«Houve um tempo em que os autarcas se orgulhavam de distribuir chaves em vésperas de eleições. E só demoliam barracas como epílogo do realojamento. Sentiam que isso lhes rendia votos. Hoje sentem que a demolição de barracas habitadas lhes dá votos. Porque antes se valorizava a competência de quem resolvia problemas da comunidade, hoje valoriza-se a suposta coragem de punir os infratores, “doa a quem doer”. Apesar de, como disse Helena Roseta, ser forte contra os fracos demonstrar grande fraqueza. Nunca algum autarca imaginou que pôr mais de 60 crianças ao relento podia ser popular. Mas talvez seja. E isto não é um retrato do que se tornou a política. É um retrato do que nos estamos a tornar.
Portugal já conheceu as barracas. Herdou-as da ditadura e erradicou-as com um programa de realojamento que, apesar de repetir os erros de que o resto da Europa já se arrependera, pretendia enfrentar o problema. A ninguém passou pela cabeça pôr-se a discutir a legalidade das barracas. As barracas, os sem-abrigo e as famílias a viver em parques de campismo não estão a regressar porque temos mais gente. Somos pouco mais do que éramos, apenas mais estrangeiros e menos nacionais. Elas estão a regressar porque centenas de milhares de casas foram desviadas para funções não habitacionais e o Estado é incapaz de construir outras, como fez há 20 anos, apesar de ter o dinheiro do PRR. No mesmo dia das demolições de Loures, os jornais noticiavam que comprar e arrendar casas implica uma taxa de esforço superior a 50% em 75 municípios e que há quase 250 mil casas vazias, fora do mercado de arrendamento ou venda. Quando o Governo do PS tentou forçar a entrada dessas casas no mercado, foi destratado como chavista e comunista. E Moedas juntou-se à manifestação do alojamento local. Foi tudo revertido e, no primeiro trimestre deste ano, os preços da habitação subiram 18,7%, três vezes mais do que a média europeia.
Os mesmos que colocaram um edital às 18h de sexta-feira para demolir barracas na segunda-feira de manhã, fugindo ao escrutínio judicial, enchem a boca com a lei. Mas ninguém mete um requerimento para viver na miséria. A barraca é construída porque chove na cabeça e faz frio. Por isso a Constituição não trata a habitação como um carro. O apelo do segundo populista inventado em Loures foi transmitido pela sua vice: que aquelas pessoas regressassem aos concelhos de origem. Da “reimigração” externa passamos para a interna, onde cada concelho fortifica as suas fronteiras contra a invasão da pobreza. É este o ar do tempo, tão graficamente revelado no pogrom de Torre-Pacheco. Neste tempo, o político não tem de ter competência para resolver os problemas, tem de ter coragem para punir. Maus autarcas, como Ricardo Leão, usam o chicote porque não trataram da cenoura. Sabem quem vai, entre a miserável taxa nacional de execução do PRR para a habitação, distribuir mais casas na Área Metropolitana de Lisboa? Isaltino Morais. Com todos os seus defeitos, não o ouvem agora, como não o ouviram durante os tumultos, a distribuir insultos pelos pobres. Tem trabalho para mostrar.
Assistimos à gentrificação das periferias, que recebem a classe média expulsa da capital. Sabendo-se que o metropolitano vai chegar a Loures (o que valorizará o concelho), ninguém quer ficar com a fava: os pobres, que vão sendo expulsos para cada vez mais longe dos lugares onde trabalham. O que o mercado não fizer, porque a construção da barraca foge à sua lógica, fazem os caterpillars. Com o aplauso dos que não os querem por perto.
O Estado social era o cimento de uma aliança entre classe média e pobres que nascia de uma ideia de comunidade de que os mais ricos sempre se autoexcluíram. Perante o seu declínio induzido, a classe média já não põe as suas fichas em serviços públicos e cidades que funcionem. Quer, para se precaver, o seguro de saúde, o colégio privado, bairros que sejam condomínios, onde os problemas não chegam. E ficar longe da lepra dos pobres, que a pode infetar a qualquer momento. É o sonho americano que leva ao subdesenvolvimento sul-americano. Na lógica meritocrática, o pobre não falha por culpa da comunidade, como estava implícito ao modelo social em que acreditávamos, mas por culpa própria. Seja nacional ou imigrante, o pobre é um criminoso em potência. Assim sendo, não é o Estado social que lida com ele, é o Estado policial, única alternativa para manter a ordem. Não é por acaso que a extrema-direita só fala de polícia e a IL apresentou a lei contra os “ocupas”, tão distante dos problemas atuais. Precisam de conter os estragos da sociedade que defendem. Oferecem a única linguagem útil na selva que sempre desejaram.»

1 comments:
"A barraca é construída porque chove na cabeça e faz frio."
... e já não é só o desemprego ou uma doença incapacitante que nos pode pôr, a qualquer um de nós, a viver na rua ou a ter que construir uma barraca...
Este artigo do DO é mais um murro no estômago dos que ainda têm alguma decência!
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