29.8.20

Bicharada Pré-Covid (10)



Os burros da Etiópia, 2013.

Num país paupérrimo são quase um ícone, tão grande é a sua quantidade, tão importantes as funções que exercem como meio de transporte de mercadorias e de pessoas: chegam mesmo a ser as «ambulâncias» que levam os doentes a quilómetros de distância. Verdadeiros heróis para os etíopes que dizem por graça que, na terra deles, «quem trabalha são as mulheres e os burros».




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Berlim, hoje



«Nas ruas de Berlim nasceu em 1989 a Liberdade e a esperança de uma nova ordem mundial. A revolução pacífica que comoveu o mundo mudaria a Europa e reforçaria a Democracia alemã, pilar da nossa estabilidade e paz.

Nas ruas de Berlim hoje não havia judeus, nem muçulmanos, nem estudantes asiáticos ou negros. As organizações de estudantes das várias universidades pediram aos seus alunos estrangeiros para não saírem.

Nas ruas de Berlim marcharam hoje grupos de combate da extrema-direita, alguns condenados por homicídio, nas ruas de Berlim pediu-se o derrube do governo, gritou-se morte aos judeus e desfilaram bandeiras proibidas. Houve ataques a jornalistas. Houve grupos que viajaram de toda a Europa e da Rússia. Havia muitas bandeiras de apoio a Trump.

Nas ruas de Berlim os adeptos das teorias da conspiração, os anti-vacinas, os anti-ciência marcharam ao lado de nazis contra a “ditadura do Corona”. O bando de egoístas que não quer usar máscara prefere a ditadura verdadeira a um constrangimento individual.

Nas ruas de Berlim houve católicos, evangélicos, organizações da sociedade civil, organizações anti-racistas a gritar bem alto: “Rua Nazis”. Os alemães saíram à rua.

Há alturas em que é preciso fazer escolhas e a Polícia de Berlim ao ordenar a desmobilização desta “manifestação” fez a escolha certa. Tire-se-lhe o chapéu.»

Texto e imagem de Helena Ferro de Gouveia no Facebook
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Disto já não se fabrica




«As irmãs Anna Del Priore, de 107 anos, e Helen Guzzone, de 104 anos, já estiveram infectadas com o novo coronavírus e conseguiram recuperar.»
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Bairros de lata: porquê?



«Poucas coisas simbolizam tanto a doença de uma sociedade como o bairro de lata. Grandes metrópoles pelo mundo inteiro padecem dessa chaga enorme que é o slum ou a favela. S. Paulo, Cidade do México, Nairobi, Bombaim… batem recordes dramáticos. O problema é social e tem um nome simples: pobreza. E por detrás desta palavra ‘pobreza’ vêm inúmeros outros problemas: degradação, ressentimento, doença, violência… a lista é quase infinita.

Quando a desigualdade chega ao ponto de as casas dos que vivem na pobreza serem barracas feitas dos restos que outros deitam fora o problema é já antigo, muito grave e a sua solução não pode ser apenas local. O bairro de lata não é uma doença que se cure; é o sinal de um problema maior que dá a volta à governação toda de um país.

Infelizmente, em Portugal também temos situações destas. Sobretudo nos subúrbios das grandes cidades e concretamente na região de Lisboa, onde o Expresso, há cerca de um ano, contou 13 bairros de lata com mais de 12 mil famílias. Ninguém diria? Fala-se pouco neles, a não ser quando são notícia policial, como aconteceu no Bairro da Jamaica, no Seixal. De resto, oculta-se esta realidade e faz-se por ignorá-la.

A segregação habitacional, a miséria residencial, a própria estigmatização territorial do estatuto social abjeto são qualquer coisa que corrói profundamente uma sociedade desde o seu interior. Viver naquela miséria é o horror; ter aquela miséria a viver entre nós deveria sê-lo também.

Portugal que multiplica condomínios de luxo, que vende ao desbarato propriedade pública com desconto aos fundos imobiliários especulativos e atrai milionários isentando-os de impostos com vistos gold ou sem eles é o mesmo país que vira hipocritamente a cara aos seus bairros de lata, esperando que a discreta ação da Igreja e de algumas associações cívicas faça o que manifestamente não pode fazer. Ou seja, atacar o problema no ponto onde ele nasce: na desigualdade, na pobreza e na exclusão.

É que a pobreza e a desigualdade extrema, a exclusão e o mal-estar social de todos esses problemas são um rastilho de revoltas e constituem uma autêntica bomba-relógio: não há nada a fazer contra a explosão. É antes que as políticas são úteis, não é depois.

Um bairro de lata é uma violência todos os dias que se pode tornar violento de um dia para o outro. Ora, os bairros de lata, os guetos degradados, não se acabam com políticas contra a fealdade das suas barracas ou edificações precárias ou contra o mau comportamento cívico de alguns dos seus habitantes. É preciso uma iliteracia sociológica muito profunda para acreditar nisso. O bairro de lata é a expressão alarmante dos erros mais graves que persistentemente minaram as prioridades políticas sucessivas do país.

De quando em vez lançaram-se políticas para tentar resolver o problema. Foi o caso do pós-25 de Abril, quando só em Lisboa existiam 100 mil barracas; e mais tarde, depois de, em 1993, Mário Soares ter dedicado uma Presidência Aberta ao assunto — altura em que se lançou o PER — Programa Especial de Realojamento. Passados quase 30 anos, alguns destes bairros estão hoje muito degradados e sem políticas de inclusão. Em 2006, o programa Porta 65 colocou fogos devolutos a preços razoáveis apoiados pelo Estado. Em 2018 foi a vez do programa 1º Direito, com a garantia governamental de que se iria acabar com estas situações até 2024.

