20.4.25

Poderes grotescos e discursos que fazem rir

 


«A sabedoria popular diz que há males que vêm por bem. Sou supersticioso, tenho medo de contrariar o povo. Mas tenho para mim que quase sempre os males vêm por mal, e certos poderes distribuem-nos generosamente. Os casos maiores são os de Putin e Netanyahu. E Trump? Esse, ilustra na perfeição o protagonista dos poderes grotescos — expressão que tomo de Michel Foucault, na sua aula de 8 de janeiro de 1975, no Collège de France (aulas reunidas no livro Les anormaux). Poderíamos também deter-nos em Bolsonaro. Ou recuar uns anos e pensar num dos mais primorosos executantes do estilo: Silvio Berlusconi. Estes juntavam aos poderes grotescos os discursos que fazem rir — para continuar com as expressões de Foucault nessa célebre aula.

A sua análise revela-nos como o grotesco não é um acidente na história do poder, mas algo sempre presente ao longo dos tempos. Não se trata, pois, de excecionalidade, mas de regularidade — o que o dá como algo de essencial nos rituais de exercício do poder. Recua ao império romano, à figura do imperador e ao ridículo que o habitava. Vem até ao nazismo e a Mussolini para evidenciar o grotesco como um dos procedimentos essenciais à soberania arbitrária: “Mostrando explicitamente o poder como abjeto, infame, ubuesco ou simplesmente ridículo, não se trata, creio, de limitar seus efeitos e descoroar magicamente aquele a quem é dada a coroa. Parece-me que se trata, ao contrário, de manifestar da forma mais patente a incontornabilidade, a inevitabilidade do poder, que pode precisamente funcionar com todo o seu rigor e na ponta extrema da sua racionalidade violenta, mesmo quando está nas mãos de alguém efetivamente desqualificado”.

E portugueses, não arranjas ninguém?, estarão já a perguntar os do costume, apegados ao refrão de que os políticos são todos iguais. Nos 51 anos de democracia, alguém que tenha chegado a um cargo político de grande destaque e que exemplifique os poderes grotescos — não, não arranjo ninguém. É por isso que não devemos dizer tão mal dos nossos políticos: como em tantos outros domínios, ainda não conseguimos chegar tão longe — aleluia, aleluia! (porque hoje é Páscoa).

Já quanto aos discursos que fazem rir, esses abundam — e mais abundam os que dão vontade de chorar, de tão saturados de repetitividade, de ligeireza, de coisa-nenhuma. É por isso que não devemos ser críticos para com o enxame de influencers vaidosos e desmiolados que esvoaça nas redes sociais e que é hoje um importante difusor de ideias — aliás, de conteúdos. Porque o que é preciso é fazer conteúdos, cuja capacidade de viralizar é inversamente proporcional à densidade das ideias. A atenção que são capazes de suscitar é filha dos discursos que fazem rir. E, ao prolongar-lhes o estilo e o alcance, expande-lhes o efeito. É por isso que os principais líderes dos poderes grotescos apostam maciçamente nestes recursos, demonstrada que está a sua capacidade de difusão nos mais jovens.

Mas não atiremos para os digital born a responsabilidade pela atual ascensão dos poderes grotescos nas democracias. É que, se estes líderes conseguem chegar ao topo, é porque fazem vibrar no mais recôndito de nós a fúria da besta: “Os fuhreres de fraldas, adormecidos, com ar inocente, no interior de cada um de nós — é que convém não conhecer. Os tribunais do Santo Ofício, os inquisidores-mores, os estalines que nos habitam a todos, que reinam em zonas obscuras da nossa vida interior, sob a forma de obsessões, de frustrações impossíveis de suportar, de agressividade mil vezes reprimida — é que importa não conhecer.” (João de Sousa Monteiro, Tire a mãe da boca, 1978)


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