3.7.21

Importância da literacia

 

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03.07.1883 – Franz Kafka

 


Na situação verdadeiramente kafkiana em que o mundo se encontra, recordemos que Franz Kafka nasceu em Praga e que faria hoje uns mais do que improváveis 138 anos.



Renúncia
Era muito cedo, pela manhã, as ruas estavam limpas e vazias, eu ia à estação. Ao comparar a hora no meu relógio com a do relógio de uma torre, vi que era muito mais tarde do que eu acreditara, tinha que apressar-me bastante; o susto que me produziu esta descoberta fez-me perder a tranquilidade, não me orientava ainda muito bem naquela cidade. Felizmente havia um polícia nas proximidades, fui ter com ele e perguntei-lhe, sem fôlego, qual era o caminho. Ele sorriu e disse:
– Queres conhecer o caminho através de mim?
– Sim – disse –, já que não posso encontrá-lo por mim mesmo.
– Renuncia, renuncia - disse e voltou-se com grande ímpeto, como as pessoas que querem ficar a sós com o seu riso. 

Franz Kafka, 1922
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A próxima pandemia

 


«Já sei no que está a pensar: ainda não nos vimos livres desta pandemia e já estão a assustar-nos com a próxima. O problema é que há razões de sobra para que fiquemos assustados com a possibilidade de os efeitos das vagas de calor, da seca e da falta de água nos forçarem a mudar de vida todos os anos.

Os picos históricos de temperatura que vimos, por estes dias, assolar os Estados Unidos da América e o Canadá serão cada vez menos uma excentricidade das alterações climáticas para se transformarem numa normalidade. Um artigo recente da revista "Lancet" concluía que as ondas de calor tinham matado, em 2018, 300 mil pessoas acima dos 65 anos apenas na Índia e na China, no que constituía um aumento de 54% desde o ano 2000. Estas mortes são silenciosas, e engrossam as estatísticas apenas uns anos depois, mas são o reflexo de como a pressão do Homem sobre o planeta está a tornar estes fenómenos mais comuns e mais extremos.

A Europa é o melhor aluno no combate à redução dos gases com efeito de estufa, mas mesmo que China, Rússia e Estados Unidos decidissem rever as suas políticas de emissões para níveis históricos não evitaríamos que os próximos anos fossem de aquecimento global.

Parece ficção científica, mas não é. Entre 1998 e 2017, a seca afetou 1,5 mil milhões de pessoas. Há dias, as Nações Unidas alertavam que, nos próximos anos, uma parte considerável do Mundo "vai viver em situação de escassez de água", o que causará crises alimentares, inflação dos bens, redução do fornecimento energético e, inclusivamente, agitação civil, conflitos e migração. O que é que isto tem que ver connosco? Tudo: a seca tem-se intensificado sobretudo no Sul da Europa.

Em suma: dependemos dos governos para gerir de forma harmoniosa os solos e a água, mas dependeremos sempre das nossas atitudes individuais e das nossas escolhas para fazer a diferença. Esta pandemia não veio sem aviso. Está a acontecer todos os dias à frente dos nossos olhos. E não há vacina que nos valha.»

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2.7.21

Irrevogável

 


Disse ele, e a palavra mudou de significado nesse 02.07.2013.
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A triste realidade dos factos



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A mamã dá licença? Sim, mas quero-te em casa às 11 da noite!

 


«Não é apenas o ar maternal e bem-intencionado da ministra Mariana Vieira da Silva, nas conferências de imprensa após as reuniões do Conselho de Ministros, que sugere o título. É mesmo o jogo que o governo está a fazer com os portugueses nos últimos meses em nome da nossa saúde.

A cada duas semanas a governante vem dizer-nos que afinal vamos ficar mais um bocadinho confinados, ou que o comércio vai fechar mais um bocadinho, ou que temos de ir mais cedo para casa... Qual prepotente "mamã" do recreio que mandava dar dois passos à caranguejo e punha o contrariado miúdo a andar para trás, deixando-o mais longe da linha final.

Entretanto, o comércio e todos nós assim vamos ficando... mais longe de qualquer possibilidade de recuperarmos de uma crise que vai tomando proporções astronómicas.