Tudo sempre pouco, tudo sempre muito insuficiente e ineficaz. Entretanto, o problema agrava-se e as tensões sobem. E a pergunta continua eternamente a mesma: ainda há bairros de lata — porquê?»

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28.08.2020 - O vídeo do dia


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28.8.20

Bicharada Pré-Covid (9)



Orfanato de Elefantes de Pinnawala, Sri Lanka, 2011.

Este orfanato foi fundado em 1975, com sete elefantes órfãos. Atrai ao Sri Lanka estudiosos do mundo inteiro e é objecto de muitos filmes e livros. Cresceu e multiplicou-se e os primeiros órfãos já são avós.Duas vezes por dia, avós, pais e netos vão tomar banho e beber água ao rio e, quando regressam a casa, as mães tratam das «crianças».



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28.08.1963 – Luther King: «I have a dream»



Há 57 anos, quando Martin Luther King pronunciou este seu célebre discurso durante a «March on Washignton for Jobs and Freedom», não podia ter imaginado que, depois de todo o progresso que se seguiu, o seu país viria a ter, mais de meio século depois, um presidente como Donald Trump. A história dos direitos adquiridos não será destruída. Mas não está a ser fácil.



(No fim deste post, o texto do discurso na íntegra.)


A propósito:






«I have a dream» – Texto:


Situaçã ode Contingência?


Esta ameaça de Situação  de Contingência a mais de duas semanas de distância lembra-me uma velha história. Um pobrezinho bate a uma porta e diz à dona e casa que está cheia de fome. Ela pergunta-lhe se ele gosta de peixe frito na véspera e ele responde, entusiasmado, que adora. A senhora diz-lhe que volte no dia seguinte porque acabou de o fritar.

Entretanto, haverá quase vinte dias para os portugueses espalharem o vírus, à voltas por Portugal porque ainda têm os filhos em férias, e os ingleses podem desembarcar em massa no Algarve e beberem uns litros de cervejolas até tarde na noite. Deve ser essa a ideia. Boa tarde e boa sorte.
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Depois de Trump, o dilúvio



«Corre por aí um meme em que aparece Bernie Sanders ao lado da Ocasio-Cortez, em cima, e Joe Biden ao lado de Kamala Harri, em baixo. A legenda diz: “quando pedes uma Coca-Cola e eles perguntam: ‘pode ser Pepsi’”? Claro que este meme foi feito por um apoiante de Bernie. Se fosse este o sentimento dos democratas, Sanders teria ganho. Só que Biden é o “outro". Aquele que era preferível a Bernie para os centristas e agora será preferível a Trump para os progressistas, sem nunca mobilizar realmente muita gente. E não se pode sentar na vantagem que as sondagens lhe dão, porque o espera o inferno. Para Trump e as suas tropas vale tudo e tudo será feito. Se já é geralmente assim nos EUA,se já é assim com os republicanos há muito tempo, com Trump não há limites para o mergulho na lama.

Nas últimas semanas e na própria convenção republicana, Donald Trump regressou ao que parece ser a sua linha de campanha enquanto as sondagens não lhe correrem de feição: que os EUA se prepararam para o maior golpe da história do mundo. Com ele é sempre em grande. Em causa está a necessidade de alargar o voto por correspondência, devido à covid 19. Na realidade, os democratas até serão os que mais usarão este método de voto. O texto em português mais esclarecedor e sintético que li sobre o tema foi aqui.

A pandemia trocou as voltas a muitos governos. E também as trocou a Trump. Se todos tiveram de improvisar um pouco, a sua resposta foi especialmente incompetente. Uma pandemia não se combate com tweets e polémicas diárias. Nem sequer chega arranjar um inimigo, apesar de Trump, como Bolsonaro, o ter tentado com a China. Não consta que com isso tenha sido salva uma única vida. Para lidar com uma pandemia é preciso mínimos de competência política – e nem assim corre bem – que todo o foguetório de que vive a extrema-direita não consegue simular. E com a pandemia veio a crise económica. A economia, e não o seu discurso incendiário e de ódio, é que lhe podia dar a reeleição. Sobra o discurso da “lei e da ordem” perante a revolta racial. Um discurso que funciona.

Não sei se Trump tem as eleições perdidas. Desde as últimas, em que senti nos EUA coisas bastante diferentes daquelas que por cá se diziam, que desconfio de sondagens e previsões. Sei que tudo está contra ele. E ao lançar a suspeita de fraude eleitoral, Trump dá sinais de nervosismo. Se há quatro anos até um Trump vencia Hillary, pode ser que agora até um Biden vença Trump.

A preparação dos seus apoiantes para a recusa de uma derrota não surpreende. Trump usa a democracia, não acredita nela. Como Bolsonaro, que perante os contrapoderes que qualquer democracia exige põe os seus seguidores a defender golpes militares e o encerramento de tribunais. Todas as instituições e as suas decisões são politicamente contestáveis. Mas contestar é diferente de defender o derrube pela força dos que limitem o poder executivo.

