27.3.21

Vem aí o Verão



 

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Pobre Birmânia

 



«É Dia das Força Armadas na Birmânia e o que já se sabe da repressão deste sábado contra os manifestantes pacíficos chega para ter a certeza que se trata do dia mais sangrento desde o golpe militar do início de Fevereiro no país. Durante uma parada militar na capital, Naypyitaw, o líder da junta militar, Min Aung Hlaing, reafirmou que os soldados “procuram unir-se a toda a nação para salvaguardar a democracia”. Na véspera, a televisão estatal dissera que os manifestantes se arriscam a ser alvejados “na cabeça e pelas costas”. (…)

Segundo várias testemunhas e relatos em notícias locais, as forças de segurança mataram mais de 90 pessoas em todo o país.»
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As minhas amigas e os meus amigos negacionistas da Covid

 

«Tenho várias amigas e amigos que são negacionistas da Covid-19. Não, não são terraplanistas. Não, não são ignorantes. Eu já me cansei de argumentar com eles (em privado, com os que aceitaram discutir), porque quando não há uma base mínima para o diálogo, que é o reconhecimento dos factos, não há argumento racional que prevaleça.

Para eles, por exemplo, está mais que provado que o confinamento não produz qualquer efeito. Como assim?, dirão vocês. Mas não é um facto que Portugal, quando começou o atual confinamento, tinha o pior índice do mundo de mortos por Covid por cem mil habitantes, e hoje tem um dos melhores índices da Europa? Pois… estão a ver o que significa dizer que não há uma base comum elementar para que o diálogo se estabeleça?»

Luís Leiria

Continuar a ler AQUI.
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Os movimentos pela “verdade” que negam a pandemia



 

«As origens destes movimentos são muito diferentes, têm várias fontes e algumas tradições, mas hoje fazem parte de uma nova extrema-direita que está a emergir em vários países europeus e nos EUA. A classificação de extrema-direita tem sentido, porque a sua génese no populismo actual não é equilibrada no conjunto do espectro político, ou seja, comunica mais com o quadro tradicional dos temas da extrema-direita, de onde vêm muitos dos seus elementos e para onde vão muitos dos seus elementos.

Sublinhe-se desde já que alguns dos movimentos, por exemplo, contra a ciência, existem também na esquerda, mas são mais “calmos” e menos militantes do que os seus congéneres à direita. Há raras excepções, uma das quais é o antiespecismo radical que inclui formas de “guerrilha”, por exemplo, para “libertar” animais que estão a ser usados por laboratórios para testar medicamentos, implantes, cosméticos. Se é por isso possível comparar as teorias das “medicinas alternativas”, “holísticas”, homeopáticas, “orientais”, do veganismo, de formas de “regresso à natureza”, como, por exemplo, a propaganda dos partos em casa, que já causaram mortes, ou movimentos precursores da luta contra as vacinas, elas estão longe da excitação agressiva dos movimentos actuais pela “verdade”.

Outra observação prévia é que as medidas de restrição e confinamento são particularmente danosas para certas áreas económicas, como a restauração, os espectáculos, o turismo, e isso significa um pano de fundo social – com falências, perdas de lucros, despedimentos, encerramento de empresas, quebra de expectativas económicas, pobreza – para a radicalização dos movimentos pela “verdade”. O custo social e económico da pandemia e do combate à pandemia são os factores a que se deve prestar mais atenção, para se diminuir o processo de radicalização em curso.

Voltemos à “verdade”, nome absurdo mas revelador da pretensão destes movimentos de que são detentores de algum conhecimento especial que está a ser escondido pelo poder político e pelos cientistas, que estão a usar a pandemia como pretexto para terem mais poder e para limitar as liberdades. Estão a tentar criar uma “ditadura” em nome de interesses ocultos para o vulgo, mas bem conhecidos dos “verdadeiros”, seja a conspiração judeo-maçónica, o grupo de Bilderberg, os demónios vivos de George Soros e de Bill Gates, os que estão a encher os ares de sinais 5G, ou alienígenas maléficos. Como diz um cartaz empunhado por um senhor “verdadeiro”: “Os mafiosos da farsa covid grupo Bilderberg com a loucura da nova ordem mundial seguidos pelos lacaios políticos mundiais da maçonaria e do Opus Dei. Acordem.”

Todas estas teorias da conspiração estão aí e circulam em Portugal, e têm um único motivo: não há pandemia, há uma “gripezinha”, os mortos não morreram de covid, mas de outras enfermidades, devem tomar uma série de remédios ou mezinhas – o mais célebre, pela propaganda fantasiosa de Trump-Bolsonaro, foi a hidroxicloroquina –, o uso de máscaras destina-se a tapar os “sorrisos”, porque, como diz um cartaz, as “máscaras geram desconfiança”.

A segunda palavra mais usada é “liberdade”, hoje uma palavra que também está doente de tanto abuso. Uma mãe e uma filha ainda criança posam numa destas manifestações com uma dupla de cartazes que são todo um programa. “Não ao uso de máscaras nas escolas/ não ao novo normal/ temos o direito de respirar ar puro”, diz o cartaz da pobre da criança. E o da mãe diz: “Não ao uso obrigatório de máscaras na rua/ não DGS controlo a mais! Poder a mais!/ não aos controlos DGS/ não ao novo normal/ não consentimos!” Ou seja, querem tirar-lhes a liberdade para terem um “novo normal”. Um outro cartaz explica que esse “novo normal” é uma “ditadura”, resultado destas “medidas perversas”.