É indesmentível que o número de infetados está a aumentar, mas se calhar convém (muito) olhar para o número de casos graves e (essencialmente) para o número de mortes.

É preciso aprender a viver com a covid, porque a cura ou erradicação não se divisa no horizonte. Se é um facto que vacinação não impede o contágio, apenas a doença grave (por isso o PM foi mandado ficar em isolamento apesar de estar "duplamente vacinado"), então mude-se o chip.

Relativamente ao comércio, sim, imponha-se distanciamento e medidas de proteção, fiscalize-se lotações máximas mas, por favor, deixe-se os negócios trabalhar nos seus horários plenos.

O que está em causa é a vida de pessoas que apenas querem, precisam, de trabalhar para viver. Que precisam de ganhar o seu sustento.

E por falar em sustento ¬- e isto não é nada de novo, mas convém referir uma e outra vez - que esta fiscalização chegue também aos transportes, pois o governo está sempre tão preocupado em mandar fechar os espaços privados, mas pouco ou nada faz para resolver os problemas dos comboios e autocarros (a maioria públicos) que andam sobrelotados por quem não pode, simplesmente, fazer o "obrigatório" teletrabalho.

Curiosamente, a partir desta sexta-feira às 11 da noite, o automóvel privado com uma única pessoa lá dentro - do tipo que só quer dar uma volta para espairecer a tola por estar enclausurado - está "proibido" de circular, enquanto o comboio da linha de Sintra empacotado das 6h30 já não tem qualquer problema...

Mas claro que está tudo certo. Assim é tudo mais simples: andamo-nos a vacinar e, no fim, ficamos todos de portas fechadas e em recolhimento obrigatório à mesma.

Isto faz algum sentido?»

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1.7.21

Pandemia: o que nos espera a partir de agora

 


Pdf AQUI.
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01.07.1958 – Salazar sobre a oposição depois das eleições presidenciais

 


Em 8 de Junho de 1958, realizaram-se eleições para a Presidência da República, em que a oposição apresentou como único candidato o general Humberto Delgado. É bem conhecido o sucesso da campanha que as precedeu e que causou o maior «sobressalto político» (a expressão é de Franco Nogueira) que o Estado Novo conhecera até então.

Poucos dias mais tarde, mais precisamente no dia 1 de Julho, Salazar dirigiu-se aos portugueses em discurso proferido na União Nacional, comentando desta forma o comportamento da oposição:

«Para mobilizar 23% do eleitorado, as oposições fizeram a maior coligação e a mais completa junção de esforços de que há memória e tiveram de aceitar a cooperação, senão a preponderância directiva, de elementos comunistas. Os que sobrevivem do chamado partido democrático, monárquicos liberais ou integralistas desgarrados, socialistas, elementos da Seara Nova, o directório democrato-social, vestígios dos partidos republicanos moderados, alguns novos, sedentos de mudança, e os comunistas – todos poderiam unir-se, como fizeram, mas só podiam unir-se para o esforço da subversão, não para obra construtiva. Não se pode ser liberal e socialista ao mesmo tempo; não se pode ser monárquico e republicano; não se pode ser católico e comunista – de onde deve concluir-se que as oposições não podiam em caso algum constituir uma alternativa e que a sua impossível vitória devia significar aos olhos dos próprios que nela intervinham cair-se no caos, abrindo novo capítulo de desordem nacional.»

Com a voz inconfundível de Salazar como pano de fundo, aqui ficam imagens que recordam algumas cenas da epopeia que foi a campanha de Humberto delgado.


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Na nossa era, ondas de calor são crimes

 

Mike Blake

 

«Tem havido uma relutância histórica da imprensa em atribuir directamente fenómenos climáticos extremos ao aquecimento global, mas com o agravar da crise climática esse prurido tem definitivamente de acabar. Com todos os recordes de temperatura a serem quebrados sucessivamente e com as concentrações a manterem-se em ascensão, a manifestação da crise climática é a concretização dos piores cenários que a ciência climática há muito avança. Não são crimes sem autor: governos e empresas que tudo fazem para manter a normalidade do capitalismo fóssil são criminosos contra o conjunto da Humanidade.

