«Foi anunciada, com grande excitação, a abertura de uma nova loja do Continente totalmente tecnológica, sem caixas. Ou seja, com menos trabalhadores. Essa é a sua verdadeira modernização. Boa para os acionistas, não sei se com grande vantagem para os clientes (pensem o que ganhámos com o atendimento automático telefónico, sem contacto com pessoas, no apoio ao cliente). Não há nada de surpreendente aqui. Depois da mecanização do trabalho fabril, este é o tipo de emprego que vai desaparecer: os trabalhos repetitivos de baixo rendimento, em que a tecnologia parece ser mais barata do que a mão de obra. Os trabalhos de custo baixo e menos repetitivos – como a limpeza de quartos de hotéis ou algum trabalho de minúcia na agricultura – são mais baratos quando feitos por imigrantes sem direitos do que o investimento que seria exigido em tecnologia.
A formação marxista que recebi na juventude livrou-me de um discurso moral sobre este tipo de dinâmicas que alguma esquerda adota para falar de “especuladores” ou “empresários sem escrúpulos”. E é por isso que, quando um empresário me diz, para parecer um bom samaritano, que ao contrário de mim criou imensos empregos, só consigo sorrir. Um empresário cria tantos empregos como um trabalhador que mantém a empresa sustentável e produtiva. Não é um ato benemérito. O empresário cria os empregos necessários para produzir o que o mercado parece querer ou poder consumir. Se criar um a mais ele vai desaparecer. Quem cria emprego em atividades que visam exclusivamente o lucro é o mercado. Eu escrevo neste jornal porque há quem me queira ler (ou anunciantes que não se importam que eles me leiam). No dia em que isso não aconteça deixarei de escrever.
O empresário diz isto porque quer ganhar superioridade moral num debate que não é moral. Só que eu não acho que um empresário padeça de qualquer inferioridade (ou superioridade) moral por buscar o lucro. Eu nem sequer acredito num capitalismo socialmente responsável ou ambientalmente sustentável. Acredito em políticas públicas, desenvolvidas pelo poder político, que levam a que ele se torne uma e outra coisa. Porque o poder político é moralmente superior ao poder económico? Não. Porque os eleitos representam o conjunto da sociedade e o seu dever é zelar pelos interesses da grande maioria com critérios de Justiça. Quando não o fazem, aí sim, há uma falha moral. O dever dos gestores é servir os interesses dos acionistas. Mesmo quando, conhecendo-se a sua alarvidade social e laboral, fingem que estão preocupados com o país, como faz o senhor da Ryanair. Os que não o fazem, dentro dos limites da lei, estão em falha profissional.
Os empresários querem reduzir custos. Desse ponto de vista, o seu objetivo é criar menos emprego, não mais. Mesmo que percebam que uma sociedade sem emprego não consome os seus produtos, nenhum vai pôr a sua empresa a cumprir esse papel. É por isso que a ambição pessoal, sem regulação pública, não tende para o equilíbrio, mas para o caos. Cabe ao Estado pensar no bem comum e até na sustentabilidade da economia. E é por isso que é absurdo transformar os empresários, por mais competentes que sejam, em oráculos da nação para políticas públicas. É como esperar que um pasteleiro seja dietista. Não é bondade ou maldade, competência ou incompetência. É perceber a função de cada um.
Resumindo: não tenho qualquer crítica moral a fazer a um gestor que decide abrir uma loja sem trabalhadores para poupar dinheiro aos acionistas ou provar que esse caminho tem sustentabilidade. São os acionistas que ele defende, não os trabalhadores. Muita gente reagiu à notícia dizendo que não vai usar estas lojas. Podem não o fazer no início, acabarão por o fazer no fim. Como fazem com a Via Verde e com imenso trabalho mecanizado em que já nem pensam. A resistência à mecanização como discurso político tem um nome: ludismo. Um movimento que, nos primórdios da industrialização e antes de os socialistas terem dado à resistência uma perspetiva mais sistémica, se dedicava à destruição de máquinas em protesto. Não resultou então, não resultará agora.
Mais uma vez, o debate não é moral. A tecnologia não determina as escolhas políticas, apenas as condiciona. É a forma e os objetivos como é usada que decidirá quem perde e quem ganha. Ela tende a acentuar as derrotas e as vitórias que já existem, a não ser que o Estado, que todos serve, atue. Não estava escrito em lado nenhum que a tecnologia que permitiu a Uber servisse para contornar as leis laborais. Como se vê em decisões recentes de tribunais, como no Reino Unido, é possível travar esse caminho. É a ausência de lei ou leis feitas à medida da Uber (a do governo português, por exemplo) que o permitem.
Cabe ao Estado e aos políticos pensar na forma de os desenvolvimentos tecnológicos beneficiarem o conjunto da população, e não apenas os donos das empresas. Que sirvam para trabalharmos todos menos horas e ganharmos mais, e não para criar uma massa de desempregados e uma população que concentra em si horas absurdas de trabalho para o desenvolvimento tecnológico que já atingimos.
Há quem defenda que os impostos sobre o trabalho passem a ser impostos sobre a tecnologia. Não acho que seja o caminho. É uma forma dissimulada de ludismo. Apenas atrasa o desenvolvimento tecnológico dos países que façam essa opção. É, a prazo, insustentável. A ideia mais interessante que ouvi, desenvolvida por António Brandão Moniz (sociólogo especialista nestes temas), foi a de beneficiar as empresas que conjugam desenvolvimento tecnológico com investimento em formação e reconversão profissional, prejudicando as que não o fazem. Uma política fiscal que sirva para a expansão e modernização e para acrescentar valor ao que se produz, e não apenas para reduzir custos. Porque é mau reduzir custos? É excelente, se servir mais gente. E não basta dizer que reduzir custos baixa preços ao consumidor. Isso de pouco serve se ficarmos todos desempregados.
A mecanização deste trabalho não é má, por si só. Ninguém sonha ser caixa de supermercado ou estar numa fábrica a fazer trabalho repetitivo. O ideal até seria que esta tecnologia nascesse, porque já ninguém aceita ser caixa de supermercado. A questão é se ao libertarmos os humanos desse trabalho conseguimos dar-lhe outro melhor, beneficiando-o. Para isso, é preciso uma política fiscal que desvie o dinheiro que apenas serviria para concentrar ainda mais a riqueza nuns quantos (é o que está a acontecer) e desemprego noutros para reconverter trabalhadores para trabalho mais qualificado, para reduzir horários ou criar um novo mercado de trabalho social e público. A questão não é como travar a tecnologia. É como pô-la ao serviço de todos - e não apenas de alguns. E isso cabe à política.»
.