O que exigem é liberdade para não usar máscara, liberdade para se fazer festas seja com que número de pessoas for, liberdade para andar aos beijos e abraços, liberdade para ir aos restaurantes, visitar os lares, etc. Podiam lembrar-se de acrescentar outras liberdades, como seja não usar capacete nas motas ou cinto de segurança, andar nas estradas a 200 à hora, entrar livremente na casa das pessoas, porque o direito de propriedade é uma usurpação (isto não dizem, claro, para não parafrasearem Proudhon e a sua “propriedade é um roubo”…), e por aí adiante. Na verdade, em nenhum destes casos está em causa a liberdade, que é de outra natureza e que nada tem que ver com o uso de máscaras.

A maioria destas irresponsáveis patetices não se ficam pelos cartazes “verdadeiros”, encontram-se também em artigos de opinião no Observador, que podiam ser citados como versões dos cartazes acima – e, se não fossem pagos, já de há muito mereceriam outra exposição –, ou nas manifestações do Chega e proliferam como vírus nas redes sociais. Estão lá exactamente os mesmos temas, a “ditadura” de Costa e do “bloco central”, o abuso das medidas de confinamento contra as “liberdades”, a inutilidade das máscaras, a “invenção” da pandemia.

Se nós fôssemos, mais do que já somos, uma sociedade má, tomávamos à letra estas reivindicações. Muito bem, querem ter estas “liberdades”, façam uma declaração de que se responsabilizam pelos custos do tratamento da covid, caso fiquem infectados. E se fôssemos uma sociedade ainda pior, não os deixávamos entrar no SNS, onde os tratamentos são gratuitos, porque os pagamos todos nós. E depois exigir uma segunda declaração sobre a responsabilidade de indemnizar todos os que se provem que foram infectados por um dos “verdadeiros” e, no caso de essa infecção resultar numa morte, condenação por homicídio. E depois dar-lhes um autocolante a dizer: “Já sou livre, venha a covid que eu não tenho medo.” Tenho quase a certeza de que não ia ser preciso distanciação social, as pessoas fugiam todas…»

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26.3.21

Realidades verdadeiramente importantes



 

Redes sociais e OCS cheios de notícias sobre a camisola poveira infamemente roubada por Tory Burch ao património nacional e ainda ninguém disse o que interessa: a dela é feita com lã macia ou pica desesperadamente como a original?

Notícia AQUI.

A Europa ensandeceu

 



«"Saímos de França para vir para Madrid. É surreal poder beber uma cerveja num bar, quando em Paris estamos confinados. É mágico", explica o sorridente Mathieu de Carvalho, estudante de 22 anos que chegou à capital espanhola com mais três amigos.

Desde o fim da primeira onda da pandemia e o desconfinamento em junho de 2020, a região de Madrid mantém as suas portas abertas aos estrangeiros. Agora, a chegada da primavera e o bom tempo atraem um turismo em busca de museus, bares, restaurantes e teatros abertos. (…)

Mas, ao mesmo tempo, e com exceção das Ilhas Canárias, as viagens estão proibidas entre as regiões de Espanha, exceto por motivos de força maior.»
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Cândidos e contentes

 


«Tinha de ser um francês. Numa semana recheada de más notícias, indecisões, atrasos, confinamentos, vagas de infeções e planos frustrados sobre a vacinação e a guerra das vacinas, o comissário europeu Thierry Breton anunciou, e foi logo expandido o bravo anúncio por todos os media, que a imunidade coletiva da Europa chegaria no dia 14 de julho. Num dia específico. Dia 14. De julho. Ninguém na União Europeia se lembrou de perguntar como é que um homem de negócios, sem nenhuma credencial científica ou outra exceto como ex-ministro das Finanças e professor da Harvard Business School (e sabemos como a menção de Harvard faz tombar todas as dúvidas dos descrentes e das massas ignaras) é capaz de prever um acontecimento destes, o Graal do corona, a imunidade coletiva, com uma precisão destas. Nenhum cientista se aventurou nestas paragens. Nem o dr. Fauci.

Monsieur Breton, francês de gema, educado nas escolas de elite de Paris, nem hesitou. Saído dos ares condicionados e rarefeitos da Comissão Europeia, onde responde a Ursula von der Leyen, para a luz clara da realidade da pandemia e do fracasso das vacinas na Europa, Breton vaticinou que, em breve, tudo estaria resolvido. O mundo subdesenvolvido pode estar infetado ou morto, e sem vacinas, mas nós, na Europa, estaremos protegidos e de regresso à boa vida bebericando champanhe nas esplanadas dos cafés. As variantes que virão dos outros, dos estrangeiros, não nos afetarão porque teremos no bolso o passaporte verde e na mucosa nasal a imunidade. À míngua de hospedeiros, o vírus definhará. No dia 15 de julho, estaremos livres.

Porquê o 14 de julho? Aqui, entra a França. Derrotada na guerra da descoberta das vacinas, a França reclama para o seu Dia da Bastilha, o seu feriado nacional, o seu 14 de julho, o fim do medo da pandemia e mesmo da dita pandemia. Dá imenso jeito ser no dia da Tomada da Bastilha que inaugurou a Revolução Francesa, porque neste dia podemos comemorar com uma data gaulesa a vitória sobre o vírus que veio da China (como vem tudo o resto). Os franceses poderão sair para a rua e dançar não ao som da derrocada do poder aristocrático, e da tomada do poder pelo povo e a burguesia, mas ao som da agonia viral. Com esta conversa, Breton espera, esperemos, dar aos revoltados franceses uma esperança e impedir a tomada do Eliseu no ano que vem pela senhora Le Pen, armada de furor revolucionário.