Ontem estiveram 49.7ºC na Columbia Britânica, Canadá, à mesma latitude que Londres. O recorde batido era do dia anterior, com 47.9ºC, que batera os 46.6ºC do dia anterior. São as temperaturas mais elevadas alguma vez registadas no Canadá, batendo os longínquos 45ºC de 1937 em quase cinco graus. A cidade de Vancouver, com 2,5 milhões de habitantes, é das mais afectadas. Esta onda de calor está sob a costa ocidental do Norte da América, e só no Canadá já foram registadas mais de cem mortes directamente causadas pelo calor.

Nos Estados Unidos, os estados de Washington e Oregon torram há vários dias, com temperaturas a chegar aos 46.7ºC. As cidades de Portland e Seattle viram ontem uma queda de temperatura, mas está previsto que volte a subir em breve. Estamos a falar de zonas tradicionalmente frias. A maior parte das casas não tem ar condicionado ou outro meio de refrigeração. Mas mesmo que tivessem, os impactos na rede eléctrica, com secções a derreter e quebras no fornecimento, tornam cada casa uma potencial armadilha mortal. O calor tornou as deslocações também muito mais difíceis. As estradas abriram fendas e o asfalto derreteu em vários locais, enquanto a maior parte da rede de transportes públicos colapsou: durante três dias os eléctricos de Portland estiveram desligados porque os cabos eléctricos derreteram, o metro de superfície foi suspenso devido ao impacto do calor sobre os cabos eléctricos.

Estes são os impactos de ondas de calor com esteróides, isto é, as ondas de calor da nova normalidade climática. Portugal está particularmente exposto às mesmas, já sendo as ondas de calor actuais quase dez vezes maiores do que nas últimas décadas do século XX, como recorda o Pedro Matos Soares, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, cujos estudos projectam para o futuro um aumento ainda maior das ondas de calor, tanto na temperatura como na duração das mesmas.

As ondas de calor longas e de temperaturas muito elevadas são fenómenos de mortandade extrema. Os sistemas eléctricos colapsam. Os transportes ficam muito limitados. Se a construção das casas é má, as casas tornam-se um perigo. Deslocar-se é muitas vezes um risco. Se durante a noite a temperatura não baixa, corpos, materiais, todo o ambiente se degrada e a qualidade do ar baixa drasticamente. Não é raro associarem-se incêndios florestais a isto. Apesar de toda a soberba dos países ricos, que ignoram a crise climática porque os principais impactos são sofridos primeiro pelos países pobres e depois pelas populações pobres dentro dos países ricos, quando uma onda de calor dura mais do que três ou quatro dias, as infra-estruturas que garantiriam a segurança deixam de ser factores diferenciadores porque colapsam. A crise climática é uma crise global. É também um crime global.

Os fenómenos climáticos extremos são consequência directa da acção do capitalismo fóssil. Os responsáveis, quer políticos, quer empresariais, pela continuação da existência dos principais emissores de gases com efeito de estufa, são criminosos contra a Humanidade, actual e futura. A nomenclatura destes fenómenos precisa de mudar. Não falemos mais de furacões Mike ou Charlie, mas de furacões BP, Lufthansa ou Gazprom. Não falemos mais da seca da Califórnia, mas da seca Shell. Não falemos das ondas de calor do Pacífico Norte ou do Mediterrâneo, mas sim da onda de calor Total ou da onda de calor China Coal.

Apesar de este crime ser inequívoco, não só não é punido, como a sua continuação não é sequer dissuadida, já que todos os governos do mundo empurram para uma recuperação económica que novamente faça crescer as emissões, estando já previsto para 2021 um aumento de emissões histórico.

O sistema legal não está equipado para lidar com estes crimes. As instituições políticas criadas sob e para a manutenção do capitalismo tampouco. As suas regras, leis e procedimentos foram criadas para facilitar todos os bloqueios possíveis a uma acção tão revolucionária como aquela necessária para atingir um corte global de 50% das emissões até 2030. A crise climática e os crimes climáticos não serão resolvidos pelas instituições actuais.»

