«Há anos, a propósito de uma qualquer diatribe minha com os aficionados do ultraconservadorismo católico, um amigo jesuíta lembrou-me o dito popular entre os espanhóis: quando queriam confessar um pecado sexual, iam aos jesuítas; quando se tratava de um pecado social ou económico, confessavam-se à Opus Dei. Parecendo que não, é uma boa caricatura do mundo atual no que toca ao catolicismo.
A parte conservadora da Igreja obceca com a vida sexual alheia, com os gays, os transexuais (desconfio que têm pesadelos todas as noites com a ideologia de género), as mulheres não castas, os contracetivos e, acima de tudo, o aborto. Pobreza, exploração de recursos do planeta (que, afinal, é criação divina para católicos preservarem), racismo, exclusão dos mais vulneráveis, desigualdades sociais? Nada disso interessa. Pessoas por aí a fornicar fora do sacramento do matrimónio é que é grave.
A parte progressista da Igreja, mesmo se mantém a moral sexual, não lhe dá maior relevância. Como os espanhóis bem atestam, as penitências por escapadelas sexuais nas ordens mais progressistas são deveras leves. Já questões de exclusão social, pobreza, doença, abusos do capitalismo desregulado, refugiados, atentados ambientais e todos estes temas quentes sociais e económicos merecem grande atenção.
Este conservadorismo católico cai que nem uma luva na nova direita que se consolidou nos últimos anos. Negacionista das alterações climáticas com causa humana, tem as guerras culturais contra a modernidade como cimento estruturante, endeusamento do capitalismo desregulado, ataque ao Estado social, recusa absoluta de intervenção para corrigir injustiças e distorções e discriminações de longa duração (sejam sexuais, raciais, de classe social). O ódio e a vontade de exclusão dos diferentes, o dogmatismo. Tudo igual.
Até na incapacidade de conceber posições moderadas – considerando-as como a papel químicos do extremo oposto – são semelhantes. Aconteceu-me e acontece-me. Católicos ultraconservadores passaram anos a gritar-me, a cada vez que opinava sobre temas de religião e sexualidade, que não sou católica mas protestante. A nova direita dá-me como marxista – porque não lhes compro as guerras culturais nem construo templos garantindo que os mercados nunca erram.
Donde, não me espantei quando comecei a ler da proximidade entre Steve Bannon e os sinistros setores mais conservadores da Igreja que organizam a resistência ao Papa Francisco. Os media americanos – com aquela ingenuidade americana que vê de forma insuflada o poder dos seus nacionais – apresentavam Bannon como o homem que poderia deitar abaixo o Papa Francisco.
Que Bannon pretendesse reforçar os setores conservadores católicos era esperável. Já que bispos, religiosos e teólogos católicos, de qualquer inclinação, acolhessem alguém com as ideias e o percurso de Bannon, é problemático e reflete muito mal para a Igreja. A ex-mulher acusou-o de violência doméstica, tem atrás de si indícios de antissemitismo, promove ideologia da mais absoluta falta de caridade para os semelhantes (amor ao próximo, toca algum sino?), pretende isolacionismos nacionalistas (quando a Igreja é universal e universalista), aplaude construção de muros e prisão traumática de crianças migrantes. Só nos últimos dias Bannon foi preso por suspeitas de apropriação de fundos, porém já havia abundante matéria para se considerar um crápula sem escrúpulos.
E, no entanto, partes da Igreja associaram-se-lhe.
Não é caso singular. Antes das eleições europeias do ano passado, o Patriarcado publicou um quadro informando os fiéis dos partidos que, dizia, mais defendiam a vida. Declaração de apoio pouco subtil a esses partidos. Entre eles, o Chega. O quadro foi apagado depois de gerar polémica, mas ficou à vista que há, no Patriarcado, quem queira entrar na discussão partidária. E não se se incomode, até recomende, ideologias como a do Chega.
O líder deste partido repetidamente usa imagética e referências católicas. Já se deu como uma espécie de quarto pastorinho de Fátima, escolhido por Nossa Senhora. No twitter declarou querer ter todas as igrejas com ele. É frequente, nos mais ativos apoiantes do Chega das redes sociais, muitos deles da estrutura do partido, garantirem-se devotos católicos, lá pelo meio de publicações de ostensivo incentivo ao ódio aos mais variados e numerosos grupos, que são gente possuidora de uma grande manancial de rancor a distribuir por muitos lados – gays, transexuais, feministas, socialistas, ciganos, imigrantes, negros, refugiados, comunistas, moderados, a lista é quilométrica. A linguagem religiosa, sempre afastada da retórica política desde que tenho idade para me lembrar, é um recurso usado e abusado por esta direita extremista.
O italiano Salvini costuma enfeitar-se com crucifixos ostensivamente grandes e apresenta-se como um defensor da cristandade contra a invasão dos bárbaros maometanos. Na Polónia e na Hungria, a direita baseia grandemente as suas ideias políticas na supressão de direitos das mulheres e dos gays, de acordo com a moral católica mais conservadora.
Regressando à infelicidade Trump, na semana passada descreveu a crise da covid como um teste que Deus lhe fazia. Uma espécie de castigo bíblico: foste tão bem-sucedido economicamente, ficaste tão orgulhoso, que agora te castigo e terás de fazer novamente as tuas maravilhas na economia. Um bispo católico americano, Rick Stika, atacou no Twitter Joe Biden e apoiou Trump como aceitável líder antiaborto. A Kamala Harris menorizou-a como ‘sidekick’, mera ajudante. (Ah, o sexismo.)
Que há setores católicos prenhes de vontade de tornar o aborto no único assunto da política, promovendo uma política económica egoísta, bem como ódio a tudo o que é diferente e inovador – não tenho dúvidas. Conheço vários católicos no processo de radicalização infelizmente comum em pessoas de direita. Há vinte anos aceitavam Guterres como um político catita; presentemente partilham a propaganda dos mais populares sites de fake news de extrema-direita.
Mas causa-me estranheza que a porção progressista da Igreja não reaja mais a estas investidas. O Papa Francisco, afinal, também é dado como marxista por esta turba. No fim de semana, o Papa tuitou pedindo que se parasse de usar o nome de Deus para disseminar ódio e extremismo. Porém só o twitter e só Francisco é poucochinho.»
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