E tudo isto se passa no ano da graça de 2021, cumprido um ano de catástrofes acumuladas, sem que ninguém se interrogue se será aceitável continuar a ouvir este tipo de inanidades, semelhantes às de outros políticos que acham que a estupidificação das audiências e a anestesia geral que a pandemia e os confinamentos induziram se curam, como a miséria e a morte que o vírus provocou e provoca, com solipsismos otimistas.

O otimismo leibniziano do professor Pangloss, claro. Temos de reler o “Cândido”, de Voltaire, francês com mérito, que ridiculariza na novela picaresca os governos, os exércitos, os filósofos, os teólogos, e, claro, o otimismo de Leibniz. Cândido chega à conclusão que os sistemas falham e que mais vale sobreviver confiando em nós, cultivando “o nosso jardim”. Sendo hoje um dos livros do cânone ocidental, ensinado, lido e cultivado nas escolas que o senhor Breton frequentou, “Cândido” foi imediatamente banido apesar de publicado na clandestinidade, e considerado um livro blasfemo, um manifesto contra os intelectuais e um crime de sedição. O terramoto de Lisboa de 1755 foi uma das inspirações de Voltaire, uma cidade devorada pelos incêndios e pelas águas do tsunami que galgaram as ruas. Não, não podíamos estar, leibnizianamente, no “melhor dos mundos possíveis”.

Voltaire era um autor que utilizava a sátira para as suas avaliações filosóficas servidas por uma pena literária. “Candide ou L’Optimisme” é a obra de um humanista que quis combater o pensamento feito e o fanatismo religioso. No século das Luzes, a lucidez de Voltaire batia-se pela liberdade de expressão, a plataforma superior da política.

Um século depois, em “Bouvard et Pécuchet”, um livro admirável sobre a estupidez, Flaubert elevaria o conceito de ideia feita a uma espécie de proposição filosófica. “Bouvard et Pécuchet”, publicado postumamente em 1881, inacabado, é um tratado sobre a vulgaridade que se pretende intelectual. Estranhamente presciente do fenómeno das redes sociais e da opinião generalizada e inútil que hoje por aí abunda e orneia em todas as plataformas do narcisismo contemporâneo. A selfie do cérebro comum. Bouvard e Pécuchet são dois homenzinhos ociosos que se interessam por tudo, todas as ciências, religiões, filosofias, teologias, sistemas, literaturas, e tudo debatem e manuseiam sem nada saberem ou aprofundarem. Querem elevar este sistema de ignorância a uma pedagogia. Um amontoado de ideias superficiais que reproduzem as generalidades da bêtise humaine. Na Europa, depois da revolução de 1848, o debate político era aceso e os dois reformados postados numa pastoral e medíocre existência, observam-se ao espelho como dois intelectuais ativos e informados. Mais não fazem do que associar-se a um movimento geral de falsas tranquilizações perante a incerteza de um tempo em mutação.

Toda a história do combate à pandemia na Europa, o continente mais culto do planeta, e que os politicamente corretos me deixem em paz porque considero a cultura do Ocidente a mais perfeita e a mais sofisticada, a que nos habilita, nós, europeus, a compreender o mundo em que vivemos, é uma história de falsos otimismos. Os políticos, perante a adversidade e a hipótese do erro, acharam que a propaganda virtuosa os salvaria do desastre. O desastre seria percebido como uma catástrofe natural, como um terramoto, sem intervenção humana. Ora, foi a intervenção humana que falhou. Os políticos continuam a acenar-nos com um mundo pós-pandemia que estaria intacto para nos receber e à nossa jovialidade. Se estivermos vacinados, o turismo regressará. Se estivermos vacinados e com um passaporte poderemos salvar o verão. Se estivermos vacinados, a vida regressará como dantes. No dia 14 de julho.

A experiência demonstra que nenhuma destas bêtises acertará no pleno. O que os políticos teriam de fazer, e seria um exercício intelectual em vez de voluntarista, era prever e prevenir o pior cenário. O que nunca fizeram. O SNS colapsou? Colapsou. Que dizemos? Dizemos que não colapsou. Em Portugal, o que faremos se o turismo não regressar? O que faremos se a aviação não se salvar? O que faremos se as variantes do planeta não vacinado tornarem as vacinas obsoletas? O que faremos se os confinamentos em acordeão matarem uma economia sem recursos e sem riqueza? O que faremos se as alterações climáticas inutilizarem as decisões do presente, como a do aeroporto? O que faremos quando tudo arde? Em vez da preparação para o pior, atiram-nos migalhas de planos falseados, esperanças falseadas e promessas falseadas, incluindo a ‘bazuca’, um conceito dotado da espessura da ignorância. E assim nos manteremos cândidos.»

