«Parte da comunicação social brasileira dedicou bastante atenção ao facto de a mulher de Lula da Silva ter ido comprar uma gravata ao seu marido numa loja cara da Avenida da Liberdade. Não é só em Portugal que o jornalismo abandonou a função de hierarquizar informação e se dedicou ao entretenimento.
Como país, devíamos, no entanto, concentrar-nos no que foi relevante na vinda de Lula de Silva: o regresso do Brasil às relações diplomáticas com Portugal e com o mundo. E se nós queremos estar presentes ou nos entretemos com números domésticos. E é por aí que começo.
Sem contar com cimeiras e o funeral da Rainha Isabel II, para fazer um comício de campanha da varanda da embaixada, Jair Bolsonaro veio duas vezes à Europa, em deslocações oficiais: para visitar Vladimir Putin e Viktor Orban. As suas visitas foram ideológicas, à procura de aliados para a sua fação política. Lula da Silva faz visitas de Estado, procurando devolver ao Brasil, uma potência regional, o poder que naturalmente lhe é devido. Tem, como se percebeu em tudo o que foi dizendo sobre a guerra na Ucrânia, uma política externa autónoma.
Esclareceu a sua posição fora e dentro do parlamento. Não é, como alguns tentaram dizer, aliado da Rússia. A canhestra comparação de Lula com Salvini, feita pelo deputado Rui Rocha, é desonesta. É verdade que não tem a mesma posição de Portugal. Não é a primeira vez. Poucos meses depois de tomar posse, realizava-se a Cimeira das Lajes. As posições dos dois países foram opostas. Na altura, era o Brasil que tinha razão. Hoje, é Portugal. Em nenhum dos casos isso perturbou as relações dos dois países.
Augusto Santos Silva fez bem em mostrar que, no que toca aos valores democráticos em cada um dos nossos países, os dois governos estão do mesmo lado. São esses os valores que ontem celebrámos. E que alegria foi ver Chico Buarque a receber o prémio Camões, que Bolsonaro se recusara a entregar, porque os seus inimigos eram inimigos do Brasil, o que fazia de quase todas as grandes figuras da cultura brasileira personae non gratae no seu próprio país. Um momento que torna tão evidente o absurdo dos paralelos entre um Presidente obscurantista e autoritário e outro, que se move segundo códigos em que os democratas se entendem.
Santos Silva também fez bem em não fugir da questão ucraniana, sendo exato na definição da posição brasileira (de condenação da ocupação russa), suficientemente claro naquilo em que há divergência e sublinhando a posição portuguesa. Sem os silêncios em que a nossa política externa é tão pródiga (mas que gostamos de criticar nos outros), manteve intactas as pontes com um país amigo que está tão distante desta guerra como nós estamos da do Sudão. Quem queira acelerar a criação de novos blocos incomunicáveis defenderá outro caminho. Pelo contrário, nunca foi tão necessário ter com quem falar nos BRICs.
Lula visitou os países com quem tem relações económicas mais intensas, como a China. E, nesta matéria, quem entregou todo o seu sistema elétrico ao regime de Pequim ou manteve um silêncio cúmplice em relação á ditadura angolana, por dependência económica, dificilmente pode dar lições a alguém. E visitou os dois países que são a porta de entrada na relação da América Latina com a Europa: Portugal e Espanha. Especialmente relevantes para tentar reanimar a negociação do acordo entre a União Europeia e o Mercosul. Portugal pode decidir ter um papel importante ou deixá-lo para Espanha, com mais poder do que nós na relação com os restantes países do continente.
Tentando aproveitar a existência de uma comunidade de cerca de 400 mil brasileiros em Portugal, André Ventura apelou a que a minoria bolsonarista aqui residente (assim indicam as últimas eleições) engrossasse o que anunciou como “a maior manifestação de sempre contra um dirigente estrangeiro”. Apesar de presenças notáveis, como a de Mário Machado, esteve bem longe dos “milhares” prometidos. Foi um flop.
Falhando fora do Parlamento, tentou lá dentro. Não teve a companhia da IL, que fez de PCP com Zelensky, mostrando que não tem maturidade para estar num governo quando recusa estar presente na receção ao líder de um dos países mais relevantes para Portugal. Mas longe vão os tempos em que não aplaudir um chefe de Estado, como infantilmente fez o Bloco de Esquerda com o rei de Espanha, dava polémica. Desta vez é Luís Montenegro, que quer ser primeiro-ministro, que, sozinho entre os convidados, se manteve sentado e não aplaudiu o fim da intervenção do Presidente do Brasil. No passado, estas posturas, legitimas e educadas, foram polémicas. Hoje não. Nem tema foi. Sinal dos tempos em que o Chega vai puxando as fronteiras para muito mais longe...
Quanto ao Chega, todos viram o espetáculo. Nem sequer foram os cartazes com insultos a um convidado. Foram as pateadas e os bater na bancada, coisa que duvido que alguma vez tenha sido vista num parlamento perante um chefe de Estado, ainda mais de uma democracia, ainda mais de um país com quem temos relações tão próximas. Tenho sido crítico de Augusto Santos Silva (que fez, com Rui Tavares e Marcelo Rebelo de Sousa, a melhor intervenção da sessão do 25 de abril) por alimentar as polémicas com o Chega, numa tática de “macronização” da política nacional. Mas a sua admoestação era o mínimo dos mínimos perante a selvajaria a que assistimos.
Os deputados do Chega não envergonham o País porque não têm estatuto para isso. Naquele dia de festa não envergonha Portugal quem quer. São a versão circense dos que, com mais de aprumo, foram derrotados há 49 anos. Estes reiterados gestos, que num tempo com mínimos de exigência chegariam para levar um partido à insignificância, pretendem degradar a democracia de que são inimigos e que adorariam derrubar como tentaram no Brasil e nos Estados Unidos. Foram a notícia do dia. Nada mais do que isso.
Marcelo tentou explicar a pertinência do convite a Lula da Silva, tendo em conta o bicentenário e a importância da descolonização. Uma boa oportunidade para retirar as celebrações oficiais do sarcófago entediante em que têm estado encerradas. Independentemente do debate sobre o acerto desta sessão, que poderia ter nascido de forma menos atabalhoada, não é a alarvidade de alguns deputados que prova o desacerto. Se o provasse, estaríamos a dar ao Chega o poder de veto a qualquer convidado, cedendo à chantagem da sua falta de urbanidade.
O Chega fez o seu pequeno número e a sua pequena concentração, minúscula ao pé do mar de gente que encheu a Avenida da Liberdade. Não foi, como disse Lula, um papelão. Foi um papelinho tão pequeno e oportunista como as folhas A4 com a bandeira da Ucrânia que exibiram e que, imagino, não levarão para o comício que farão com Matteo Salvini, um putinista de todos os costados. Só a nossa excitação fará dele mais do que isso.»
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