Há uma diferença entre Trump, Bolsonaro ou, à sua pequeníssima escala, Ventura e os outros políticos, sejam moderados ou radicais: eles não têm um projeto de continuidade que exija a preservação das instituições; não têm um programa político que sobreviva ao seu exercício de poder. Eles são o projeto. À sua volta, há quem tenha projeto e os use, há quem tenha interesses e também os use. Bandos de fanáticos e de oportunistas, uns com projetos futuros outros com ganâncias presentes, aproveitam o momento da conquista para a violência ou o saque. Mas eles têm o seu próprio ego como único fim. Não faria qualquer sentido para um político como Trump aceitar uma derrota eleitoral. Ele está nos antípodas de Al Gore, que em nome do futuro do país aceitou uma derrota que estava convencido, ele e muita gente, que não tinha sofrido. Trump nada tem a preservar a não ser o seu próprio poder.»

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27.8.20

Bicharada Pré-Covid (8)



Um casuar, Sydney, Austrália, 2017.

O casuar é uma ave de grande porte, nativa do nordeste da Austrália, Nova Guiné e ilhas próximas, muito ágil (pode correr 50 km/hora e saltar 1,5m). Torna-se muito agressiva se se trata de proteger ninhos e crias. As fêmeas põem entre 3 e 5 ovos, mas depois vão-se embora para acasalar noutro sítio e os machos cuidam sozinhos dos ninhos e das crias durante os nove meses seguintes – muito «à frente» e grande contributo para alta taxa de natalidade…
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Seriam 79 hoje



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Chega! e Pró-Vida um único combate…



Tendo em conta o último post  que publiquei antes deste, e depois do apoio que o Pró-Vida sempre teve de altos responsáveis da Igreja, vêm aí tempos altamente perigosos.


«“Há um projecto político comum desde a coligação com o Chega [sob a designação de Basta!] nas europeias. A defesa da família, o fim da ideologia de género nas escolas e a derrota do marxismo cultural são as nossas grandes bandeiras que o Chega defende”, afirmou ao "Público" Manuel Matias, líder do PPV/CDC.»
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A Igreja não diz nada da apropriação que lhe faz a extrema direita?



«Há anos, a propósito de uma qualquer diatribe minha com os aficionados do ultraconservadorismo católico, um amigo jesuíta lembrou-me o dito popular entre os espanhóis: quando queriam confessar um pecado sexual, iam aos jesuítas; quando se tratava de um pecado social ou económico, confessavam-se à Opus Dei. Parecendo que não, é uma boa caricatura do mundo atual no que toca ao catolicismo.

A parte conservadora da Igreja obceca com a vida sexual alheia, com os gays, os transexuais (desconfio que têm pesadelos todas as noites com a ideologia de género), as mulheres não castas, os contracetivos e, acima de tudo, o aborto. Pobreza, exploração de recursos do planeta (que, afinal, é criação divina para católicos preservarem), racismo, exclusão dos mais vulneráveis, desigualdades sociais? Nada disso interessa. Pessoas por aí a fornicar fora do sacramento do matrimónio é que é grave.

A parte progressista da Igreja, mesmo se mantém a moral sexual, não lhe dá maior relevância. Como os espanhóis bem atestam, as penitências por escapadelas sexuais nas ordens mais progressistas são deveras leves. Já questões de exclusão social, pobreza, doença, abusos do capitalismo desregulado, refugiados, atentados ambientais e todos estes temas quentes sociais e económicos merecem grande atenção.

Este conservadorismo católico cai que nem uma luva na nova direita que se consolidou nos últimos anos. Negacionista das alterações climáticas com causa humana, tem as guerras culturais contra a modernidade como cimento estruturante, endeusamento do capitalismo desregulado, ataque ao Estado social, recusa absoluta de intervenção para corrigir injustiças e distorções e discriminações de longa duração (sejam sexuais, raciais, de classe social). O ódio e a vontade de exclusão dos diferentes, o dogmatismo. Tudo igual.

Até na incapacidade de conceber posições moderadas – considerando-as como a papel químicos do extremo oposto – são semelhantes. Aconteceu-me e acontece-me. Católicos ultraconservadores passaram anos a gritar-me, a cada vez que opinava sobre temas de religião e sexualidade, que não sou católica mas protestante. A nova direita dá-me como marxista – porque não lhes compro as guerras culturais nem construo templos garantindo que os mercados nunca erram.

Donde, não me espantei quando comecei a ler da proximidade entre Steve Bannon e os sinistros setores mais conservadores da Igreja que organizam a resistência ao Papa Francisco. Os media americanos – com aquela ingenuidade americana que vê de forma insuflada o poder dos seus nacionais – apresentavam Bannon como o homem que poderia deitar abaixo o Papa Francisco.

Que Bannon pretendesse reforçar os setores conservadores católicos era esperável. Já que bispos, religiosos e teólogos católicos, de qualquer inclinação, acolhessem alguém com as ideias e o percurso de Bannon, é problemático e reflete muito mal para a Igreja. A ex-mulher acusou-o de violência doméstica, tem atrás de si indícios de antissemitismo, promove ideologia da mais absoluta falta de caridade para os semelhantes (amor ao próximo, toca algum sino?), pretende isolacionismos nacionalistas (quando a Igreja é universal e universalista), aplaude construção de muros e prisão traumática de crianças migrantes. Só nos últimos dias Bannon foi preso por suspeitas de apropriação de fundos, porém já havia abundante matéria para se considerar um crápula sem escrúpulos.

E, no entanto, partes da Igreja associaram-se-lhe.