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25.3.21

Aretha Franklin

 



Chegaria aos 79, hoje.
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Quando o termo «geração à rasca» nasceu

 

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Um país incapaz de se organizar



 


Escrevi já há uns tempos que os meus netos talvez venham a ser vacinados antes de eu o ser, já que as fases que se seguem à primeira talvez (talvez…) sejam convenientemente organizadas. Reforço essa convicção:

«A uma semana da data inicialmente prevista para o fim da primeira fase da vacinação (31 de março), apenas 30% da população que integra este grupo tem a vacinação completa e 61% recebeu a primeira dose. No início do processo, que arrancou ainda em dezembro com os profissionais de saúde e de lares a serem inoculados, estimava-se que nesta altura já houvesse 1,4 milhões de pessoas vacinadas. Mas não só esse número ainda está longe como o período anunciado para completar a primeira fase já foi prolongado até ao final de abril.»
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A representação parlamentar de partidos de direita radical faz os seus apoiantes sentirem-se legitimados

 


«O sucesso eleitoral da direita radical é um fenómeno global. Nos últimos cinco anos, candidatos de direita radical venceram eleições no Brasil (Bolsonaro), Estados Unidos (Trump) e Filipinas (Duterte). Na Europa, praticamente todos os países têm um partido de direita radical nos seus parlamentos. Em Portugal, concretamente, as eleições de 2019 foram marcadas pela entrada do Chega no parlamento – cujo líder foi uma das figuras principais das eleições presidenciais de janeiro de 2021.

Depois da Segunda Guerra Mundial e da experiência catastrófica do autoritarismo na Europa, a maior parte das democracias ocidentais criou normais sociais contra posições não alinhadas com valores da democracia liberal – como sejam posições racistas ou autoritárias. Como um conjunto de estudos na psicologia social mostra, em virtude destas normas, apesar de muitos indivíduos continuarem a ter estas posições em privado, tendem frequentemente a não as expressar explicitamente em público por saberem que elas não são aceitáveis numa democracia liberal.

Dado que políticos de direita radical como André Ventura transgridem abertamente estas normais, e dado o seu sucesso eleitoral em anos recentes, uma questão que se tem levantado no debate público é até que ponto tal sucesso normaliza a transgressão das normas de uma democracia liberal como a portuguesa.

A presença da direita radical no parlamento, concretamente, tem o potencial para ter tal efeito normalizador. Por um lado, ela sinaliza sucesso eleitoral pela parte do partido. Tal sinal pode fazer com que os eleitores percecionem que o número de apoiantes da direita radical é mais alto do que pensavam. Por outro lado, as instituições políticas têm o potencial para legitimar os atores nelas representados. Assim, à medida que os partidos de direita radical entram no parlamento dos seus países, poder-se-ia esperar que as suas posições se normalizassem e os seus apoiantes se sentissem legitimados.

Esta é a questão que motiva um artigo que publiquei recentemente na revista Comparative Political Studies (“Parliamentary Representation and the Normalization of Radical Right Support”). Neste artigo mostro que, efetivamente, a representação parlamentar de partidos de direita radical normaliza posições de direita radical.

O artigo baseia-se numa nova medida de quão aceitável é expressar apoio à direita radical.

Esta medida consiste na proporção do voto oficial de um partido que é declarado em inquéritos pós-eleitorais. No rescaldo de cada eleição, estes inquéritos questionam uma amostra representativa da população acerca do seu sentido de voto nela. As entrevistas para tais inquéritos representam uma interação social com uma pessoa desconhecida (o entrevistador). Como tal, temendo ser julgados, muitos apoiantes da direita radical preferirão não declarar tal apoio.

De facto, o voto na direita radical que é declarado em tais inquéritos é consistentemente inferior ao seu resultado eleitoral real. Esta pressão social, no entanto, não se estende de igual forma ao voto, dado que este se faz em privado. Como tal, o voto oficial num partido representa uma medida de quantos eleitores apoiam a direita radical na ausência de pressões sociais. Em contrapartida, o voto na direita radical que é declarado em inquéritos pós-eleitorais representa uma medida de quantas pessoas numa população estão dispostas a assumir ao entrevistador que apoiam a direita radical, apesar da pressão social para não declarar tal apoio.

O artigo mostra que a proporção do voto oficial na direita radical que é declarado em inquéritos pós-eleitorais aumenta significativamente quando estes partidos adquirem representação parlamentar. As análises principais do artigo focam-se em dados de 80 partidos de direita radical em 21 países, entre 1996 e 2018. Os resultados mostram que, por cada 10 indivíduos que haviam votado na direita radical, quatro a cinco pessoas adicionais estavam dispostas a admitir que o haviam feito se estes partidos tivessem tangencialmente entrado no parlamento (comparados com partidos que tivessem ficado tangencialmente aquém do apoio eleitoral necessário para entrar no parlamento).

Os resultados demonstram também que o efeito se torna mais forte à medida que aumenta o espaço de tempo entre a eleição e a entrevista para o inquérito pós-eleitoral. Isto sugere que a normalização das posições da direita radical se faz ao longo do tempo e que as instituições políticas enviam, de facto, sinais acerca de que comportamentos são aceitáveis numa sociedade.

Estas análises são corroboradas por análises adicionais ao nível individual (por oposição às análises iniciais, ao nível do partido) e por um estudo de caso do partido UKIP, no Reino Unido, antes e depois de este entrar no parlamento. Em ambos os casos, os resultados corroboram a conclusão principal. Quando os partidos de direita radical têm representação parlamentar, os eleitores sentem-se significativamente mais confortáveis em expressar-lhe apoio.

No seu todo, as análises do artigo mostram que, apesar de haver normas sociais contra a expressão de posições de direita radical, o continuado sucesso de políticos de direita radical pode levar à erosão dessas normas. É importante sublinhar que os resultados do artigo não sugerem que esta consequência seja somente fruto de as posições dos eleitores se tornarem mais radicais. Pelo contrário, o artigo sugere que o sucesso da direita radical faz com que indivíduos que já tinham posições de direita radical, mas que não as expressavam em público, se sintam mais confortáveis em fazê-lo. Estes resultados têm importantes implicações, principalmente tendo em conta que este efeito se poderá fazer sentir não apenas na declaração de apoio à direita radical, mas também num conjunto de outros comportamentos associados com a direita radical e contrários aos valores da democracia liberal.»

