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20.2.21
Os Cadernos GEDOC
Este texto foi publicado a pedido do esquerda.net. Mas fica também aqui divulgada a história de uma etapa pouco conhecida da actividade dos «católicos progressistas», poucos anos antes do 25 de Abril.
O ano de 1968 tinha sido alucinante em vários continentes e em muitas arenas, Portugal não foi excepção apesar de todas as limitações à liberdade que são conhecidas, e os chamados «católicos progressistas» estavam especialmente activos. Tinham-se multiplicado grupos mais ou menos clandestinos de padres e leigos, cada vez mais politizados e em conflito crescente com a hierarquia da Igreja, as reuniões e os trabalhos de elaboração e expedição de documentos prologavam¬ se, em ambientes cheios de fumo pela noite dentro, muitas vezes até de madrugada. Acabávamos exaustos e quantas directas não fazíamos para os empregos!
Podia enumerar muitas situações, mas limito-me ao caso do Pe. Felicidade Alves por estar directamente ligado ao tema deste artigo. Prior da paróquia de Santa Maria de Belém desde 1956, a partir de 1967 as suas intervenções começaram a causar incómodo e, no início de 68, ausentou¬ se estrategicamente para Paris para prosseguir estudos de Teologia Ecuménica. De visita a Lisboa por ocasião da Páscoa, resolveu fazer uma comunicação ao Conselho Paroquial, na presença de oitenta pessoas, comunicação essa que desencadeou um longo e atribulado processo que iria culminar no seu afastamento da paróquia, na suspensão das funções sacerdotais e, já em 1970, na excomunhão (ou seja, exclusão da própria comunidade eclesial). Tudo isto porque, na comunicação de 19 de Abril, se discutiram muitos problemas que iam da necessidade da abolição da censura ao direito à informação e à discussão da guerra colonial.
Desligado da paróquia, o Pe. Felicidade não parou e ficou a dever-se-lhe a iniciativa do lançamento dos Cadernos GEDOC (Grupos de Estudos e Intercâmbio de Documentação, Informações e Experiências): onze números publicados em 1969 e 1970, não datados para escaparem à obrigação de submissão a censura prévia, e não clandestinos, mas sim assumidos por trinta e um fundadores (1). A ideia era não deixar cair a dinâmica revelada em muitas acções de centenas de pessoas que se tinham associado à polémica do caso de Belém e fazê-lo à luz do dia para permitir encontros e discussões abertas.
Para não matar a iniciativa à partida, os objectivos dos Cadernos foram definidos em termos propositadamente genéricos e relativamente «inocentes»: «estar na linha da vanguarda cristã»; «prestar ouvidos atentos aos apelos dramáticos do mundo de hoje, repensar essas interpelações à luz da mensagem cristã»; «fornecer informação para que os leitores formem uma opinião pessoal esclarecida»; «fomentar intercâmbios de modo a formar uma autêntica cooperativa espiritual».
Mesmo assim, não tardaram as reacções da hierarquia da Igreja. Pouco depois do lançamento do nº 1, o Cardeal Cerejeira dirigiu uma longa comunicação ao clero de Lisboa (24.02.1969) onde afirmou: «Ocorre desde já observar, este Grupo que reclama (mas mal a propósito), “o Concílio não pode ser um logro”, esquece e abandona o mesmo Concílio numa contestação que se processa contra a sua letra e espírito. Quer-se dentro da Igreja, e tudo faz à margem dela, fora da obediência e comunhão com a sua autoridade, divinamente instituída, e até contra ela. (…) É, pois, obrigado pela defesa da unidade do rebanho a nós confiado, que desautorizamos aquele Grupo, organizado à margem da Igreja, mas declarando-se “dentro dela”, embora quebrado o vínculo da unidade com o Bispo, para sem missão pugnar por outra Igreja».