Não é caso singular. Antes das eleições europeias do ano passado, o Patriarcado publicou um quadro informando os fiéis dos partidos que, dizia, mais defendiam a vida. Declaração de apoio pouco subtil a esses partidos. Entre eles, o Chega. O quadro foi apagado depois de gerar polémica, mas ficou à vista que há, no Patriarcado, quem queira entrar na discussão partidária. E não se se incomode, até recomende, ideologias como a do Chega.

O líder deste partido repetidamente usa imagética e referências católicas. Já se deu como uma espécie de quarto pastorinho de Fátima, escolhido por Nossa Senhora. No twitter declarou querer ter todas as igrejas com ele. É frequente, nos mais ativos apoiantes do Chega das redes sociais, muitos deles da estrutura do partido, garantirem-se devotos católicos, lá pelo meio de publicações de ostensivo incentivo ao ódio aos mais variados e numerosos grupos, que são gente possuidora de uma grande manancial de rancor a distribuir por muitos lados – gays, transexuais, feministas, socialistas, ciganos, imigrantes, negros, refugiados, comunistas, moderados, a lista é quilométrica. A linguagem religiosa, sempre afastada da retórica política desde que tenho idade para me lembrar, é um recurso usado e abusado por esta direita extremista.

O italiano Salvini costuma enfeitar-se com crucifixos ostensivamente grandes e apresenta-se como um defensor da cristandade contra a invasão dos bárbaros maometanos. Na Polónia e na Hungria, a direita baseia grandemente as suas ideias políticas na supressão de direitos das mulheres e dos gays, de acordo com a moral católica mais conservadora.

Regressando à infelicidade Trump, na semana passada descreveu a crise da covid como um teste que Deus lhe fazia. Uma espécie de castigo bíblico: foste tão bem-sucedido economicamente, ficaste tão orgulhoso, que agora te castigo e terás de fazer novamente as tuas maravilhas na economia. Um bispo católico americano, Rick Stika, atacou no Twitter Joe Biden e apoiou Trump como aceitável líder antiaborto. A Kamala Harris menorizou-a como ‘sidekick’, mera ajudante. (Ah, o sexismo.)

Que há setores católicos prenhes de vontade de tornar o aborto no único assunto da política, promovendo uma política económica egoísta, bem como ódio a tudo o que é diferente e inovador – não tenho dúvidas. Conheço vários católicos no processo de radicalização infelizmente comum em pessoas de direita. Há vinte anos aceitavam Guterres como um político catita; presentemente partilham a propaganda dos mais populares sites de fake news de extrema-direita.

Mas causa-me estranheza que a porção progressista da Igreja não reaja mais a estas investidas. O Papa Francisco, afinal, também é dado como marxista por esta turba. No fim de semana, o Papa tuitou pedindo que se parasse de usar o nome de Deus para disseminar ódio e extremismo. Porém só o twitter e só Francisco é poucochinho.»

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Nikias Skaninakis



Ficámos sem ele.
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26.8.20

Bicharada Pré-Covid (7)



Bichos e mais bichos, Etosha, Namíbia, 2007.

O Parque Nacional Etosha fica situado no Noroeste da Namíbia, tem centenas de espécies de mamíferos, aves e répteis, incluindo várias ameaçadas de extinção como o rinoceronte-negro (que não cheguei a ver…) Ficam aqui alguns exemplares, tenho fotografias de muitos mais.





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Entre PM e Ordem dos Médicos, a saga continua




«O conflito entre a Ordem dos Médicos (OM) e o primeiro-ministro não acabou, afinal. Depois de muitos médicos terem ficado insatisfeitos com as declarações de António Costa no final da audiência com a OM — queriam um pedido de desculpas público —, o bastonário Miguel Guimarães enviou nesta quarta-feira de madrugada uma nota aos 50 mil profissionais do país na qual diz que António Costa “não relevou a mensagem de retractamento da mesma forma enfática” que usou na reunião e acusa-o de não ter transmitido “integralmente e fielmente” aquilo que “minutos antes tinha reconhecido” no encontro.

Quanto à assistência prestada pelos médicos dos centros de saúde aos idosos residentes em lares, o entendimento é diferente do do Ministério da Saúde. “Estes devem acompanhar os utentes das suas listas nos vários ciclos de vida, nomeadamente quando estão numa Estrutura Residencial para Idosos, quando o apoio configure uma situação de domicílio, como sempre o fizeram até à data”. Se isto não significa que os médicos de família deixem de acompanhar os residentes "das suas listas nos vários ciclos de vida, nomeadamente quando estão numa estrutura residencial para idosos, quando o apoio configure uma situação de domicílio, como sempre o fizeram até à data”, a regra deve ser a de que os lares do sector social e privado passem a “ter apoio médico contratado para garantir que os seus utentes são acompanhados de forma regular”.»
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Era uma vez um lar



«A Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, em Reguengos de Monsaraz, foi o primeiro lar onde entrei na vida, era ainda aluna de Enfermagem. Lembro-me dos tectos altos do edifício, da simpatia da funcionária que nos recebeu, vestida com uma bata azul e branca aos quadradinhos, e de uma sala de convívio que me pareceu gigante. Infelizmente as recordações boas terminam aqui. E começa o cenário dantesco.

O meu estágio, note-se, não era na fundação. Mas eram as enfermeiras do centro de saúde da cidade que lá se deslocavam para fazer as dezenas de pensos diários. E, quando entrei numa camarata imensa, cheia de senhoras idosas acamadas, quase todas demenciadas e profundamente emagrecidas, nem fui capaz de perceber por que é que ali cheirava tanto a morte e a decomposição. Só quando começámos a destapar as feridas que lhes cobriam os corpos, literalmente da cabeça aos pés, é que percebi que tinha acabado de me confrontar, pela primeira vez, com o lugar onde a dignidade termina.