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24.3.21

Estado da arte

 

É sempre com muita atenção que leio o que escreve Tiago Correia:

Reunião do Infarmed de hoje (23.03.2021)
2 conclusões, 2 desafios e 1 lembrete

Conclusões
1. a disseminação da infeção continua controlada, o que é essencial recordando que ainda estamos em processo de desconfinamento. É previsível que os contágios aumentem. O que se pretende é que esse aumento seja ténue (através de rastreios, testes e cumprimento do isolamento).
2. Estamos a proceder melhor do ponto de vista de testagem e de vigilância genómica, o que é essencial para a qualidade da tomada de decisão técnica e política.

Desafios
1. Decidir se se mantém a abertura das escolas. As projeções mostram que o aumento do R(t) nas próximas semanas pode levar-nos para o sinal amarelo, o que de acordo com a matriz de risco suspende o desconfinamento. Terá que se decidir sobre o que fazer nessa circunstância.
2. Gestão das fronteiras e soluções de retoma económica. O papel das variantes (na transmissão e na letalidade) ficaram bem patentes, o que no contexto de atraso da vacinação é ainda mais preocupante. Deverão ser procuradas soluções (turismo interno?) para compensar algumas restrições que se devem manter na circulação internacional de pessoas.

Lembrete
1. Estamos num bom momento e sabemos por experiência quais os sinais a interpretar perante o agravamento da infeção. Sabemos que os comportamentos não irão mudar além do que já mudaram. A solução está em compensar através de planos de testagem e de rastreio muito efetivos e adaptáveis à realidade.

Tiago Correia no Facebook, Professor no Instituto de Higiene e Medicina Tropical
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Como nos protegemos dos negacionistas da vacina da covid?



 

«Já me aconteceu, como a todos, ter cuidados de saúde por causa de viagens. Tomei a vacina da febre amarela julgo que para ir ao Peru. Quando ia à Índia anualmente em trabalho fazia a profilaxia da malária (tremendamente tóxica; na última destas viagens estava a tentar engravidar e já não a tomei, porque de tão benigna podia ter consequências uterinas). Tenho visto, portanto, com normalidade a discussão sobre o passaporte de vacinação da covid. É de elementar bom senso assegurarmos que os vírus e as variantes viajam pouco pelo mundo.

Porém, julgo que a conversa está só, e mal, focada nas viagens. Inicialmente os cientistas diziam-nos que a covid provavelmente iria tornar-se mais suave, correria pela população como uma normal gripe. O que se passa é o contrário. O contágio tem garantido o surgimento de variantes mais selvagens, mais contagiosas e tão ou mais mortais. Que podem, ou não (não sabemos), ser combatidas com as vacinas já existentes.

A vacinação do mundo todo levará ainda dois ou três anos, nas alternativas mais otimistas. Ora uma variante surgida numa favela do Rio de Janeiro ou de Deli, ou numa aldeia da Tanzânia, contagia com facilidade até à Europa. As vacinas poderão ou não atenuar este contágio. Mas quanto maior a proporção de população não vacinada, também maior a potencialidade de catástrofe sanitária – e económica – que vem com estas novas variantes. Por outro lado, se muita gente não se quiser vacinar, sabemos lá se não nos tornaremos também os felizes produtores de uma nova estirpe virulenta de covid.

Parece-me, então, que temos de preparar estratégias para nos proteger do perigo que a população não vacinada representa. Claro: todas as pessoas adultas têm liberdade de não se vacinarem. Pela minha parte, nem tenho vontade de debater se as vacinas são fiáveis ou não. Cada um faz com o seu corpo o que quer. Além disso, a conversa é inútil. Trata-se de pessoas para quem, primeiro, a pandemia não existia ou não era mortal. Depois os casos confirmados eram falsos positivos. As máscaras – que comprovadamente contrariam o contágio de vírus respiratórios, como se viu com a inexistência de gripe neste inverno que passou – não funcionam e são elementos de destruição populacional em massa. Os mortos numerosos deveram-se somente a problemas de falta de capacidade hospitalar. Sabe-se lá por que razão, estavam ótimos de saúde mas morreram por falta de ventiladores. Foi teimosia de levar a covid literalmente até ao fim, certamente. E agora a vacina é um perigo.

Tivemos no fim de semana passado um ajuntamento de, dizem, três mil pessoas, sem máscaras, protestando contra o mundo numa manifestação de adolescência serôdia. Os cartazes contra a vacinação destacavam-se. É fácil rirmo-nos de quem se manifesta sem levar com uma carga policial enquanto nos garante viver na mais restritiva ditadura, assim de nazi para cima. Com o ar new age de São Francisco ali à Rua da Betesga. As rezas de olhos fechados que a multidão parecia fazer nas fotografias. A satisfação de se considerarem grandes rebeldes, tão corajosos como (pelo menos) os membros da Resistência na França ocupada da Segunda Guerra Mundial.

No entanto, o ridículo não nos pode fazer esquecer o perigo. Um dos organizadores da manifestação foi diagnosticado com covid. Não sabemos quantas pessoas terá contagiado. A vacinação está atrasada na União Europeia. Há ainda muita gente com idade e problemas de saúde pré-existentes suscetíveis de desenvolver formas agudas e mortais de covid. As pessoas não vacinadas são, e vão continuar a ser (e com novas variantes pior), um perigo para todos, vacinados ou não.