Um dos membros fundadores dos GEDOC era o então cónego Abílio Tavares Cardoso, ex-reitor do Seminário dos Olivais, que respondeu à comunicação do Cardeal declarando, entre outras coisas (17.03.1969): «A contestação que larva no interior da Igreja é para mim, hoje, o argumento mais forte da sua credibilidade. (…) Os graves incómodos decorrentes de continuar a pertencer a um grupo “desautorizado” são parte do normal sofrimento de uma Igreja convidada a “nascer de novo”. Resolvi, portanto, na dor e na esperança, continuar a fazer parte do grupo GEDOC».
Anúncio não alimenta nem trata
«As políticas de anúncio, de repetição de promessas que tardam em se concretizar ou se esvaziam pelo caminho, esgotam-se sempre em pouco tempo. Num contexto como aquele que vivemos, carregado de ruturas na vida das pessoas, de desproteções, de sofrimento, de urgências que clamam políticas com rigor e ação, esse esgotamento acelera-se e torna-se perigoso.
São múltiplos os casos, no plano nacional e na União Europeia, em que entre o anúncio e a concretização se verifica um desfasamento abissal. Onde deveria haver agilidade e rapidez há meses a passar. Onde todos deviam estar abrangidos, não faltam exclusões. Onde precisávamos de recursos volumosos, há mãos cheias de muito pouco. Assim, a desconfiança, a incerteza, o desespero e o medo crescem e gera-se um quadro cada vez mais propício ao cinismo político e à manipulação.
A "bazuca" europeia, tão festejada pelo volume e rapidez com que foi anunciada, afinal não começou a chegar em 2020 e já se diz que talvez venham uns "pacotes de vitaminas" lá para o outono. E não nos admiremos se a coisa resvalar para 2022. A receita milagrosa pode, assim, reduzir-se a mezinhas.
É uma tolice política apresentar a "bazuca" como o meio que vem garantir combate eficaz à desproteção e à pobreza, acudir à recomposição da economia, propiciar "reformas estruturais", alavancar um processo de transformação do país. Quanto à exaltação do poder da "bazuca, as posições da Direita até ultrapassam as do Governo. Mesmo que (por milagre) a UE adote uma política financeira adequada à dimensão e caraterísticas desta crise que vivemos - reforçando imenso o apoio a países como Portugal -, nós só sairemos do pântano em que estamos se abandonarmos os austeritarismos tacanhos, se dotarmos o Estado de meios e operacionalidade, se fizermos forte investimento público, se qualificarmos e valorizarmos o emprego, se tratarmos da coesão entre gerações e territórios.
Os problemas também não se resolvem com fugas para a frente ou excesso de expectativa na ciência, como fez, esta semana, a presidente da Comissão Europeia ao transferir a esperança para as vacinas de segunda geração, quando aquilo que podia dar mais confiança, agora, era uma boa gestão do processo de vacinação. Ora, o da União está a ser um relativo fiasco. Os avanços científicos na área da saúde são importantíssimos, mas exige-se convocar muitos outros saberes humanos - científicos e não científicos - com princípios e valores éticos, para se evitar cenários aterradores. Desde logo, deite-se mão da ciência da boa execução das políticas.
O Governo não pode anunciar apoios que depois não aparecem ou se estreitam; não pode anunciar disponibilização de computadores que, entretanto, não compra. O ministro Sisa Vieira ao anunciar que a tarifa social da Internet será disponibilizada até junho, lá longe do reinício das aulas presenciais, abre espaço à ridicularização.
Esta falta de agilidade em tempo real é, em parte, filha de incertezas que hoje pairam sobre quem governa, mas acima de tudo, de uma conceção política que sacraliza o desinvestimento e a ortodoxia orçamental. Umas palavras de anúncio e a desmemória cultivada por certa Comunicação Social e pelo ciclo (e circo) noticioso, não substituem uma governação com ética e rigor, geradora de confiança.»
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19.2.21
António Gedeão (Rómulo de Carvalho) morreu num 19 de Fevereiro
ESCOPRO DE VIDRO
Estou aqui construindo o novo dia
com uma expressão tão branda e descuidada
que dir-se-ia
não estar fazendo nada.