Como aluna de Enfermagem, ainda com insuficiente sentido crítico, fiz o melhor que consegui. Num esforço hercúleo para não fugir, franzi o sobrolho em concentração, coloquei um bocadinho de creme perfumado debaixo do nariz, tal como a minha orientadora tinha feito, e uma máscara. E depois passámos horas a fazer pensos.

Tudo isto que vos conto aconteceu em 2009 e suponho que, ao longo destes 11 anos, muita coisa tenha mudado. Só que aparentemente não mudou o suficiente. E sabem qual é o verdadeiro problema, muito maior que qualquer trica política? É que este lar está longe de ser caso único.

Contei há dias, na minha página pessoal de Facebook, que no início da minha carreira comecei a fazer umas horas num lar de onde acabei por me despedir após ser repreendida aos gritos porque, num dia quente de Agosto, coloquei protector 50+ no rosto de um idoso de 80 anos que andava a trabalhar na horta. Aparentemente e segundo me gritaram, o protector era demasiado caro para ser utilizado assim. Ainda estou para perceber o que raio seria este “assim”, mas nesse dia percebi que, nestes casos, não pode existir um “se não os podes vencer, junta-te a eles”. A única solução, quando não conseguimos mudar as más práticas, é vir embora e denunciar. Mesmo que as denúncias caiam quase sempre em saco roto.

Sei que é importante que no caso de Reguengos se apurem responsabilidades. Também sei as coisas terríveis que os meus colegas lá viram e viveram. Sei do cheiro a urina, dos idosos só de fralda, do calor abrasador e da falta de condições. Mas também sei que é ainda mais importante que nos façamos ouvir agora, enquanto sociedade, para mudar de uma vez por todas o paradigma de muitos lares deste país.

Não vou cair no caminho fácil do “se fossem cães estava toda a gente indignada”, porque, além de ser um argumento vazio, me parece falacioso. Eu também me preocupo com os cães. E isso não quer dizer que não me preocupe com os idosos. Ou com as crianças. Preocupo-me com todos aqueles que, sendo frágeis, temos obrigação de proteger. E preocupo-me ainda mais quando percebo que falhamos.

Reguengos pode servir como bode expiatório, mas está longe de ser caso único. Pensem nos lares que conhecem, pensem em quantos deles têm quartos individuais, em quantos respeitam a sabedoria dos idosos, em vez de os infantilizar, pensem naquelas salas de estar que parecem antecâmaras da morte… E as imobilizações? Já pensaram sobre isso? Todos os estudos apontam que as imobilizações não reduzem de forma significativa o número de acidentes, mas, ainda assim, continuamos a ver em todo o lado idosos presos a camas, cadeirões e cadeiras de rodas.

Parece-me que é altura, enquanto sociedade, de levantarmos a voz e de exigirmos respeito e dignidade para com aqueles que nos deram a vida. É altura de não nos calarmos, de denunciarmos, de não deixarmos passar, de pressionarmos a Segurança Social para que faça inspecções surpresa e para que não feche mais os olhos.

A minha avó, que felizmente esteve sempre em casa connosco, dizia muitas vezes: “Filho és, pai serás, como fizeres assim encontrarás.” E eu acho que podemos adaptar esta frase para um “novo és, velho serás”.

Para que Reguengos não se repita. Nunca mais.»

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25.8.20

Bicharada Pré-Covid (6)



Grande Barreira de Corais, Cairns, Austrália, 2017.

A Grande Barreira de Coral estende-se por 2.300 quilómetros ao largo da costa Nordeste da Austrália e é formada por uma rede de 2.900 recifes de corais. Estes são animais vivos e sensíveis, da mesma família das alforrecas, mas que criam um esqueleto calcário e sólido. No local por onde andei, há cerca de 400 espécies e vi-as através das janelas de um pequeno submarino, num espectáculo absolutamente impressionante pela diversidade, pelas cores e pelo brilho. É sabido que os corais estão altamente atingidos pelas alterações climáticas e que se tenta, a todo o custo,evitar que «desapareçam».



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Mas se ele visse o que anda agora por aí ficaria ainda mais surpreendido


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Racismo e Xenofobia



«"Racismo" é semanticamente mais abrangente (teoria, atitude, sistema político ou social), implica a crença de que algumas "raças" são superiores e a tentativa de racionalização dessa crença. Por seu turno, a xenofobia é apenas sentimento, preconceito, muito menos orgânica e teorizada do que o racismo (nomeando o medo ou fobia do diferente, do desconhecido, digo eu).

Seguramente os especialistas em história e ciências sociais justificarão estes factos lexicológicos. Eles permitem demonstrar que o léxico acompanha e testemunha os avanços das sociedades e do pensamento e, ainda, que as línguas vivas acolhem naturalmente as palavras de que necessitam em cada momento e se enriquecem também deste modo.»
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Há 32 anos



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Esta crise também é de amnésia?



«Rufam os tambores da crise. O Mundo avança numa espiral de angústia e incerteza à medida que as piores previsões se vão tornando realidade, sem que possamos dizer que a pandemia foi domada.

Na maior crise das nossas vidas, o pior que podemos fazer é ceder ao medo, entrar em pânico e desaprender todas as lições do passado.