Posto isto, questiono-me. Vamos aceitar alunos nas universidades que não se vacinam, colocando em risco os colegas? Vamos ter pessoas não vacinadas nas empresas com capacidade de contagiar outros trabalhadores? Teremos gente fazendo atendimento ao público sem vacina e disseminando covid pelo dito público? Empregados de mesa em restaurantes, onde os clientes não estão sequer de máscara? Profissionais como médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, cabeleireiros, massagistas e por aí em diante: não teremos o direito de saber se aquela pessoa tem uma maior vulnerabilidade à covid ou se foi vacinada?

Nada disto é risco teórico. Posso apresentar a minha experiência. Quando tive covid, não fui contagiada por ninguém num contacto de proximidade sem máscara. Foram todos testados. Terei sido contagiada por alguém numa loja, num tratamento de saúde ou restaurante.

Parece-me justo que, se toda a gente pode recusar a vacina contra a covid, também os demais têm o direito de se proteger de quem assim se constitui um risco para a saúde. Não tenho respostas definidas, sobretudo em tocando ao direito à educação e ao trabalho. Mas é uma conversa que precisamos de ter, para obter um consenso que concilie quer o direito ao trabalho, à educação e às alucinações dos anti vacinas, bem como à proteção de todos os restantes seres pensantes do país.

Sem dúvida que em certas profissões, em implicando proximidade interpessoal, os empregadores têm de poder exigir o passaporte de vacinação da covid. Não rejeito a ideia de hotéis, companhias aéreas e outras transportadoras, restaurantes, ginásios, salões de estética e por aí em diante pedirem o mesmo aos clientes antes de aceitarem prestar-lhes serviços. É de basilar sensatez alguém num guichet ou num supermercado, atendendo centenas de pessoas por dia, ter de ser vacinado – ou colocado noutra função. Uma empresa tem de poder obrigar ao teletrabalho, caso seja possível, quem com facilidade contagia colegas a cada espirro de inverno.

Cada um tem o direito de fazer escolhas para si, para o seu corpo e saúde. Mas não pode verter sobre o resto da comunidade as consequências das escolhas que livremente tomou.

Demos, portanto, lugar aos legisladores para começarem a debater como se protege a sociedade quando a crise aguda da covid passar. Concretamente, dos negacionistas das vacinas. Entretanto tratemos de proteger a comunidade já. A PSP está a elaborar um processo crime contra os organizadores da manifestação do passado fim de semana, onde todas as regras sanitárias foram quebradas. Esperemos que o Ministério Público prossiga com a intenção. Afinal os resistentes aos nazis durante a Segunda Guerra Mundial estavam dispostos a morrer pela causa. Não esperamos menor espírito de sacrifício dos gloriosos negacionistas da vacina da covid.»

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Dia do Estudante 1962


 

24 de Março é, para muitos de nós, uma data inesquecível em que manda a tradição que no juntemos na Cantina Velha de Lisboa, num mais do que tradicional jantar. Em 2020, as inscrições estavam feitas, o espaço reservado, mas o dito jantar já não aconteceu. Dissemos então que este ano lá estaríamos, que a festa seria de novo nossa. Não será.

Mas como acordei hoje com um saudável humor negro, deixo aqui um aviso ao professor Marcelo e ao dr. Costa: façam bem as contas, ainda podem decretar mais uns 25 Estados de Emergência, mas parem lá isso a tempo porque, no próximo ano, vamos mesmo festejar o 60º ANIVERSÁRIO.
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23.3.21

De pernas para o ar

 


Um bom conselho nos tempos que passam...

Pensar de pernas para o ar
é uma grande maneira de pensar
com toda a gente a pensar como toda a gente
ninguém pensava nada diferente

Que bom é pensar em outras coisas
e olhar para as coisas noutra posição
as coisas sérias que cómicas que são
com o céu para baixo e para cima o chão

Manuel António Pina, in O país das pessoas de pernas para o ar
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E isto dura há mais de um ano


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Pontue a verdade. Se não gostar, damos-lhe outra

 


«No "Daily Telegraph", equaciona-se vincular uma parte do salário dos seus jornalistas ao número de cliques que tenham os seus artigos e ao número de assinaturas geradas. Pelo menos, o "Guardian" assim o garante, depois de ter acesso a um mail dirigido aos funcionários e ter recolhido vários testemunhos. Pelo que consegui perceber, a informação não foi totalmente confirmada pelo jornal visado. Certo é que, por dificuldades técnicas, a medida não avançará já. Mas o editor do jornal considera justo que aqueles que trazem mais leitores sejam mais bem pagos. Os jornalistas indignaram-se e levantaram objeções, esperando que seja uma ideia louca que passará. Tenho uma notícia para lhes dar: não passará. Mais tarde ou mais cedo ela vai chegar a quase todas as redações. Já é esse o espírito instalado, quando, nas redações, há painéis com tráfego online de cada notícia.

É provável que muitos jornalistas e editorialistas do "Telegraph", conotado com a direita (enquanto o "Guardian" é mais ligado à esquerda), tenham defendido esta lógica para muitas atividades. Que a produtividade deve ser medida e premiada no salário. À partida, parece justo. Todos já tivemos colegas que, fazendo pouco e esforçando-se nada, recebem o mesmo que todos os outros. E sabemos o mal que isso faz a uma organização. Todos, da esquerda à direita, valorizamos o mérito e o esforço. Mas não há nada como uma proposta destas aplicada ao jornalismo para se perceber a perversidade da lógica produtivista como ética geral do trabalho. Sobretudo a atividades que tem funções sociais, como o jornalismo, a medicina ou na academia.