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30.6.21

Delta

 


Agora que é esta variante que domina, creio que a leitura deste texto pode ser útil, com especial atenção ao seguinte:

«A variante delta assemelha-se mais a uma constipação forte. O sintoma número um é a dor de cabeça, seguida de dor de garganta, coriza e febre. Os sintomas mais “tradicionais” da covid-19, como tosse e perda do olfato, são muito mais raros agora, com os mais jovens observando sintomas de um forte resfriado.»
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Que seríamos nós sem ele?...

 

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Não se cuidem, não...

 



«A região da capital é a que soma o maior número de novos casos: 1336 em 24 horas ou 61,6% do total nacional. A segunda região com maior número de casos é o Norte, com 435 novos casos — ou 20,5% do total. Segue-se o Algarve, com 254, e o Centro, com 224. O Alentejo teve 64 casos.
Nos Açores registaram-se 35 novos casos e na Madeira 14.»
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De que ri o comendador?

 


«Não deveremos esquecer nunca a imagem de Joe Berardo a rir-se no Parlamento, quando ouvido no âmbito da comissão de inquérito à Caixa Geral de Depósitos.

Quem o viu naquele dia assim, por certo, terá sentido que o comendador estava a rir de todos nós. Ontem, conhecidas as operações de buscas judiciais, pudemos pensar que afinal Berardo não teria tantas razões para gargalhar na cara dos portugueses. Foi detido por suspeita de administração danosa, burla qualificada, fraude fiscal e branqueamento.

O mesmo Berardo, no Parlamento, havido dito, sem corar: "Eu, pessoalmente, não tenho dívidas". As suas empresas, um subterfúgio usado por muitos que separam o eu do empresário, terão provocado prejuízos avultadíssimos à CGD, Novo Banco e BCP: quase mil milhões de euros.

Joe Berardo , o cidadão, com a ajuda de um advogado, agora também detido, terá feito um truque que passava por recorrer a mecanismos de renegociação e reestruturação da dívida para não a pagar. Os crimes terão ocorrido entre 2006 e 2009, e só agora chegam a tribunal: o que terá proporcionado alento a Berardo para dizer, sem hesitar, não dever nada a ninguém. Neste como noutros crimes, o tempo está a favor do infrator.

E o tempo dirá se o tempo não continuará a seu favor. Como ontem os magistrados do Ministério Público fizeram questão de assinalar, numa declaração pouco habitual, "não obstante o empenho e investimento do DCIAP e da Procuradoria-Geral da República (PGR), (...) não se logrou assumir a celeridade desejável, apenas por carência de meios técnicos".

Logo o tempo está a correr em favor do empresário e colecionador de arte e, não tenhamos ilusões, de muitos outros que durante anos tiveram a si colado o rótulo de milionários, graças a créditos bancários que nunca tencionaram amortizar. Berardo é apenas mais um. Talvez se note mais, por ter total falta de vergonha.»

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29.6.21

Imagem do dia

 

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Governantes não conhecem os governados

 



«A PSE reporta ainda que o volume de deslocações para fora da região leva a concluir que “a medida não conseguiu conter as saídas da AML por parte dos seus residentes, que aproveitaram sobretudo os dias 24 e 25 de Junho para realizar as deslocações que tipicamente fariam no fim-de-semana.”»
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O que falhou no controle da pandemia

 

A ler ou ouvir na íntegra AQUI.
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E depois das moratórias?

 


«O PIB português caiu 7,6% em 2020. Foi uma das maiores quebras do produto da Europa, num país onde os apoios do Estado foram dos menores entre os pares europeus.

Compreende-se a magnitude da crise, uma vez que a contenção da pandemia afetou setores cruciais para o produto e o emprego, como o turismo e a restauração. Menos evidentes são, no entanto, as razões para o aumento do desemprego não refletir o nível de contração económica. Todavia, este paradoxo, como lhe chama o Barómetro das Crises, tem boas explicações.

Em primeiro lugar, uma parte do desemprego foge às estatísticas pois foi gerado em setores onde prevalece a informalidade. Em segundo lugar, tanto os dados do RSI como de instituições que prestam apoio social mostram um aumento acentuado da pobreza extrema. Em terceiro lugar, para muitos milhares de trabalhadores, o lay-off significou uma perda prolongada de rendimentos, mas não o desemprego. Finalmente, como refere o Barómetro das Crises, "o programa de moratórias de crédito e, em menor grau, as linhas de crédito com garantia pública, em conjunto com outras medidas, permitiram escudar temporariamente empresas e famílias dos efeitos mais dramáticos da crise", sendo que "o programa de moratórias de crédito teve especial relevância em Portugal comparativamente à generalidade dos países europeus. Quer isto dizer que o fim das moratórias de crédito... requer especial atenção".