Compromissos fortes em torno de medidas que protegeram o emprego e os rendimentos evitaram a turbulência política quando saímos da anterior maior recessão das nossas vidas. E esse resultado não foi conseguido com desistência face às intransponíveis "inevitabilidades" da altura, mas sim com determinação e exigência. Também então as escolhas exigiam prudência e o país avançou porque tomou as decisões certas. Enfrentamos então a Comissão Europeia e os arautos da austeridade sabendo que o salário, a pensão, a proteção social e os serviços públicos são o nosso melhor escudo contra a crise. Acertamos - e nenhuma nova crise deve fazer-nos esquecer o que aprendemos.

A natureza da crise pode ser muito diferente, mas a sua dinâmica não se alterou. Quantos mais compromissos forem quebrados, quanto mais cortes, quanto mais rendimentos desprotegidos, maior e mais profunda será a recessão. É tentador acreditar que, no presente quadro de dificuldades, "sacrifícios" compensam - mas é mentira. E a responsabilidade da Esquerda que nunca se rendeu à doutrina do empobrecimento redentor é propor e negociar medidas fortes que deem ao país um rumo que não seja o da pobreza.

Há quem ache que, quando exigimos ao Governo que cumpra o que acordou connosco para o Orçamento de 2020, o que nos move seria a mera tentação de apresentar "boas notícias". Engana-se profundamente. É precisamente porque os próximos anos não trarão boas notícias que exigimos agora que o Governo contrate os 8400 profissionais para os quadros do SNS, tal como prometeu.

Move-nos a responsabilidade de responder por quem trabalha, por quem vive da sua pensão ou já está no desemprego. De responder pela qualidade do SNS e da Educação. Move-nos a urgência de retomar a produção e a certeza de que não é ceifando direitos e rendimentos que se colhe prosperidade. E move-nos também a decência de querer evitar uma nova injeção no Novo Banco que custaria ao país, num único golpe, mais do que as medidas exigentes que queremos incluir no Orçamento para 2021. Fácil - e talvez tentador - seria pôr em causa o salário e os rendimentos sem perguntar porque é que a crise não bate às portas do dono privado do Novo Banco.»

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24.8.20

Bicharada Pré-Covid (5)



O célebre Lonesome George, Ilha de Santa Cruz, Galápagos, Equador, 2004.

A tartaruga-das-galápagos-de-Pinta foi uma subespécie de tartaruga terrestre da ilha de Pinta, nas Galápagos. O último indivíduo conhecido foi um macho que morreu em 2012 (ainda o vi em 2004), na Ilha de Santa Cruz, sem deixar descendência. Teria entre 93 e 109 anos. Foi considerado a criatura mais rara do mundo e tido como um símbolo dos esforços de conservação do ambiente, nas Galápagos e no mundo.




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Léo Ferré - Seriam 104



Nasceu no Mónaco em 24 de Agosto de 1916, o pai trabalhava no Casino, a mãe era costureira e Léo, com 7 anos, já cantava no coro da catedral.

Deixou-nos preciosidades que resistem a todas as décadas, com letras suas ou de Aragon, Rimbaud e mais uns tantos. Três dessas «preciosidades», entre muitas outras:







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Butão, un país num conto de fadas?



Nem tudo é perfeito neste país, bem longe disso, mas não há muitos que se pareçam com ele.


«Bem recentemente, com a ameaça do COVID-19 a globalizar-se, ficou mundialmente célebre a simpatia com que acompanhou o primeiro caso da doença registado no país: um turista norte-americano de 76 anos, a quem, em seu nome, foram oferecidos pijamas e cobertas de seda. Como o doente não mostrasse sinais de melhoria, foi-lhe proporcionado o regresso aos Estados Unidos no avião real com um conforto e cuidado impossíveis de outro modo. Quando finalmente melhorou, os médicos norte-americanos não tiveram dúvidas em afirmar que o tratamento recebido no Butão tinha-lhe salvo a vida.»
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Para onde caminha a nossa democracia?



«“O salazarismo foi uma doença que pôs de rastos o povo português”, refere José Gil no seu livro Portugal Hoje, o Medo de Existir. Esta afirmação permanece actual, porque o povo continua de rastos, provavelmente como nunca esteve antes em democracia. Pode parecer arriscado entrar desta forma, mas mais do que nunca parece-me ser fundamental levantar algumas questões sobre o nosso sistema político e a evolução das práticas nacionais-populistas em Portugal.

Há muitos anos que os círculos mediáticos e políticos se esforçam para estabelecer um status quo aceitável, importando para os discursos com valores democráticos, valores e costumes opostos aos da liberdade e justiça social. E é precisamente aqui que interessa dissecar a doença identificada por José Gil, o fantasma do salazarismo que transitou para a democracia paira ainda hoje sobre as nossas cabeças. A nossa sociedade ignorou sempre este debate, mesmo em 2007 quando Salazar foi eleito “O Grande Português” num programa promovido pela RTP aceitámos o resultado com leviandade, e esse foi provavelmente o sinal mais significativo que assistimos até ao presente ano de 2020.

A ditadura do Estado Novo nunca saiu totalmente de nós, permanece na nossa memória colectiva e emerge diariamente nos preconceitos generalizados, muitos deles difundidos nos media; da repressão às comunidades LGBTQ, passando pelo racismo estrutural provocado pelo nosso passado colonial — recorde-se o recente homicídio de Bruno Candé — ou mesmo a marginalização de outras minorias étnicas. Todo este contexto é revelador de uma transição democrática questionável, porque permitiu a integração de elementos do regime totalitário nas esferas políticas e mediáticas da democracia, ou seja, a revolução ficou incompleta, o fascismo não se silenciou, simplesmente adormeceu.