Não é por acaso que jornalistas de um meio de comunicação social conotado com a direita se indignam com esta proposta, na liberal Inglaterra. Ela corresponde à destruição do jornalismo. O critério de um jornalista que recebe por cada clique não será o da verdade, muito menos num tempo em que as pessoas deixaram de a distinguir da mentira. Não será o da relevância. Quem perderá tempo a escrever sobre cultura ou assuntos internacionais? Que pobre miserável se entregará a ler e a explicar estudos ambientais? A tratar de temas complexos e aborrecidos? Mesmo que sejam os mais relevantes para o futuro de um país ou do mundo. Quem dará tempo a minorias se é a maioria que o pontua? O critério também não será o da sobriedade. Aquilo a que já assistimos em títulos de jornais, enganadores para puxarem pelo clique desprevenido, passaria a ser incontornável para o jornalista que não quisesse viver na penúria.

Hoje, muitos jornalistas são escravos de editores e diretores que abandonaram a sua fidelidade ao jornalismo para se transformarem em meros representantes do acionista na redação. Com esta proposta, passam a ser escravos dos leitores. Parece bom? É péssimo. Um jornalista que dá aos leitores o que eles querem não faz jornalismo. Não lhes conta coisas incómodas. Não segue o critério da relevância. Substitui o interesse público pelo interesse do público. O interesse público norteia o jornalismo, o interesse do público norteia o comércio.

A maioria dos jornalistas (e também dos comentadores) vive entalada entre o seu dever deontológico e social e a atividade empresarial da imprensa. Não é a única atividade em que isso acontece e isso não é, por si só, um problema incontornável. Quando empresas privadas de comunicação social deixam de procurar o lucro até nos devemos preocupar: quer dizer que os acionistas procuram comprar influência política por via do jornalismo. Como em muitas outras atividades, a regulação e a autonomia deontológica dos profissionais deveria garantir que os planos não se confundem. Os jornalistas fazem jornalismo, não são meros produtores de conteúdos.

O problema é que, de uma economia de mercado, passámos para uma sociedade de mercado. Permitimos que, em vez desse equilíbrio e dessa tensão, que exige conflito e regulação, a ética do mercado tomasse conta de todos os domínios da nossa vida. Como em todos os momentos em que a balança cai demasiado para um lado, as coisas correm mal.

Transformar cada artigo ou cada jornalista num produto torna o jornalismo inviável. Mata toda a sua ética e todo o seu propósito. E fomos nós, jornalistas, que deixámos que isto acontecesse. Assumindo que vender notícias era a nossa função. Permitindo que as administrações dos órgãos de comunicação social entrassem nas redações. Abdicando de poder e de autonomia. E assumindo guerras comerciais entre empresas de comunicação social como uma questão que nos diz respeito. Não diz. É assunto dos acionistas.

A lógica das estrelas que damos aos motoristas da Uber, que achamos excelentes por nos darem a ilusão de ser patrões, vai infetar todos os domínios da nossa vida. E vai afetar o jornalismo crítico - ou o que sobra dele. Perde-se a própria ideia de jornalismo de referência, que não pode depender de cada notícia, mas do conjunto coerente que deve ser um jornal. O jornalismo incómodo não é o jornalismo popular e populista, que simula afetar os poderes estabelecidos enquanto torna quem o lê, quem o ouve e quem o vê cada vez mais desinformado. Não é aquele que indigna o público, provocando o gesto imediato de clicar numa notícia e pontuá-la. É o que alimenta o que de menos imediato existe em nós: a inteligência. É o que faz o leitor pensar e perceber a realidade.

Quando um jornal de referência, como o "Telegraph", começa a pensar em institucionalizar no salário o clickbait, sabemos que o jornalismo incómodo vai morrer. E o jornalismo incómodo é o que incomoda o público. Porque perturba verdades feitas em vez de as confirmar. Porque faz pensar antes de reagir. Não se queixem os que, na imprensa, acham que a ética do mercado tudo resolve. Ela aí está, para ditar a verdade. Se uma verdade não vende, não interessa. Se nos incomoda, dão-nos outra.»

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22.3.21

O que nós andámos p’ra’qui chegar – Vem aí o 14º Estado de Emergência

 


Leio, confesso que com espanto, que escrevi o seguinte no dia 17.03.2020: «Se Marcelo decretar o Estado de Emergência amanhã, não merece o povo a que preside e está dispensado de se recandidatar». (17.03.2020)

Também vejo que, no dia seguinte, Paulo Pedroso afirmou no Facebook: «No Parlamento hoje mede-se a coragem e o apego à liberdade. Um capricho presidencial devia ser tratado como é, um capricho de um homem influente. Nada mais». (18.03.2020)

ATENÇÃO: Não estou a condenar nada. Apenas a verificar que algo de muitíssimo profundo nos aconteceu, está a acontecer. E que não sabemos, de todo, o que ainda está para vir.
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Tabaco e tristeza

 

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União Europeia: é isto uma potência global?