E, contudo, estou aqui construindo o novo dia.
Porque o dia constrói-se: não se espera.
Não é sol que deflagre num improviso de luz.
É um orfeão de vozes surdas, um arfar de troncos nus,
o erguer, a uma só voz, dos remos da galera.
Cantando entre os dentes
um refrão anidro
abro linhas quentes
com um escopro de vidro.
Abro linhas quentes
sem tremer a mão,
com um escopro de vidro
de alta precisão.
in «Máquina de Fogo», 1961
O salazarismo não morreu
Ascenso Simões, um dos deputados do PS, que votou ontem contra o que votou ontem contra o Voto de Pesar por Marcelino da Mata.
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Memória Passada para Memória Futura
MARCELINO DA MATA – Voto de Pesar, Assembleia da República (18.02.2021)
A favor: PS, PSD, CDS, Iniciativa Liberal e Chega
Contra: BE, PCP, PEV, PAN, Joacine Katar Moreira e três deputados socialistas (Ascenso Simões, Paulo Pisco e Eduardo Barroco de Melo)
Abstenção: Cristina Rodrigues e seis deputados do PS (Porfírio Silva, Miguel Matos, Maria Begonha, Cláudia Santos, Joana Sá Pereira, Tiago Barbosa Ribeiro e Bruno Aragão)
(Daqui)
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Extravio de vacinas no país real
«Assistimos todos ao folhetim da vacinação indevida em horário nobre. Uma autarca descrita como mais avantajada furou a fila em Portimão, logo seguida por outros no Seixal, Arcos de Valdevez e Reguengos de Monsaraz. A Segurança Social de Setúbal atirou vacinas a todos os funcionários que as conseguiram apanhar. Na Associação de Farminhão, a responsável da cozinha ainda aproveitou uns restos. Nem a igreja resistiu à tentação, com relatos de padres inoculados em várias paróquias. Mesmo com os custos da insularidade, o movimento chegou aos Açores, na pessoa da diretora regional para a Promoção da Igualdade e Inclusão Social. No Porto, por aparente falta de comparência dos seus destinatários, 11 doses já preparadas acabaram na pastelaria ao lado das instalações do INEM.
O país, com razão, inquietou-se. Quando a escassez de vacinas é assunto diário, cada picada num braço não prioritário implica a desproteção de uma pessoa de risco. Pelo caminho, as suspeitas atingiram o próprio dirigente da task force, prontamente substituído por um militar que vestiu um camuflado para ir à televisão sinalizar o fim da rebaldaria. A Direção-Geral da Saúde regulou enfim o destino das sobras, determinando o seu aproveitamento segundo as regras da prioridade. Dado a legislação vigente só permitir sancionar funcionários do Estado ou equiparados, o PSD e o Chega apresentaram propostas de lei para a introdução de um crime autónomo com penas que vão, respetivamente, até três e cinco anos. Sem pôr em causa a rigorosa investigação da conduta de quem, em plena pandemia, consegue ficar imunizado antes da sua vez, criar legislação penal deste calibre em pura reação ao alarme social não me parece cumprir os requisitos da boa legística.
Pese embora a descrição do fenómeno como típico do chico-espertismo nacional, há vacinas extraviadas noutros lugares. A clientela abastada de um conhecido hospital privado parisiense está sob suspeita. Depois do anúncio da inoculação da mais famosa instrutora de spinning de Manhattan, o título no “The New York Times” era ‘Don’t hate the soulcycle celeb who got the vaccine. Hate the system’. Lá fora, o problema está no privilégio dos mais ricos; por aqui, no lugar de vacinas VIP, tivemos um retrato do país real do pequeno nepotismo e do compadrio local. Pelos vistos, a recém-adquirida imunidade por um obscuro provedor da Santa Casa da Misericórdia tem mais impacto mediático do que a vacinação da presidente do grupo Luz Saúde, impecavelmente penteada.
