18.2.21

Do inferno salvam-nos os políticos que nos fazem puros

 


«Não faço ideia se o vice-almirante Gouveia e Melo é uma pessoa competente. Quem o conhece tem vindo a público dizer que sim e por agora isso chega-me. Apesar de, ao contrário do seu antecessor, não ter qualquer relação com o Serviço Nacional de Saúde, com qualquer questão relacionada com saúde pública e com a rede que será fundamental na segunda e terceira fases de vacinação, estou certo que as suas capacidades de comando, de gestão logística e de reação em ambiente de pressão lhe garantirão um bom desempenho das funções. Não farei com Gouveia e Melo o que foi feito com Francisco Ramos. Porque acredito que não podemos continuar a bombardear aqueles de quem dependemos para que isto corra bem.

Apesar de não duvidar da competência do novo responsável e de Gouveia e Melo ter ocupado o segundo lugar na task-force, estou inclinado para acreditar que a escolha foi essencialmente política. António Costa sabe que um militar não é um alvo da oposição, sobretudo da oposição de direita. Porque um militar não tem ambições políticas. Porque não está ligado a uma fação política a ser atacada. E porque a direita tem um fetiche com a competência das Forças Armadas, único serviço do Estado, para além das forças de segurança, a quem reconhece uma competência inata. Desmente-o Tancos e, mesmo que fiquemos só pelos últimos anos, não foi o único caso. As Forças Armadas sofrem de todos os problemas que sofre o Estado português, com a agravante da opacidade, que as tornam menos fáceis de escrutinar. É interessante verificar como, mesmo no caso do roubo das armas e do subsequente comportamento da PJ Militar, o principal alvo mediático (e da oposição) foram políticos, deixando praticamente de fora os primeiros responsáveis por tudo o que ali aconteceu.

Se tenho razão e a escolha do novo coordenador da task-force também teve como objetivo retirar pressão política e mediática sobre o grupo de trabalho, está a correr muito bem. “O vice-almirante discreto que vem meter em sentido o plano de vacinação”, titulou a revista “Visão”, num perfil do militar logo depois da sua nomeação. O título revela um toque latino-americano que põe os jornalistas, eles sim, em sentido quando em vez de um político têm um oficial superior pela frente.

Instalou-se uma ideia na comunicação social: que o seu papel se resume a fiscalizar o poder político. Há pouco interesse em relação o que se passa em todas as estruturas que não envolvam, de alguma forma, políticos. Seja no setor social (a não ser que haja um autarca envolvido), nas ordens profissionais ou nas empresas (a não ser que haja suspeitas de corrupção que envolvam políticos). Isto acontece por facilitismo, porque o conflito interno inerente à atividade política torna mais fácil chegar à informação. Por medo, porque incomodar o poder económico e corporativo acarreta muito maiores riscos. E pelo populismo convicto que se apoderou de alguns jornalistas.

Seguindo a mesma lógica, instalou-se uma narrativa sobre os casos de vacinação indevida que tenta resumir as fraudes à clientela partidárias. Não a nego e continuo a achar assombroso que tanta gente sem escrúpulos ainda não tenha percebido o que mudou no escrutínio público. Mas não preciso de me afastar da demissão de Francisco Ramos para mostrar como isto é falso: a gota de água que levou à sua saída terá sido a descoberta, pelo próprio, de que médicos usavam o Hospital da Cruz Vermelha para passar à frente. Basta recordar este caso ou o do Hospital da Luz, logo depois, para desmentir a ideia que resume a chico-espertice a uma casta política. A ideia dos políticos corruptos que passam à frente dos heróis da saúde é confortável, mas ignora uma cultura de favor e cunha que é transversal à sociedade portuguesa. Ela também é visível no meio hospitalar, seja público ou privado.

Vivemos num país desigual e é nas estruturas intermédias, sejam lares, hospitais, autarquias ou IPSS, que isso é mais evidente. Porque a proximidade é maior, o poder é mais direto e o controlo menos intenso. Este país desigual precisa de expiar os seus pecados e atrasos e reserva à classe política, que é apenas igual ao lugar de onde vem, o papel de repositório de todos os males. Os políticos personificam todos os nossos problemas e nós, pobres vítimas puras em atos e motivações, sofremos às suas mãos.

Em Portugal, sofre o pobre que não conhece um médico, um advogado, um funcionário da autarquia, um diretor de uma escola lotada, alguém num lar sem vagas. E há uma minoria, muito mais alargada do que gostamos de admitir, que responsabiliza os políticos por tudo o que conhece ou pratica no seu quotidiano. Não se muda durante uma pandemia o que não se resolveu durante séculos.

O que aconteceu nos casos de vacinas indevidas resolve-se com a lei e a fiscalização possível num momento de emergência. Mas é um excelente espelho de tudo o que somos. E, ao contrário do que temos o hábito de pensar, não estamos sós no mundo. Só lá pomos quem nos dá jeito. Felizmente para o novo responsável pela task-force, os militares não cumprem essa função social de serem portadores da culpa coletiva. Os escândalos deixarão de ter a mesma centralidade. Já começaram a deixar. Porque se não tem político não tem interesse.»

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