 


«Matt Hancock, ministro da Saúde do Reino Unido, anunciou este domingo que o país vacinou 873.784 pessoas no dia anterior. E com imoderado orgulho nacional acrescentou: “Este gigantesco esforço de equipa mostra o melhor da Grã-Bretanha”. Do lado de cá do canal da Mancha nenhum ministro poderia exibir nem um número dessa grandeza, nem uma declaração de confiança com esse tom. Pelo contrário, a pandemia continua a ser alarmante e a resistência das pessoas está a esgotar-se. No momento mais dramático da sua história recente, a União Europeia falha aos cidadãos. Já falhara na crise da dívida e volta a falhar na crise pandémica.

Se há uma ideia capaz de mobilizar os europeus em torno da União é a garantia de que num mundo global disputado por blocos hegemónicos a partilha de soberania é a melhor forma de garantir segurança, estabilidade e protecção. Com a Alemanha ou a França condenadas ao estatuto de potências médias face à Rússia, China ou Estados Unidos, ou até perante os emergentes, a União serviria não apenas para alicerçar a influência colectiva e poder à escala global. Quando o Reino Unido avançou para o “Brexit”, esta ideia foi dita e repetida até à exaustão: fora da UE, dizia-se, Londres seria um pequeno satélite, condenado a gravitar em torno dos grandes blocos.

O desastre das vacinas é perigoso porque pôs em causa essa ideia de que a União nos faz mais fortes e seguros. O que começou bem com um plano centralizado de compras e de distribuição deu lugar a um rotundo fracasso. No plano prévio de compras, a Europa comportou-se como o videirinho sempre à espera de descontos. Na disputa com a AstraZeneca, Bruxelas parece ter a mesma influência e poder que o Azerbaijão. Na comparação internacional, está atrás não apenas do Reino Unido ou dos Estados Unidos, mas de países como o Chile, a Sérvia ou Marrocos.

Estando em causa a vida de pessoas e a garantia de um lugar na linha de partida para a recuperação, a Europa voltou a ser o anão político de sempre. Ursula von der Leyen foi visionária no conceito da vacinação em comum, mas foi um desastre na forma como o executou. Com a batalha cada vez mais perdida, ameaça processos judiciais, bloqueios de exportações e mil e um expedientes para salvar a face. Tarde de mais: na campanha das vacinas, a Europa é um gigante com pés de barro. Milhões de europeus olham para o lado de lá do canal e perguntam: o que ganhamos em estar aqui? Esta ferida terrível vai demorar anos a ser curada.»

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21.3.21

Dois em um



 

«Dia da Poesia» e «Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial» – um poema de um africano.
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Eu vivia num outro planeta e não sabia

 


Exactamente há três anos, escrevi ao divulgar esta fotografia: «Entre Taipé e Nagasaki o mar está assim e o vento nem deixa abrir a janela».

Em 2021, num mundo confinado, tudo isto me parece ficção.
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Por eles e por nós

 


«Ao Júlio Resende e aos outros

Não é preciso ser Nostradamus reencarnado para adivinhar que Abril não trará paz de espírito e bolsos compostos aos agentes culturais. Há demasiadas variáveis em jogo, que fazem temer retoma feita de avanços, recuos e credos nas bocas. Acresce que os apoios prometidos - e devidos... - tardam em chegar e não há futuro sólido sem pagar contas passadas e presentes.

Receio pelo bem-estar das pessoas e pela anemia de produção cultural, os meus livros, discos e programas de televisão favoritos, de quando em vez, empurram-me porta fora - "lembras-te de Kundera? A vida não é aqui! Sacode a preguiça e goza um concerto ou uma peça de teatro ao vivo e a cores". E eu saio a resmungar, mas volto de coração cheio.

No meu caso, à preocupação solidária e interesseira junta-se a gratidão. Quando o Júlio Resende me desafiou para casarmos música, poesia e pintura e nos lançarmos à estrada foi de uma enorme generosidade. Ele sabia que mais pessoas acorreriam a ouvir-lhe o talento a solo do que com um apêndice a dobrar os setenta virgem naquelas lides. Sim, passei a vida em "palcos", mas em conferências e debates, jamais me atrevera a dizer um poema abraçado ao jazz em voz alta, muito menos improvisar a partir dele! O Júlio fê-lo por espírito de aventura e amizade, presenteou-me com memórias gratas que guardo no bolso da camisa; junto ao coração.

Mas o seu carinho não chegaria sem o de outros. As gentes das luzes, do som, da produção, os anfitriões que nos receberam de braços abertos em teatros lindos de morrer pelo país fora, longe dos grandes centros e perto de grandes dificuldades, mas teimando, teimando sempre. Porque as pessoas agradecem que lhes melhorem os acessos rodoviários, mas também exigem alimento fresco para alma e gosto e não apenas ecos longínquos.

É verdade, preocupo-me com pessoas reais que me atrevo a declarar amigas, com quem partilhei restaurantes e hotéis, que segredavam dos bastidores os resultados do Benfica e a quem confiava pergunta que exige total franqueza - "que tal correu?". E outras, que se nos juntaram de surpresa em palco, como o Salvador Sobral, o Valter Hugo Mãe e o meu filho João. Só em teoria estávamos em pé de igualdade; eles são artistas, eu um intruso agradecido.

Ferré - "Ils sont le clair matin dans vos nuits de tempêtes/ils sont le soleil noir de vos étés d"hiver/ils chantent dans la nuit à vos tempes muettes/ils plantent la Folie au fond de vos galères!/ Les artistes...

Quem tanto nos dá não deveria ser obrigado a quase mendigar a sobrevivência. A deles, em termos literais. Mas também a nossa, sedentos que estamos de esperança, essa loucura que permite suportar o sofrimento.»

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