Enquanto vociferamos contra o sistema, talvez questionar em que medida contribuímos no passado para a sua instalação. Telefonemas e inscrições em listas andam a desviar vacinas por todo o território continental e ilhas porque, em Portugal, o “contacto certo” funciona rotineiramente como forma de obter um benefício em detrimento dos outros. A memória dos casos começa a esbater-se e o mais provável é acabarem todos algures nos meandros de mais uma série de inquéritos. Não sendo a situação mais censurável, a distribuição de sobras pelo INEM no estabelecimento comercial mais próximo pode bem ser a que vai ficar mais tempo no imaginário popular. Demasiada gente já foi um dia a prima do presidente da junta e ainda tem a esperança de ser a costureira da mãe do senhor prior. Daí a nossa perplexidade perante esta decisão de vacinar aleatoriamente quem está ali mais à mão sem que ninguém se tenha lembrado, antes, de usar o telemóvel para marcar um número — que até podia ser o meu.»
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18.2.21
18.02.1932 – Miloš Forman
Miloš Forman, o cineasta nascido checo, depois também norte-americano, chegaria hoje aos 89. Teve uma infância complicada com o pai, judeu, preso pela Gestapo quando tinha apenas 8 anos e levado para Buchenwald onde veio a morrer em 1944, um ano depois de a mãe ter tido a mesma sorte em Auschwitz. Durante a invasão da Checoslováquia, em 1968, Miloš partiu para os Estados Unidos e em 1977 adquiriu a sua segunda nacionalidade.
Pretexto para recordar três filmes «monstruosos»: Amadeus, Voando sobre um ninho de cucos e o primeiro que vi, sem nunca mais perder o rasto do autor: O baile dos bombeiros.
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Do inferno salvam-nos os políticos que nos fazem puros
«Não faço ideia se o vice-almirante Gouveia e Melo é uma pessoa competente. Quem o conhece tem vindo a público dizer que sim e por agora isso chega-me. Apesar de, ao contrário do seu antecessor, não ter qualquer relação com o Serviço Nacional de Saúde, com qualquer questão relacionada com saúde pública e com a rede que será fundamental na segunda e terceira fases de vacinação, estou certo que as suas capacidades de comando, de gestão logística e de reação em ambiente de pressão lhe garantirão um bom desempenho das funções. Não farei com Gouveia e Melo o que foi feito com Francisco Ramos. Porque acredito que não podemos continuar a bombardear aqueles de quem dependemos para que isto corra bem.
Apesar de não duvidar da competência do novo responsável e de Gouveia e Melo ter ocupado o segundo lugar na task-force, estou inclinado para acreditar que a escolha foi essencialmente política. António Costa sabe que um militar não é um alvo da oposição, sobretudo da oposição de direita. Porque um militar não tem ambições políticas. Porque não está ligado a uma fação política a ser atacada. E porque a direita tem um fetiche com a competência das Forças Armadas, único serviço do Estado, para além das forças de segurança, a quem reconhece uma competência inata. Desmente-o Tancos e, mesmo que fiquemos só pelos últimos anos, não foi o único caso. As Forças Armadas sofrem de todos os problemas que sofre o Estado português, com a agravante da opacidade, que as tornam menos fáceis de escrutinar. É interessante verificar como, mesmo no caso do roubo das armas e do subsequente comportamento da PJ Militar, o principal alvo mediático (e da oposição) foram políticos, deixando praticamente de fora os primeiros responsáveis por tudo o que ali aconteceu.
Se tenho razão e a escolha do novo coordenador da task-force também teve como objetivo retirar pressão política e mediática sobre o grupo de trabalho, está a correr muito bem. “O vice-almirante discreto que vem meter em sentido o plano de vacinação”, titulou a revista “Visão”, num perfil do militar logo depois da sua nomeação. O título revela um toque latino-americano que põe os jornalistas, eles sim, em sentido quando em vez de um político têm um oficial superior pela frente.