Neste sentido, importa compreender como os valores do antigo regime foram atenuados e inseridos na lógica discursiva do sistema político democrático. Nos últimos 46 anos de democracia, foram muitos os nomes que circularam entre a esfera política e mediática, com a finalidade de obter e manter um discurso dominante, produzido por opinionmakers, alguns pertencentes a movimentos nacionalistas (por exemplo, o Movimento Federalista Português) pós-25 de Abril ou mesmo elementos que estiveram directamente ligados aos governos do Estado Novo. A produção destes discursos provocou geral apatia na opinião pública, mobilizando-a sem questionar o conteúdo das opiniões veiculadas.


Se a ditadura beneficiou de um povo com uma taxa de analfabetismo elevada, a democracia beneficiou consequentemente de um povo com um baixíssimo nível (dos mais baixos na UE) de literacia mediática, ou como refere o sociólogo francês Pierre Bourdieu: “O homem político é aquele que diz: ‘Deus está connosco’. O equivalente actual de ‘Deus está connosco’ é ‘a opinião pública está connosco.’” Estes agentes políticos do sistema e respectivos espaços de comentário nos diversos canais mediáticos tradicionais revelaram-se essenciais para a formação de uma opinião pública pouco interessada, estabelecendo, assim, uma ordem social através de um discurso político beneficiado pela democracia. 

Nos últimos anos, a generalidade dos portugueses olhou com preocupação para o crescimentos dos movimentos nacionalistas na Europa, nos EUA e no Brasil, mas, simultaneamente orgulhosos com a fraca expressão desses movimentos por cá, glorificávamos a solidez da nossa democracia. No entanto, tendo em consideração o contexto evolutivo da nossa democracia, não é de admirar que um partido assente nos ideais pseudo-renovados do nacional-populismo esteja a ganhar terreno no sistema político e mediático. Hoje em dia, já existe imensa literatura sobre o nacional-populismo, as suas práticas, os métodos e as estratégias, mas permitam-me recorrer a Ernesto Laclau e ao seu livro A Razão do Populismo para enquadrar o populismo enquanto uma “lógica discursiva” (e não como ideologia política) baseada na retórica do povo. Ou seja, o populismo traduz-se num megafone das conversas de café, dos encontros quotidianos entre pessoas, que normalmente têm como ponto de partida os acontecimentos tratados de forma mais sensacionalista pelos media de cariz popular. Portanto, no caso do Chega é claro este discurso, apontando ao povo que existem dois inimigos comuns: as comunidades ciganas e as elites políticas vigentes. Assim, este partido acordou o fantasma do salazarismo, agravou a “doença” que persiste em deixar-nos de rastos e está a tornar-se profundamente crónica. 

Estamos, por isso, perante um abutre, que não só se aproveita das fragilidades da nossa democracia, mas mais do que isso, tira partido da reduzida literacia mediática da população portuguesa e sob o grande bastião democrata da liberdade de expressão continua a veicular discursos contra minorias, despromovendo debates fundamentais para a nossa sociedade (como o racismo estrutural). No fundo, foi o sistema político dominado pelo jogo das cadeiras do “centrão” (PS, PSD e CDS) que abriu espaço para o surgimento de um partido anti-democrático como o Chega. Resta-me apenas questionar porque é que estes partidos ignoraram sempre questões marginais à tecnocracia? E ainda mais essencial, porque é que nunca se promoveu o voto ao longo das legislaturas, ao invés do habitual apelo superficial feito pelos líderes no próprio dia das eleições? Porque é que não se promove uma Educação para os Media nas escolas? Está claro que a sensibilização para a soberania popular em democracia e a literacia mediática são dois factores em falência vertiginosa na nossa sociedade. Sem eles vamos permanecer de rastos.» 

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23.8.20

Bicharada Pré-Covid (4)



Centro de Protecção de Tartarugas, Kosgoda, Sri Lanka, 2011.

As tartarugas desovam na praia, os ovos são recolhidos e «chocados» debaixo de terra, algumas semanas mais tarde as crias nascem, são guardadas três dias em tanques e depois lançadas ao mar. Em tanques especiais, vivem algumas estropiadas: a primeira à esquerda na fotografia é uma delas e nunca terá sido lançada ao mar (falta-lhe uma perna), tal como a que está na última imagem, recolhida nos destroços do tsunami de 2004


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Neste Portugal dos Pequenitos


Estive umas horas fora das redes socais, entro e vejo, «post» sim «post» não, uma tempestade porque Costa, numa gravação de um aparte em off, terá chamado «gajos cobardes» a médicos. Ficaram muito admirados? E a sério que isto é o tema mais importante do universo no dia 23.08.2020? Se calhar até pode vir a ser e, pelo sim pelo não, já fiz «download» de um vídeo de 29 segundos, não vá ele valer uns milhões num leilão da Christies’ no século XXII.
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Afinal...


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Lares: um inferno inevitável?



«O problema não é de agora, mas temos o hábito de fazer os debates à boleia de tragédias e do espaço de atenção que elas criam. Seremos capazes de, para lá das circunstâncias, olharmos para a raiz do problema e encontrarmos caminhos alternativos?

