a ultima notícia do Expresso sobre a forma como a construtora ABB se comportava na Câmara de Espinho, assumindo a combinação de que a previsível derrapagem orçamental na construção do canal ferroviário seria resolvida por um acordo em tribunal. E recordem-se de que foi neste preciso negócio que Montenegro, então advogado da autarquia, fez o estranhíssimo papel de, num parecer, defender os interesses da construtora contra o seu cliente. A mesma construtora que forneceu o betão ao empreiteiro e projetistas (os mesmos do canal ferroviário) que lhe fizeram a casa.
Perante isto, a tese contra Pedro Nuno Santos é a de que a conhecida fábrica do pai, com mais de 50 anos de existência, recebeu, como tantas empresas portuguesas de referência (é o caso), fundos comunitários. E que o pai o ajudou a comprar casa. Curiosamente, essa ajuda na compra da casa da Praça das Flores, cuja venda lhe permitiria comprar outra em Telheiras, é anterior à sua ocupação do cargo de ministro, nunca tendo, entretendo, ocupado qualquer cargo com relação à atividade da empresa. Isto, claro, para além das ajudas que todos os pais que podem dão aos seus filhos.
Não gosto do striptease que Pedro Nuno Santos fez no site do PS. Ainda menos da expressão gasta e absurda de que “quem não deve não teme”. Mas compreendo a escolha. Provavelmente não poderia ser outra, depois do comportamento opaco de Montenegro, que criticou. Abre precedentes que me preocupam, mas permite-lhe desafiar o primeiro-ministro a fazer o mesmo em relação a negócios empresariais que nada têm de pessoal.
O contraste da reação corre bem a Pedro Nuno Santos. Mas, ao contrário de alguns, não acho que isso chegue para ser bom para ele. Mesmo que a acusação seja absurda, nunca é positivo termos de nos defender. Sobretudo quando se vem de excelentes debates. Para os que querem ser convencidos de que são todos iguais ou para os mais desatentos, as gordas chegam para instalar a dúvida. Mas o ataque de que Pedro Nuno Santos foi alvo é, acima de tudo, eficaz como forma de diminuir o efeito da razão pela qual estamos a ir a votos: a falta de ética de Montenegro. E foi para isso mesmo que serviu.»
20.4.25
Dúvidas pascais
- Pai, o que é a Páscoa?
- Ora, Páscoa é …uma festa religiosa!
- Igual ao Natal?
- É parecido. Só que no Natal comemora-se o nascimento de Jesus e na Páscoa a sua ressurreição.
- Ressurreição?
- Ressurreição é tornar a viver após ter morrido. Foi o que aconteceu com Jesus, três dias depois de ter sido crucificado. Ele ressuscitou e subiu aos céus. Entendido?
- Mais ou menos... Mãe, Jesus era um coelho?
- Que parvoíce é essa? Estás-te a passar! Coelho? Jesus Cristo é o Pai do Céu!
- Mãe, mas o Pai do Céu não é Deus?
- É filho! Jesus e Deus são a mesma coisa. Vais estudar isso na catequese. É a Trindade. Deus é Pai, Filho e Espírito Santo.
- O Espírito Santo também é Deus?
- É sim.
- É por isso que na Trindade fica o Espírito Santo?
- Não é o Banco Espírito Santo que fica na Trindade, meu filho. É o Espírito Santo de Deus. É uma coisa muito complicada, nem a mãe entende muito bem, para falar a verdade nem ninguém.
- Bom, se Jesus não é um coelho, quem é o coelho da Páscoa?
- Eu sei lá! É uma tradição. É igual ao Pai Natal, só que em vez de presentes, ele traz ovinhos.
- O coelho põe ovos? Não era melhor que fosse galinha da Páscoa?
- Era, era melhor, ou então peru.
- Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro, não é? Em que dia é que ele morreu?
- Isso eu sei: na Sexta-feira santa. Morreu na Sexta-feira santa e ressuscitou três dias depois, no Sábado de aleluia.
- Um dia depois portanto!
- Não, filho - três dias!
- Então morreu na quarta-feira.
- Não! Morreu na sexta-feira santa... ou terá sido na quarta-feira de cinzas? Ouve, já me baralhaste todo! Morreu na sexta-feira e ressuscitou no sábado, três dias depois!