Instalou-se uma ideia na comunicação social: que o seu papel se resume a fiscalizar o poder político. Há pouco interesse em relação o que se passa em todas as estruturas que não envolvam, de alguma forma, políticos. Seja no setor social (a não ser que haja um autarca envolvido), nas ordens profissionais ou nas empresas (a não ser que haja suspeitas de corrupção que envolvam políticos). Isto acontece por facilitismo, porque o conflito interno inerente à atividade política torna mais fácil chegar à informação. Por medo, porque incomodar o poder económico e corporativo acarreta muito maiores riscos. E pelo populismo convicto que se apoderou de alguns jornalistas.
Seguindo a mesma lógica, instalou-se uma narrativa sobre os casos de vacinação indevida que tenta resumir as fraudes à clientela partidárias. Não a nego e continuo a achar assombroso que tanta gente sem escrúpulos ainda não tenha percebido o que mudou no escrutínio público. Mas não preciso de me afastar da demissão de Francisco Ramos para mostrar como isto é falso: a gota de água que levou à sua saída terá sido a descoberta, pelo próprio, de que médicos usavam o Hospital da Cruz Vermelha para passar à frente. Basta recordar este caso ou o do Hospital da Luz, logo depois, para desmentir a ideia que resume a chico-espertice a uma casta política. A ideia dos políticos corruptos que passam à frente dos heróis da saúde é confortável, mas ignora uma cultura de favor e cunha que é transversal à sociedade portuguesa. Ela também é visível no meio hospitalar, seja público ou privado.
Vivemos num país desigual e é nas estruturas intermédias, sejam lares, hospitais, autarquias ou IPSS, que isso é mais evidente. Porque a proximidade é maior, o poder é mais direto e o controlo menos intenso. Este país desigual precisa de expiar os seus pecados e atrasos e reserva à classe política, que é apenas igual ao lugar de onde vem, o papel de repositório de todos os males. Os políticos personificam todos os nossos problemas e nós, pobres vítimas puras em atos e motivações, sofremos às suas mãos.
Em Portugal, sofre o pobre que não conhece um médico, um advogado, um funcionário da autarquia, um diretor de uma escola lotada, alguém num lar sem vagas. E há uma minoria, muito mais alargada do que gostamos de admitir, que responsabiliza os políticos por tudo o que conhece ou pratica no seu quotidiano. Não se muda durante uma pandemia o que não se resolveu durante séculos.
O que aconteceu nos casos de vacinas indevidas resolve-se com a lei e a fiscalização possível num momento de emergência. Mas é um excelente espelho de tudo o que somos. E, ao contrário do que temos o hábito de pensar, não estamos sós no mundo. Só lá pomos quem nos dá jeito. Felizmente para o novo responsável pela task-force, os militares não cumprem essa função social de serem portadores da culpa coletiva. Os escândalos deixarão de ter a mesma centralidade. Já começaram a deixar. Porque se não tem político não tem interesse.»
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17.2.21
Quando faltam tantos médicos…
«Entre os 12 candidatos que foram à segunda fase das provas finais do Internato Médico em Saúde Pública, em setembro do ano passado, três desistiram durante o exame e cinco chumbaram.»
Pode ser que tenham existido todas as razões do mundo para isto acontecer, mas é terrível quando existe «uma falta tremenda de médicos nesta área».