Os últimos dados do Banco de Portugal indicavam que 282 mil famílias e 53 mil empresas estavam, em abril, ao abrigo dos regimes de moratórias. Se, para algumas famílias e empresas, a situação inicial de carência económica pode já não se manter, para outras o fim abrupto destes regimes significará a insolvência. No entanto, apesar dos alertas, nem o Governo nem o Banco de Portugal apresentaram planos concretos de mitigação desses efeitos. Para as pessoas, o tempo urge, uma vez que as moratórias terminam a 30 setembro. Sem qualquer resposta, milhares de famílias ficarão nas mãos dos bancos e da sua vontade e critérios para renegociar as suas dívidas. Em particular, nos casos dos empréstimos à habitação, o risco de perda da morada de família é real e não pode ser ignorado.

É preciso criar, no imediato, um regime especial que proteja as famílias em situação de carência económica da interrupção das moratórias sobre os créditos à habitação própria e permanente. Sob este regime, os bancos terão de informar todos os clientes que ainda preenchem os requisitos de acesso à moratória. A partir daí, inicia-se um processo de reestruturação, de que não pode resultar um encargo superior a 35% dos rendimentos do agregado. Por outro lado, deve ser dada ao cliente em dificuldades a possibilidade de optar por entregar a casa ao banco, extinguindo nesse momento a sua dívida.

Trata-se de uma proposta simples que baliza a atuação dos bancos no pós-moratórias, respondendo assim aos alertas sobre os efeitos desse evento nas famílias e no acesso à habitação.»

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28.6.21

Salve vidas...

 

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O'Neill, sempre

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Coisas realmente importantes

 




Os jogadores belgas e portugueses ajoelharam-se antes do início do jogo de ontem, num gesto que se inscreveu na campanha anti-racista em curso.

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O miserável

 


«A cabeça da maior parte das pessoas já está no Verão. Apesar dos avanços e recuos da pandemia, já só existem olhos para Sol, praia, vacinas, regresso à normalidade, europeu de futebol, bazuca financeira, defender uma ou outra causa consensual nas redes sociais, que fica sempre bem, e já está.

Fazer pela vidinha, que os tempos não estão fáceis. E depois, existem os outros. Os remediados, com ordenados miseráveis, endividados, mas que fingem para si próprios, ou para ou outros, que tudo se há-de compor, projectando um misto de esperança e de exasperação numa eventual redistribuição eficaz da riqueza. Mas há ainda um outro patamar. Lá no fundo. Muitos sem tecto para viverem, arrastando-se, sem horizonte, alguns assim antes da pandemia, mas muitos lançados para a rua nos últimos meses. Em Lisboa enchem as arcadas de prédios ou zonas abandonadas. De dia, vagueiam, solicitando ajuda.

“Oh! Miserável! Sai mas é daqui! Não podes estar aqui a incomodar!” A frase foi esta. Eu era um dos que, estando sentado numa esplanada no Largo da Graça, em Lisboa, a almoçar, estava a ser “incomodado” pelo “miserável”. Tinha acabado de ser vacinado e, como a maioria, partilhava nas redes sociais esse feito, pateticamente orgulhoso sabe-se lá do quê, mas aquele “miserável”, dito pelo empregado do restaurante, ficou-me.

Vivemos tempos em que existe uma parte da opinião pública que renega todas as conflitualidades que remetem para as palavras e o seu significado. “Isso é coisa de quem não tem mais nada para fazer”, argumentam. E ali fiquei eu a matutar naquilo, porque aquele “miserável”, dito daquela forma contundente, não era apenas uma referência de condição, era em simultâneo um julgamento e uma acusação.