- Como !?!? Como !?!?
- Pai, qual era o sobrenome de Jesus?
- Cristo. Jesus Cristo.
- Só?
- Que eu saiba sim, porquê?
- Não sei não, mas tenho um palpite que o nome dele tinha no apelido Coelho. Só assim esta coisa do coelho da Páscoa faz sentido, não achas?
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Poderes grotescos e discursos que fazem rir
«A sabedoria popular diz que há males que vêm por bem. Sou supersticioso, tenho medo de contrariar o povo. Mas tenho para mim que quase sempre os males vêm por mal, e certos poderes distribuem-nos generosamente. Os casos maiores são os de Putin e Netanyahu. E Trump? Esse, ilustra na perfeição o protagonista dos poderes grotescos — expressão que tomo de Michel Foucault, na sua aula de 8 de janeiro de 1975, no Collège de France (aulas reunidas no livro Les anormaux). Poderíamos também deter-nos em Bolsonaro. Ou recuar uns anos e pensar num dos mais primorosos executantes do estilo: Silvio Berlusconi. Estes juntavam aos poderes grotescos os discursos que fazem rir — para continuar com as expressões de Foucault nessa célebre aula.
A sua análise revela-nos como o grotesco não é um acidente na história do poder, mas algo sempre presente ao longo dos tempos. Não se trata, pois, de excecionalidade, mas de regularidade — o que o dá como algo de essencial nos rituais de exercício do poder. Recua ao império romano, à figura do imperador e ao ridículo que o habitava. Vem até ao nazismo e a Mussolini para evidenciar o grotesco como um dos procedimentos essenciais à soberania arbitrária: “Mostrando explicitamente o poder como abjeto, infame, ubuesco ou simplesmente ridículo, não se trata, creio, de limitar seus efeitos e descoroar magicamente aquele a quem é dada a coroa. Parece-me que se trata, ao contrário, de manifestar da forma mais patente a incontornabilidade, a inevitabilidade do poder, que pode precisamente funcionar com todo o seu rigor e na ponta extrema da sua racionalidade violenta, mesmo quando está nas mãos de alguém efetivamente desqualificado”.
E portugueses, não arranjas ninguém?, estarão já a perguntar os do costume, apegados ao refrão de que os políticos são todos iguais. Nos 51 anos de democracia, alguém que tenha chegado a um cargo político de grande destaque e que exemplifique os poderes grotescos — não, não arranjo ninguém. É por isso que não devemos dizer tão mal dos nossos políticos: como em tantos outros domínios, ainda não conseguimos chegar tão longe — aleluia, aleluia! (porque hoje é Páscoa).
Já quanto aos discursos que fazem rir, esses abundam — e mais abundam os que dão vontade de chorar, de tão saturados de repetitividade, de ligeireza, de coisa-nenhuma. É por isso que não devemos ser críticos para com o enxame de influencers vaidosos e desmiolados que esvoaça nas redes sociais e que é hoje um importante difusor de ideias — aliás, de conteúdos. Porque o que é preciso é fazer conteúdos, cuja capacidade de viralizar é inversamente proporcional à densidade das ideias. A atenção que são capazes de suscitar é filha dos discursos que fazem rir. E, ao prolongar-lhes o estilo e o alcance, expande-lhes o efeito. É por isso que os principais líderes dos poderes grotescos apostam maciçamente nestes recursos, demonstrada que está a sua capacidade de difusão nos mais jovens.
Mas não atiremos para os digital born a responsabilidade pela atual ascensão dos poderes grotescos nas democracias. É que, se estes líderes conseguem chegar ao topo, é porque fazem vibrar no mais recôndito de nós a fúria da besta: “Os fuhreres de fraldas, adormecidos, com ar inocente, no interior de cada um de nós — é que convém não conhecer. Os tribunais do Santo Ofício, os inquisidores-mores, os estalines que nos habitam a todos, que reinam em zonas obscuras da nossa vida interior, sob a forma de obsessões, de frustrações impossíveis de suportar, de agressividade mil vezes reprimida — é que importa não conhecer.” (João de Sousa Monteiro, Tire a mãe da boca, 1978)
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