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A guerra colonial nunca existiu (nem a ditadura)
«A morte de Marcelino da Mata, um comando negro do Exército português que lutou ao lado do colonizador, teve homenagem de Estado. O Presidente da República, o chefe de Estado-Maior General e o chefe do Estado-Maior do Exército foram ao funeral. O ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, mandou uma mensagem à Lusa: “O ministro da Defesa Nacional lamenta o falecimento e expressa o justo reconhecimento ao tenente-coronel Marcelino da Mata, um dos militares mais condecorados de sempre, pela dedicação e empenho depositados ao serviço do Exército português e de Portugal.” O ministro da Defesa, que ainda não era nascido quando começou a guerra colonial, faz agora 60 anos, nem repara que ao escrever aquilo está tão simplesmente a reconhecer as condecorações da ditadura e o “empenho” – que segundo Vasco Lourenço envolveu crimes de guerra – de um militar numa guerra injusta, que enviou para o matadouro um enorme contingente de jovens portugueses e nos tornou alvo de várias condenações da ONU. Imaginem o ministro da Defesa alemão a homenagear a “dedicação” e prestar o “justo reconhecimento” aos comandos nazis. Ia parecer um bocado esquisito, não era? Aqui em Portugal, como a guerra colonial, os crimes de guerra e os massacres nunca existiram, não faz mal. Além de que, ao contrário do imperialismo nazi, o império português era um “bom” império.
O PSD entregou um voto de pesar em que enaltece “a excelsa bravura” e o “exemplar heroísmo”. O CDS quer um dia de luto nacional. O meu amigo João Miguel Tavares diz que “a democracia portuguesa criou história oficial e entrincheirou-se nela”, só que vai ao ponto errado: essa história oficial que, para além das comendas da ditadura, ainda deu mais uma a Marcelino da Mata em 1994, passa por ignorar os massacres, como aqui escreveu Manuel Loff, os crimes de guerra, esquecer a história real e inventar uma mitologia do colonialismo agradável e da ausência de racismo. Há, decerto, nos jornais por estes dias mais referências às agressões a Marcelino da Mata no quartel do Ralis em 1975 do que às agressões que ele e os seus homens fizeram durante a guerra colonial – e isto diz muito de um povo que prefere esquecer que existiu guerra colonial, ditadura, presos políticos, torturadores, funcionários da polícia política, denunciantes. Como optámos (na verdade, os alemães fizeram o mesmo, exceptuando as altas patentes) por integrar o velho regime no novo regime, o esquecimento acabou por ser a via aceitável para o convívio possível. Mas o esquecimento não é digno de um povo adulto. E 60 anos depois do princípio da guerra, era bom trocarmos umas ideias sobre o assunto.»
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16.2.21
Alguma novidade?
«Um relatório sobre o extremismo de direita na Europa, divulgado esta segunda-feira, assinala a "normalização" política do Chega em 2020 e alerta para a "possibilidade de radicalização das formas de protesto da extrema-direita portuguesa".»
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16.02.1925 – Carlos Paredes
Nem parece, mas hoje é 3ª feira de Carnaval
E máscaras não nos faltam!
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A outra ameaça
«A nossa vida atual gira à volta de um único tema: covid-19. Mas a realidade é bem mais complexa. O Mundo, confinado ou não, continua a girar, e todos os problemas existentes, antes deste vírus ter tomado conta do Planeta, persistem. Mais do que isso. Estarão certamente a agravar-se. Quando voltarmos à normalidade (lá para o verão, a acreditar nas perspetivas otimistas), teremos de enfrentar o Mundo tal como ele nunca deixou de ser.
Para isso mesmo pretende alertar Bill Gates. O patrão da Microsoft, através da Fundação Melinda Gates, tem-se dedicado a apoiar a investigação aplicada aos países em vias de desenvolvimento. No livro "Como evitar um desastre climático", lançado hoje à escala global, lembra que o problema das alterações climáticas agudiza-se a cada dia que passa. E é no seu combate que o Mundo deveria concentrar-se daqui para a frente.
A pandemia pelo vírus SARS-CoV-2 e as alterações climáticas, afinal, não terão feito caminhos separados. Como muitos cientistas haviam já equacionado, e um estudo da Universidade de Cambridge vem agora confirmar, "as alterações climáticas podem ter impulsionado o aparecimento do coronavírus que provoca a covid-19, por contribuírem para o surgimento do habitat ideal para morcegos no Sul da China", país onde foram detetados os primeiros casos de SARS-CoV-2. Como explica Robert Beyer, da universidade do Reino Unido, "as mudanças climáticas no último século tornaram o habitat na província de Yunnan, no Sul da China, adequado para mais espécies de morcegos".