Longe vão os tempos em que miserável era aquele que, por causa da sua situação de fragilidade, era digno de compaixão. Esse sentido seminal da palavra já lá vai. Agora miserável é aquele que age de forma indigna, avarenta, abjecta e desonesta e não há compreensão pela vulnerabilidade humanas ou pela pobreza extrema, apenas condenação ou punição. A genética linguística tanto nos transporta para o que se encontra numa situação lamentável, que não tem onde cair morto, como para aquele que não compreendemos muito bem, o que nos assusta.

Hibridizar pobreza e desprezo no mesmo enquadramento conceitual não é inocente. Por detrás dessa engenharia semântica esconde-se o receio, a criminalização e a conversão dos pobres em miseráveis, no sentido moral. Não é apenas a aversão ao pobre. É acusá-lo dessa condição. É declarar que é merecedor dessa circunstância, como se ser pobre fosse uma decisão, construindo-se a falácia de que é apenas a vontade que medeia os processos meritocráticos. Dessa forma transfere-se a questão para a esfera da ética individual, quando ela diz respeito a todos nós, sendo estruturalmente política. Omite-se intencionalmente a pobreza como questão colectiva, ou então abre-se espaço à caridade ou assistencialismo que serve para apaziguar consciências, mas que não resolve o problema, muitas vezes servindo até para o perpetuar.

Dessa forma cria-se a ideia de que os pobres o são, apenas porque não se esforçaram o suficiente. Vemo-los prostrados no chão, culpabilizamo-los por isso, ao mesmo tempo que nos fortalecemos narcisicamente por não estarmos numa situação semelhante. Mas nunca se sabe. A fronteira entre ser o empregado, ou os clientes da esplanada do restaurante, e os que caíram na rua e a quem apelidamos de forma estigmatizante de miseráveis, tem vindo a estreitar-se. Depois do Verão logo se pensa nisso.»

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27.6.21

É, pois! Então não foi?


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A Bélgica também é isto

 


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Bélgica


 


Diz-se que, na Bélgica, há mais de 1 000 marcas de cerveja. Logo à noite, os portugueses vão votar nesta.
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O que fazer com Viktor Orbán?

 


«A pergunta não é nova, mas volta a colocar-se a uma União Europeia que não tem sabido lidar com as aleivosias do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán.

Um homem que não nutre particular devoção pelos valores humanistas do Velho Continente, que é desprezado por grande parte dos seus congéneres, mas que, ainda assim, tem conseguido sobreviver a tudo. Em pouco mais de dez anos, o político que clama ser fora do sistema mesmo estando dentro dele, endureceu as regras anti-imigração, atacou a independência do sistema judicial, tomou conta de posições estratégicas nos média, aplicou uma política antissemita e islamofóbica e, agora, criou uma lei que proíbe que se fale a menores de 18 anos sobre a homossexualidade nas escolas e na Imprensa.

Os relatos do mais recente Conselho Europeu traduzem de forma cabal o tamanho do elefante na sala. O líder do Governo holandês, Mark Rutte, sugeriu ao congénere húngaro que abandonasse a União Europeia; já o chefe do Executivo luxemburguês, Xavier Bettel, homossexual assumido, deu o seu testemunho pungente: "Eu não me tornei gay. Eu sou gay, não é uma escolha", terá dito a Orbán, de acordo com o site "Politico". "A minha mãe odeia que eu seja gay. Eu vivo com isso. E agora você põe isso numa lei. Eu respeito-o, mas isto é uma linha vermelha. Trata-se de direitos básicos, do direito a ser diferente", complementou Bettel.

Orbán não se comove com movimentos contestatários, servindo-se deles, em grande medida, para granjear popularidade interna. Aliás, as eleições que vai ter de enfrentar no próximo ano não são de todo alheias a esta estratégia de desalinhado. A pressão diplomática para suster os ímpetos antidemocráticos do líder húngaro é útil, mas não chega. A Europa tem de atuar onde dói verdadeiramente aos regimes autoritários: cortando fundos, cerceando movimentos e influência. Já há mecanismos que o permitem, embora a sua aplicação, como em tudo em Bruxelas, seja de uma elevada complexidade jurídica. Depois, cortar as pernas ao regime de Orbán tem outra virtude: sustém as motivações de potenciais imitadores, para quem uma Europa incomodada, envergonhada e irritada é sinónimo de uma Europa inconsequente.»

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