Em Portugal, temos muito poucos cuidados formais para as pessoas mais velhas: só 12,8% das pessoas idosas beneficiam de uma resposta no âmbito da rede de equipamentos sociais (incluindo lares, apoio domiciliário e centros de dia). O Estado investe mais de 600 milhões de euros por ano em acordos de cooperação com IPSS para respostas sociais na área da velhice, mas elas funcionam num esquema de monopólio do setor social privado. Temos imensas carências e o Estado nunca assumiu a provisão direta das respostas. É um “Estado financiador”, com competências de fiscalização cuja concretização fica muito aquém do necessário. Além disso, a escassez da oferta faz com que haja um volume preocupante de respostas clandestinas: cerca de 35 mil pessoas residem em 3.500 lares clandestinos. Ou seja, quase 30% dos cerca de 125 mil residentes em lares no nosso país vivem em instituições que funcionam sem enquadramento legal.

Quem trabalha nos lares dedica-se aos outros num contexto difícil, em que ao esforço e entrega profissionais correspondem salários colados ao salário mínimo, a ausência de carreiras e de valorização profissional, turnos pesados e uma sobrecarga laboral sem compensações. Precariedade, baixos salários e excessiva rotatividade são a regra num setor em que as mulheres são a larga maioria e onde a formação em contexto de trabalho praticamente não existe. No paradigma que temos, prevalece um modelo biomédico, com atividades limitadas, infantilização dos utentes, pouco investimento na qualificação dos profissionais, acompanhamento pouco individualizado e reduzido, com frequência, à higiene pessoal, às refeições e à medicação.

Não vale a pena olhar para o lado. Estamos a assistir a uma tragédia nos lares: na Europa, cerca de metade dos mortos por COVID são residentes em estruturas residenciais para pessoas idosas. A falta de profissionais, a falta de condições, a ausência de testes atempados garantidos pelos poderes públicos, a não aplicação plena das medidas de contingência, a própria arquitetura que dificulta o isolamento (quartos partilhados, equipamentos partilhados, etc.), a ausência de uma intervenção consistente no campo da saúde, o fechamento defensivo das instituições, ajudam a explicar o que se passa.

É preciso repensar todo o modelo que temos de cuidados para os idosos. Privilegia-se a institucionalização, que é inevitavelmente uma rutura com o quotidiano e uma limitação da autonomia das pessoas. Privilegia-se a externalização para instituições privadas impulsionadas pelo Estado, que as financia por via dos acordos de cooperação, havendo em consequência uma demissão da provisão pública, que alimenta uma rede de intermediários e de promiscuidade de interesses que dificulta o controlo e a intervenção direta em momentos de crise. Muitos lares não respeitam os rácios de trabalhadores definidos pela lei, o que é mais flagrante no período noturno e na área da saúde. Há uma separação artificial entre cuidados sociais e cuidados de saúde, que leva a que cada tutela e cada Ministério empurre as responsabilidades para o outro. No debate público dos últimos dias, a Ministra do Trabalho desvalorizou as suas responsabilidades de fiscalização e, no campo político, poucas têm sido as vozes que vieram responsabilizar os dirigentes das IPSS. Nestas, a solidariedade e a abnegação de muitos convivem com o favor político, com esquemas de gestão questionáveis, com a ausência de transparência, o enriquecimento ilícito à custa dos utentes e uma qualidade de serviços muito pouco escrutinada.

São necessárias medidas imediatas para mitigar e conter a pandemia nos lares: equipas multidisciplinares (com as autoridades de saúde, a segurança social e a proteção civil) que visitem todos os lares, incluindo os que não estão licenciados); envolvimento dos profissionais e dos utentes nestes processos; testes à Covid, nomeadamente na reabertura dos centros de dia e no regresso aos lares dos profissionais que estiveram de férias; espaços alternativos para acolher pessoas que estejam em lares sem condições, equipas em espelho e circuitos separados para positivos e negativos; um plano de contratação de equipas de apoio domiciliário (podíamos começar com um número idêntico ao programa lançado para os lares: 15 mil profissionais), para que seja possível evitar a institucionalização e domiciliar alguns dos utentes; reforço imediato das equipas de fiscalização e inspeção da Segurança Social.

Mas este é o momento de um debate que vá além do imediato. É preciso repensar profundamente o modelo de cuidados que temos. Precisamos de equipas locais de intervenção nas casas das pessoas mais velhas, de modo a garantir as adaptações infraestruturais nas habitações que permitam às pessoas permanecer o máximo de tempo em casa (exemplos: isolamento térmico, banheiras rebaixadas, escadas acessíveis…). Precisamos de reformular o conceito Centro de Dia e de muito mais apoio domiciliário, alargado em número de trabalhadores envolvidos, no tipo de apoio prestado, nos horários e nos dias em que funciona. Precisamos de apoio aos cuidadores informais para além dos 30 concelhos em que funcionam atualmente os projetos-piloto. Precisamos de apostar noutros modelos institucionais (mais humanos, mais pequenos, mais respeitadores da biografia e da individualidade das pessoas) e sobretudo num plano de desinstitucionalização, que oriente o dinheiro que existe para respostas de autonomia, com um programa para a criação de projetos de co-housing (formato já previsto na lei de bases da habitação e que há anos é aplicado nos países nórdicos), respostas comunitárias nas aldeias (por que razão não se tornam as próprias aldeias infraestruturas de cuidados alternativas aos lares?) e em todo o território, com habitação autónoma e centros comunitários que sejam espaços de convívio. Precisamos de garantir a participação das próprias pessoas idosas em todo este debate.

Se não formos capazes de o fazer agora, quando o faremos?»