Parece óbvio, portanto, que a humanidade terá de mudar de rumo. E não nos venham dizer que a mudança começa em cada um de nós. O caminho jamais será invertido sem a aplicação de políticas sérias de descarbonização, sob pena de daqui a poucos anos estarmos num ponto sem retorno. E, provavelmente, de volta de mais uma pandemia - sem nada termos aprendido.»
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15.2.21
Alimentar vícios?
(Expresso, 15.02.2021)
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Abrir caminho
«Reconheço ao artigo que Fátima Bonifácio (FB) publicou a 11/2 neste jornal a virtude da clareza. A autora responde à questão de saber que tipo de relação deve a direita conservadora (a que chama “clássica”) estabelecer com a extrema direita xenófoba e racista, em quatro andamentos (ainda que não necessariamente pela ordem que se segue).
Primeiro andamento.
“As democracias, e Portugal em particular, enfrentam hoje em dia problemas que […] parecem insolúveis.” Portugal precisa “de uma barrela de alto a baixo”, mas a verdade é que “grande parte da Europa se tornou ingovernável”, face à irrequietude dos povos tornados “cada vez mais difíceis de contentar”. Ou seja, a democracia como sistema político tornou-se incapaz de superar a sua própria crise e agoniza na estagnação e na impotência.
Segundo andamento.
No centro das dificuldades está a ineficácia das eleições para assegurar uma resposta “liberal e democrática, mas forte” à magnitude dos problemas. Como combinar, interroga-se FB, “reformismo e popularidade e ganhar eleições”, quando raramente na Europa se engendraram soluções de popularidade com governança “forte”? Ou seja, para falar claro, a violência e a extensão das “reformas” exigidas (que prudentemente a autora se dispensa de apresentar) são incompatíveis com eleições livres e democráticas.
Terceiro andamento.
No caso das eleições portuguesas a coisa ainda é pior. Socorrendo-se de um texto do seu correligionário Rui Ramos sobre as eleições presidenciais, FB entende que o país só vota maioritariamente à esquerda porque está acorrentado ao Estado clientelar criado pelo PS. Segundo decreta Ramos, e FB confirma, “o Estado é de esquerda mas o país não é”. Ao contrário do que os resultados eleitorais enganadoramente indicam, explica-nos a autora, o país não vota maioritariamente à esquerda, é sim “colonizado pela esquerda”. Trump não diria melhor.
Ou seja, em Portugal as eleições teriam deixado de ser uma forma de legitimar o poder político. Elas não exprimem a vontade real dos eleitores, que só Ramos e FB sabem qual é. Retomando os velhos tropos do ultramontanismo reacionário dos anos 20 e 30 do século passado, esta nova direita conservadora atribui-se a si mesma, por força de uma misteriosa ordem natural das coisas (“manda quem pode”), o dom de saber o que realmente quer o povo, qual o verdadeiro sentido do “interesse da nação” e até o dever de impor ao país, mesmo contra ele próprio, os duros remédios da “salvação nacional” e das “barrelas”. A partir daqui vale tudo.
Quarto andamento.
E vale mesmo. FB constata que, na vigência da democracia, “a direita não se conseguiu impor (na realidade é disso que se trata) com boas maneiras e falinhas mansas”. É portanto o tempo da brutalização da política, a hora das “maneiras” do Chega, de a extrema direita xenófoba e racista agir como “pelotão da frente” para “abrir caminho” a uma “direita clássica” que, candidamente, a autora classifica como “democrática e – sobretudo – liberal”. Fica-se na dúvida se esta linguagem quase militar é ou não retórica… Não fosse o vulgo não reparar, FB insiste no facto do Chega ser o único partido, da direita à esquerda, que tem algo de novo para oferecer.
O problema é que esse novo é velho e sinistro. Tudo isto é regressão: a desqualificação das eleições é a porta de entrada desse novo tipo de ditaduras “iliberais” onde a autocracia se confunde com o neoliberalismo à solta. O discurso catastrofista sobre a inviabilidade da democracia e até do país constituiu-se, desde finais do século XIX, como prefácio ideológico de todos os atentados políticos contra a liberdade e a democracia no século XX. Ainda que a autora fuja a explicar-se sobre o que realmente propõe como solução política, o seu argumentário é o da fundamentação de uma estratégia subversora da atual ordem constitucional e democrática. Tal como o do Chega.
Numa coisa estou de acordo com FB. Quando, à angustiante pergunta “onde encontramos cabeças que nos orientem?”, responde com o Chega feito partido guia, FB está a confirmar o seu próprio diagnóstico sobre “o afundamento da criatividade intelectual e imaginação política” na Europa. E na “direita clássica” portuguesa.»
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14.2.21
Nova Zelândia não brinca em serviço
«A ordem de confinamento [de três dias], dada este domingo hoje pela primeira-ministra, Jacinda Ardern, vai obrigar quase dois milhões de pessoas a ficar em casa a partir da meia-noite, com escolas e empresas a fechar, com exceção de empresas consideradas "essenciais".
A causa do confinamento está no teste positivo ao novo coronavírus em três membros de uma família no fim de semana.»
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Manequins da Rua dos Fanqueiros
«Um velho amigo que já cá não anda dizia dos mais entufados interlocutores, quando punham o ar de quem engolira um garfo, que pareciam "manequins da rua dos Fanqueiros".
Nesta sexta-feira, ao ler que a proprietária de uma confeitaria da Corunha pediu, numa loja de roupas da vizinhança, manequins emprestados e os sentou à mesa, os vultos reclinados sobre os pratos, as luzes acesas e música nas colunas, chamando a atenção para os danos colaterais do confinamento, desci a Rua dos Fanqueiros a ver as montras. E que vi eu?
Três manequins negros em cada montra da Bruxelas. Na Tavares&Tavares, vestindo batas de enfermagem, os manequins pediam cuidados intensivos. Um homem de turbante azul permanecia imóvel no passeio, apreciando torradeiras na longa montra da Pollux. Manequins em pijama dormitavam na montra dos Armazéns Godinho. Outros, sem rosto, mas com casacos de peles, prometiam uma soirée dançante na montra da Impactos Moda. Os azulejos da Viúva Salles&Companhia desmaiavam perto da montra da Humana Vintage, onde uma velha máquina de costura amparava um manequim decapitado. A montra do Mundo dos Fatos era um mar de papéis anunciando "últimos dias!". Mas, encostando a cabeça ao vidro sujo, víamos um chão de destroços.
Há tempos, nas Caldas, e por certo em muitos outros lugares, alguém teve a ideia de pôr gente na montra, em vez de manequins. O caso das Caldas ocorreu em 10 a.C. (antes da Covid).
Dante Milano, tradutor de Baudelaire e amigo de Drummond e de Manuel Bandeira, fez um conto intitulado O Manequim, inspirado no caso de um tal Jaime Ovalle, seu companheiro de estúrdia nas noites do Rio. Quando saía do trabalho, o dito Ovalle parava longas horas diante de uma certa montra e ficava a contemplar um manequim pelo qual se apaixonou.
Penso num intrigante poema de João Cabral de Melo Neto: "Tenho no meu quarto manequins corcundas/ Onde me reproduzo/ E me contemplo em silêncio." E é como se visse Ovalle e o manequim olhando-se, perdidos, por detrás das máscaras.
Há dias provou-se que a notícia de manequins deitados em camas de cuidados intensivos num hospital do interior era falsa. Mas ocorre perguntar: tal como há cemitérios de automóveis, haverá cemitérios de manequins, onde possamos velar os nossos mortos fantasmáticos? O passeio na manhã de sexta fez-me crer que sim.»
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